OPINIÃO POLÍTICA
Gerson N. L. Schulz
Filósofo
Muitos pensam que a Filosofia é apenas coisa de acadêmicos.
Coisa de "liberais", de "políticos", de "esquerdistas" e até de "comunistas", apenas. Mas não!
Por isso o objetivo deste artigo é mostrar como a Filosofia está presente no
cotidiano, no dia-a-dia das pessoas desde a fila do ônibus quando alguém
discute sobre os capítulos de sua novela preferida até a sua situação com a família
ou a prestação da casa.
Assim a Filosofia é, ouso dizer, a arte da conversação. Da dialética,
em termos mais filosóficos. Da discussão de ideias e, mais que isso, a busca da
veracidade dos fundamentos de tais ideias (as que estão presentes em uma
discussão). É por isso que se pode falar em Filosofia Política, Filosofia da
Economia, Filosofia da Educação, Filosofia da Ciência, Filosofia da Matemática,
Filosofia do Direito e etc.
Um exemplo do uso da Filosofia no cotidiano são as discussões
sobre as paralisações do mês de março deste ano. Instalou-se uma
"crise"! Pararam os caminhoneiros reivindicando melhores condições de
trabalho, melhorias no preço do combustível e etc. No dia quinze de março houve
também um protesto espalhado pelo país cujos cartazes e faixas reclamavam
contra a corrupção generalizada nas esferas pública e privada. Alguns pediam a saída
da presidente recém-eleita.
Mas as faixas eram díspares, confusas e o movimento não teve
o resultado esperado. A "crise" continua e o governo eleito tem pela
frente a difícil tarefa de fazer um ajuste fiscal e combater a corrupção em
meio a acusações contra os partidos no poder, contra membros do governo e
contra membros também da oposição! Por isso é que a crise continua... e
continuará devido também às medidas impopulares que este "ajuste"
acarretará.
Mas a tal "crise" – da forma que está sendo alardeada
pela grande mídia brasileira, por seu turno –, me parece um exagero porque a
corrupção é algo que faz parte do jogo das grandes empresas e de suas relações
com os governos, não há nada de novo nisso! Mesmo na Grécia antiga, por
exemplo, o grande administrador Péricles foi acusado – durante seu Governo em Atenas
– de peculato, mas mesmo assim ele foi reeleito! A corrupção vem desde o mundo Antigo
e os grandes meios de comunicação do Brasil – de forma positivista (porque
qualquer telejornal apresenta os 'fatos' como ímpares, sem passado nem futuro) –,
como se cada fato dependesse de si mesmo como a uma mônada e fosse atemporal. E
a aparente "desconexão" entre as notícias publicadas permite uma interpretação
isolada dos acontecimentos que é a forma como a maioria das pessoas vê o que a
grande mídia constrói para explorar, visando também o lucro.
É claro que ninguém duvida que a corrupção seja algo nocivo
para o coletivo e que deva ser combatida, mas da forma como é construído o
discurso na mídia em geral a coisa toda se transforma em algo
"espetacular" e esse "combate à corrupção" mais parece uma
panaceia. E, como tal, impossível; panaceia que, na prática, tem o efeito de
acalmar os ânimos em geral, por algum tempo... o que é outro jogo falacioso
porque ao acalmar ânimos, dispersa-se qualquer descontentamento.
A crise existe, claro, mas é de fundo econômico que reflete
na política (esfera das decisões humanas que fazem a economia) no círculo do
poder. O governo Dilma deu muito "azar"! Primeiro certo despreparo em
relação aos efeitos das crises externas; depois a crise hídrica nas
hidroelétricas que anulou a "benesse" da diminuição da conta de energia
elétrica. Além disso, a corrupção na Petrobrás (que não iniciou neste governo,
mas é, ao que se conhece, uma 'tradição' de vários governos) e seus reflexos
diretos sobre a figura da presidente. Também o governo Dilma paga agora a conta
das "benesses" e malabarismos fiscais do governo de Luis Inácio Lula
da Silva, como a redução do IPI e outros. Medidas que agradaram às classes
populares porque lhes permitiu comprar mais, mas que agora retrai a economia
por causa do "calote" de muitos compradores que não podem pagar suas
dívidas.
Por outro lado, as classes sociais mais abastadas (pelo que
se viu nas faixas e cartazes de quinze de março) também reclamam das políticas
públicas do Governo do Partido dos Trabalhadores, especialmente o "Bolsa
Família". Muitos que criticam estas políticas públicas pensam até que elas
são de cunho "marxista" ou socialista ou até comunista, mas não são. Uma
leitura filosófica pode nos elucidar que elas são de cunho bem liberal e se
enquadram dentro de um sistema filosófico que se conhece pelo nome de
Positivismo. Mas o que é Positivismo? O que tem que ver com o cotidiano?
