GERSON
NEI LEMOS SCHULZ*
Artigo publicado originalmente no livro:
SCHULZ, Gerson N. L. (Org.).
Educação na Amazônia.
São Leopoldo: Oikos, 2010. (P. 11-23).
O primeiro capítulo desta coletânea é um
diálogo (pesquisa bibliográfica) entre algumas propostas da filosofia européia
e algumas perspectivas culturais possíveis da região amazônica. O método de
investigação é o método dialético e a abordagem é crítica. O mote de pesquisa
do trabalho é: em que medida os indígenas da região norte do Brasil podem
solidificar sua identidade cultural com a contribuição da visão de mundo
(filosofia) pós-moderna? Sendo assim, o objetivo principal é conflitar para
compreender as relações filosofia/ciência e mito. Secundariamente, levantam-se
questionamentos sobre a possibilidade da existência de uma visão de mundo tipicamente
amazônica, principalmente a partir da compreensão de mundo dos povos indígenas
da região. As principais conclusões foram: as abordagens propostas pelo
contexto do mundo pós-moderno acolhem, de modo geral, os povos da Amazônia e
suas concepções de mundo (filosofia) por sua própria perspectiva de negação da
razão unívoca e evolucionista. O mito, fruto do pensamento indígena pode ser
considerado filosofia e garantir a existência de uma educação com forte
identidade amazônica, o que implica também que a forma de organização indígena
sem a presença da sociedade-Estado pode garantir a preservação efetiva das
superfícies florestais na região norte do Brasil.
1 Esclarecendo alguns conceitos
O texto parte de uma pergunta: Existe uma
filosofia da educação tipicamente Amazônica? Em outras palavras, "o que
significa falar em uma filosofia amazônica?"
Em primeiro plano, é importante definir melhor
o termo filosofia e filosofia da educação. Por filosofia, toma-se aqui a
seguinte definição
[...] a filosofia não é, de modo algum, uma simples
abstração independente da vida. Ela é, ao contrário, a própria manifestação da
vida humana e a sua mais alta expressão. Por vezes, através de uma simples
atividade prática, outras vezes no fundo de uma metafísica profunda e existencial,
mas sempre dentro de uma atividade humana, física ou espiritual, há filosofia
[...] (BASBAUM, 1978, p. 21)
Percebe-se, nesta perspectiva, que a filosofia
é tomada pelo autor como uma prática humana, então ela não é algo
"morto", mas dinâmico. Não é um conhecimento engessado, mas ativo e
serve para criar valores e dirigir condutas. "A filosofia se manifesta ao
ser humano como uma forma de entendimento que tanto propicia a compreensão de
sua existência, em termos de significado, como lhe oferece um direcionamento
para sua ação, um rumo para seguir" (LUCKESI, 1994, p. 23). Se ela não for
um rumo a seguir, pelo menos é algo que permite ao homem lutar por ele. Ela
estabelece uma organização de mundo que possibilita, consequentemente uma
organização de valores, continua Luckesi (Op. Cit.).
Já a filosofia da educação se preocupa com o
"[...] educando, quem é, o que deve ser, qual seu papel no mundo; o
educador, quem é, qual seu papel no mundo; a sociedade, o que é, o que
pretende; qual deve ser a finalidade da ação pedagógica." (LUCKESI, Op.
cit., p. 32). Há, aí, íntima relação entre filosofia e educação. O autor também
afirma que os filósofos sempre se preocuparam com que suas filosofias
(cosmovisão) sejam divulgadas por meio da educação. Pode-se inferir então que
não há sentido uma filosofia que não seja discutida entre o grupo que a adota
ou propõe, que não seja o resultado de uma coletividade, não seja difundida
entre estes mesmos membros que a produziram e se é proposta de um grupo (que é
histórico) é também ela, reflexão humana, produção histórica.
Fica claro, pois, que o pensamento humano, seus
direcionamentos, seus valores, mudam. Assim, nenhuma proposta deve ser
engessada, amarrada e dona da verdade absoluta. Infelizmente, não foram estes
os exemplos que as colônias dos países europeus receberam ao longo dos séculos.
Por mais de quinhentos anos, África e América tem se "violentado"
intelectualmente para servir e concordar com o pensamento europeu preconceituoso.
E a forma de pensar européia universalizante, que descambou nos totalitarismos
da era colonial e em duas grandes guerras mundiais, oprimiu também a colônia
Brasil que não é uma nação formada por pessoas iguais (social e culturalmente
falando). Em suma, essa discussão tem por finalidade refletir, tentando banir a
hipocrisia ou discursos ressentidos, a existência, ainda hoje, de uma visão de
mundo amazônica.
1.1
Modernidade ou Pós-modernidade?