Todos os brasileiros já se depararam com a frase mais
marcante de tal filosofia: "Ordem e Progresso". Esse é o lema do
Positivismo, doutrina fruto do século XIX e que os militares que proclamaram a
república em 1889 abraçaram com ardor e como sinônimo de avanço. Os autores do
modelo definitivo de nossa bandeira apenas subtraíram a palavra
"amor". Eis o lema completo: "o amor por princípio, a ordem por
meio e o progresso por fim". Há uma condição sine qua non aqui. Caso não haja ordem não haverá progresso! Mas pergunte-se:
que ordem? De quem? Pergunte-se também: progresso para quem? Para quê? Que tipo
de progresso?
Augusto Comte |
O Positivismo criado pelo filósofo francês Augusto Comte
(1798-1857), crê ilimitadamente no poder da ciência e afirma que todo
conhecimento que não utiliza o método científico para chegar à verdade, é
crendice. Assim, não merecem título de conhecimento os saberes populares
("chazinhos" medicinais, lendas) nem o conhecimento religioso que não
deve ser chamado de conhecimento, visto que não parte da razão, mas da fé.
Estruturalmente o positivismo compara a sociedade a um
organismo vivo. Isto é, como no corpo humano os órgãos têm uma função
específica e – do bom funcionamento de todos depende a harmonia do sistema –,
da mesma forma na sociedade a ordem em todos os setores mantém a coesão da
mesma. Assim é possível comparar o distúrbio estomacal de alguém que bebeu
demais a um setor da sociedade que está em greve, por exemplo. Tal qual o mau
funcionamento dos órgãos no corpo humano causa um tremendo mal-estar geral, a
greve dos transportes coletivos, dos lixeiros, dos hospitais causa mal-estar
social. O "remédio", nesse caso, é um governo forte. Caso o
"órgão social" não melhore, resta ser tratado ou até extirpado.
Socialmente, o Estado Positivista acentua a diferenciação
entre os estamentos (grupos). Acredita-se assim que há, necessariamente, um
grupo de pessoas que "nasce" para mandar (exercer o poder) e outro
que "nasce" para obedecer, e esse é formado pela maioria do povo que,
não sendo "capaz" – como seus líderes ou patrões –, nem
"inteligentes", não deve discutir as decisões destes. Consequência
direta disso é a submissão, a riqueza nas mãos de poucos e a pobreza nas mãos
de muitos. – Lula só se elegeu quando fez acordos com o Partido Liberal e com
empresários. Associou-se assim o projeto político do PT (diferente daquele de
sua fundação) com os interesses das classes dirigentes do país, os grandes
empresários e setores empresariais. Atitude também positivista uma vez que para
ganhar confiança não só das classes que se dizia representar (os
trabalhadores), também queria a simpatia das outras classes para estabelecer um
governo da "harmonia"!
No Positivismo em geral é preciso que se formem grupos
sociais estanques como militares, cientistas, políticos, catadores de lixo,
professores e outros. Como se entende que cada grupo é importante para a
sociedade assim como os órgãos para o corpo, cria-se uma moral que diz, grosso
modo, que: "o estômago nunca chegará a cérebro". Sendo assim
dificulta-se a mobilidade social, uma vez que os positivistas entendem que
todos os grupos sociais são necessários. É claro que o trabalho dos lixeiros é
importantíssimo, mas alardear que seus filhos devem ser sempre lixeiros, que
não devem estudar e daí que o governo não tem obrigação de construir escolas
para atendê-los é algo não só antidemocrático como imoral e esse era o
pensamento de muitos positivistas no século XIX e ainda é no século XXI no Brasil.
Um caso para análise, o Programa "Bolsa Família",
por exemplo. Este permite a uma pessoa pobre sair da pobreza? Não! Talvez, como
alardeiam os defensores desta política pública, tenha diminuído a miséria de várias
famílias brasileiras, mas não as fará sair da pobreza. Ao se tomar a filosofia
positivista para analisar este programa, percebe-se que ele se enquadra nesta
filosofia porque permite (ainda que longe do desejado pela economia) fazer
girar a "roda do consumo". Quando alguém recebe este dinheiro e o utiliza
para comprar mercadorias, faz girar a roda do sistema econômico capitalista.
Essas compras trazem aumento da produção industrial, comercial, arrecadação de
impostos para o governo e (conforme a ideia original) lucro para os capitalistas
alojados e em conluio com o modelo de Estado burguês e conservador que é o
Brasil atualmente. Nada tem de socialista e muito menos de comunista este
programa. Na prática ele é positivista! O mesmo ocorre com programas
estudantis. Eles (contrariamente ao pensamento de imobilidade social original
do Positivismo, mas não sem escapar totalmente deste projeto) permitem que pessoas
sem formação cheguem à universidade e se formem, mas isso também tem seu mérito
capitalista, pois alguém que seja um engenheiro, médico, professor é importante
na medida em que seja capaz de desempenhar um papel social e proporcionar o
"progresso" dentro da sociedade. Além disso, é daí que sai a
filosofia da meritocracia moderna. Ela é um tipo de filosofia que exalta a
hierarquia e a legitima e, com isso, embasa todo o sistema burocrático dos
governos contemporâneos. O que seria do exército se não houvesse a hierarquia?
Como se manteria o poder dos superiores militares? O que seria do poder
governamental sem a obediência civil?
Diminuto grupo de pessoas pede "intervenção militar" no Brasil. Local: Cidade de Pelotas - RS Créditos da foto: Professor Eliézer Oliveira. |
Outro caso para análise são as formas de protesto que se tem
visto no mês de março de 2015. Estranhamente também são positivistas! É o caso
do movimento dos caminhoneiros que, ao paralisar as rodovias, podem ser
comparados dentro do positivismo a um "órgão que está com problemas"
dentro do corpo humano, vamos compará-los ao fígado. Caso o fígado diminua as
suas funções, todo o organismo sofre. Surge a esteatose, por exemplo. Depois as
toxinas vão se acumulando por toda parte. O que faz o cérebro? Ele ordena que
certas enzimas limpem tudo o que está causando mal. E foi isso que o governo
federal fez ao atender algumas reivindicações dos caminhoneiros (embora não
tenha acatado todas) para que o órgão com "defeito" dentro da
estrutura social voltasse a funcionar harmonicamente. Com as estradas
liberadas, tudo voltou à "normalidade", inclusive os ânimos de boa
parte daqueles que protestavam. Tanto é assim que no dia quinze de março de 2015
não se viu qualquer estrada bloqueada, pois os interesses dos caminhoneiros já haviam
sido atendidos, embora muitas das faixas que se viam nos protestos destes
profissionais também pedissem a saída da presidente. Fica clara uma
fragmentação entre os estamentos dos caminhoneiros e do restante da população,
criou-se, devido a esta fragmentação, uma espécie de discurso da "raiva"
pelas pessoas em geral em relação ao movimento dos transportadores de cargas!
Dentro de uma "filosofia marxista" ou de alguma forma de organização com base nas ideias socialistas, as coisas não
se dariam assim. Todos os "estamentos" sociais se uniriam para formar
uma "consciência de classe". Caminhoneiros se uniriam aos professores
(de forma sólida e contínua e não acidental como houve no estado do Paraná) que
também protestam, que se uniriam aos trabalhadores da segurança pública que
também protestam, e estes se uniriam a outros trabalhadores em geral. Mas o que
acontece não é isso, o que acontece é exatamente o que menciona o Positivismo,
a desunião de classes e a formação de estamentos, grupos com interesses
isolados. Permanece, assim, a visão individualista – travestida nos protestos –
de visão coletivista. Aqueles que protestam (da forma como protestam) não
chegam jamais a aprofundar a busca pela verdade e pela origem dos problemas sociais
(papel que os filósofos sempre atribuíram à Filosofia desde o mundo Antigo). As
pessoas que saem às ruas com faixas e cartazes ficam no superficial, no
senso-comum. Não filosofam, não discutem ou debatem as ideias. São uma massa
amorfa porque não tem "consciência" do que querem realmente! Qual é a
causa que advogam, afinal? Combater a corrupção! Sim, mas importa dizer como, e
isso elas não sabem! – Longe estamos do maio de 1968!
Outra ironia dos protestos (embora sejam casos isolados) são
os pedidos pela volta do regime Militar. É uma contradição performativa isso,
pois é pedir para acabar com o regime (democrático) que lhes permite protestar
livremente já que uma ditadura é um estado de exceção! Daí decorre outra
contradição, a ideia de que se deve "fechar" o Congresso defendendo
que este é a fonte da corrupção! Esse comportamento é bastante positivista e,
como tal, superficial, pois equivaleria a enviar enzimas e anticorpos contra o órgão com problemas e não contra o que está
acarretando o mal-estar no corpo. O correto, em se tratando do fígado de nosso exemplo, seria
mudar a alimentação! (No caso do Congresso, mudar os políticos!)
Por fim, este texto, como todo texto, é um ponto de vista, um
discurso, porém por onde ando nas ruas ou nas salas de aula ouço um ou outro
afirmar que se deve "fechar" o Congresso, "que era melhor na época
da ditadura militar" sem perceber que a causa de muitos de nossos
problemas é de fundo econômico, da falta de um projeto social mais amplo e até cultural
e, por isso, não tenha dúvidas ao ouvir tais palavras: "eis mais um
positivista, provavelmente, sem o saber...!"
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