Não se trata aqui de desprezar a filosofia
européia nem sua contribuição para o pensamento Ocidental. A crítica referida
acima é no sentido de refletir se só é possível fazer-se filosofia na Europa e
se se tem que aceitar apenas o que vem dela e acreditar que porque deu certo
por lá dará aqui também.
Por ora, tenta-se pensar como, dentro da
classificação de modernidade ou pós-modernidade, melhor se enquadraria uma
filosofia da educação amazônica. Univocamente, para fins deste trabalho,
afirma-se que a filosofia da educação além de delimitar uma postura social
também delimita no educador uma postura pessoal. "Mais do que possibilitar
um conhecimento teórico sobre a educação, tal estudo forma em nós, educadores,
uma postura que permeia toda a prática pedagógica. E essa postura nos induz a uma atitude de reflexão radical
diante dos problemas educacionais [...] (GADOTTI, 2005, p. 15-17).
A partir das
considerações de Luckesi (1994) e Gadotti (2005), infere-se que, atualmente, a
filosofia da educação não pretende ser "doutrina", como queriam a
educação em geral racionalista ou romântica (ambas moralistas) eurocêntricas
dos séculos XVII, XVIII e XIX. Para justificar tal afirmativa, basta lembrar
que os Jesuítas educaram a América luso-espanhola submissa ao pensamento tomista.
Por sua vez, o Marques de Pombal, ao expulsar os Jesuítas, substituiu a educação
religiosa por uma educação laica com valores iluministas (racionalistas). O
mesmo deu-se no século XIX com o Positivismo de Comte. Já hoje, se se adotar
uma concepção pós-moderna de educação, teria sentido discutir-se o local e, no
máximo, o regional, não a totalidade, a universalidade.
Na sua ânsia de ordem e controle, a perspectiva social
moderna busca elaborar teorias e explicações que sejam as mais abrangentes
possíveis, que reúnam num único sistema a compreensão total da estrutura e do
funcionamento do universo e do mundo social. [...] o pensamento moderno é [..]
adepto das "grandes narrativas", das "narrativas mestras".
As "grandes narrativas" são a expressão da vontade de domínio e
controle dos modernos. [...]. (SILVA, 2005, p. 112)
Para Silva (2005), a pós-modernidade rejeita
incontestavelmente a modernidade, principalmente no que tange à questão da
ordem e da imposição de padrões. Mas é preciso lembrar: ainda que neste
trabalho esteja-se abordando a realidade por meio da perspectiva pós-moderna,
não se quer dizer que ela esteja consolidada ou que a discussão acabou, apenas
se deseja, aqui, brevemente, refletir se a cultura que existe hoje
regionalmente na Amazônia se identifica com a modernidade ou pós-modernidade.
Ainda na definição de Silva (Idem), é possível dizer que
O pós-modernismo não apenas tolera, mas privilegia a
mistura, o hibridismo e a mestiçagem – de culturas, de estilos, de modos de
vida. O pós-modernismo prefere o local e o contingente ao universal e ao
abstrato. O pós-modernismo inclina-se para a incerteza e a dúvida, desconfiando
profundamente da certeza e das afirmações categóricas. [...] O pós-modernismo
rejeita distinções categóricas e absolutas como a que o modernismo faz entre
"alta" e "baixa" cultura. (Id., Ibid., p. 114)
Antes de seguir a discussão, é preciso
esclarecer que Silva (2005) não distingue entre pós-modernismo e
pós-modernidade, ao passo que, para Eagleton (1998, p. 7), pós-modernismo é:
[...] um estilo de cultura que reflete um pouco essa
mudança memorável por meio de uma arte superficial, descentrada, infundada,
auto-reflexiva, divertida, caudatária, eclética e pluralista que obscurece as
fronteiras entre a cultura 'elitista' e a cultura 'popular'. Bem como entre a
arte e a experiência cotidiana.
Para Eagleton (1998), parece ficar claro que
pós-modernidade é um período histórico. Aqui, é interessante notar que ele
discorda da divisão atual da ciência histórica que chama o mesmo espaço de
tempo que a ciência filosófica classifica de pós-modernidade como idade
Contemporânea. Aqui, concorda-se com a postura assumida por Eagleton (1998), devido
à existência dos dois termos. Então, pode-se afirmar que a cultura amazônica é
pós-modernista por sua diversidade e não negação, mas inexistência de
metanarrativas científico-filosóficas no que tange aos povos da floresta?
Para Colom (2004, p. 71 et. seq), a
pós-modernidade tem ainda outros fatores que lhe garantem identidade, tais como
a tecnologia, o surgimento da informática, o fim da história (que a partir de
agora fica guardada em "imensos computadores", e, principalmente o
relativismo dos valores éticos). Para ele, Descartes (2005) e Kant (2001), se
entendidos como representantes da modernidade, perdem seu brilho, pois a
pós-modernidade abre espaço para o relativo. Desaparece a totalidade. Nem a
ciência, nem a filosofia têm espaço nesse novo tempo, pois nada mais precisa
ser absoluto. Não há mais sentido em a moral ser universal se o regional
desponta como fundamental.
Colom cita a perspectiva nietzschiana quando
afirma a "morte de Deus". Para Colom, essa morte representa também a
morte da filosofia, da ciência, da religião, enfim, uma libertação de conceitos
metafísicos aos quais, para ele, a modernidade estava atrelada. Se antes, na
modernidade, a moral era a da razão universalista kantiana do imperativo
categórico, a ciência (como entendia o Iluminismo) viria para salvar a
humanidade e garantir o futuro, e a religião a salvação pós-morte do homem,
agora o relativismo possibilita não existir nem mesmo um futuro, pois importa o
presente. O homem, diz Colom (2004, p. 73), agora está sozinho e precisa
confiar nele mesmo. Desaparece o sujeito, desaparece o pensamento, porque não
há mais fundamentos. O homem só pode tornar-se relativo porque está imerso na
relatividade. Ele compara o homem novo de Nietzsche (1999) ao homem de hoje que
precisa se livrar das falácias da razão e do discurso. Dar novo sentido às
coisas mesmas, sem a metafísica.
Aqui, discorda-se de Colom (2004), pois quanto
a eliminar a metafísica nem Kant (2001) nem Nietzsche
(1999) conseguiram cumprir tal missão. Basta lembrar que mesmo o realismo
científico mais radical entende que tudo o que o homem conhece não passa de
representação da realidade e mesmo a Física representa a natureza por meio da
matemática. Representar uma coisa não é dizer a coisa mesma.
Já a ciência[1]
perde seu valor, segundo Colom (2004), devido a estar baseada na natureza que
aceita outras explicações para seu modo de ser como o mito, o funcionalismo, ou
o artístico. Então ciência e mito não estão mais em oposição como na
modernidade. A ciência também perde seu grau de neutralidade à medida que se
escancara que ela é dirigida para os interesses do homem. Tais argumentos
responderiam à pergunta sobre a cultura amazônica ser pós-modernista de forma
positiva.
E ele ainda vai mais longe, apontando que a
sociedade (que é sistema) analisa a estrutura social acarretando, entre outras
coisas, o fim da consciência do passado. Sendo assim, acaba o humanismo
moderno. Agora, para estudar a natureza e a sociedade, é preciso dissociá-la do
homem que está contaminado pelo subjetivismo devido à axiologia. Observa-se,
aqui, outro argumento que apela para metafísica nas idéias de Colom.
As constatações de Colom estão na discussão do
mundo acadêmico atual na Europa. De fato, é mais fácil para os povos urbanos
brasileiros compreender a Europa quando se manifesta sobre desenvolvimento,
pois grandes estados como São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul (industrializados)
tentam alcançar os mesmos níveis de produção de alguns países europeus.
A
análise de Colom é contundente, mas não deixa de ser reducionista à medida que
despreza, por exemplo, a filosofia e a ciência em geral. E por que a filosofia
não pode procurar a anti-totalidade? Por que a valorização do mito, necessariamente,
desprestigia a ciência? É absurdo pensar que as ciências empírico-formais ou
humanas não ofereçam única explicação possível para a realidade? Na
pós-modernidade, mito e senso-comum também têm seu valor re-prestigiado. "[...]
a ciência pós-moderna sabe que nenhuma forma de conhecimento
é, em si mesma, racional; só a configuração de todas elas é racional. Tenta,
pois, dialogar com outras formas de conhecimento deixando-se penetrar por elas." (SANTOS, 2003).
Não se pode criar nova forma de fazer ciência que seja relativa? E relativa a
quê? Pode-se perguntar. Resposta provisória: à história. Mas a história acabou,
diz Colom. Por quê? Certamente, não porque a memória da humanidade esteja
guardada em grandes computadores ou em livros, pois ainda há a história do
cotidiano, das relações pessoais e interpessoais, dos quase sete bilhões de
universos particulares que perambulam sobre a terra.
Caso Colom esteja certo e o humanismo moderno
morreu, ainda assim não significa a morte da ciência Filosofia e nem das demais,
pois elas também têm condição de se repensarem dialeticamente, porque, se todo
pensamento humano é filosofia, logo, a pós-modernidade (com o fim do humanismo,
como ele afirma), também é uma filosofia (visão de mundo).
A Modernidade,
paradoxalmente, como prometia a independência da humanidade em todos os
sentidos (técnico, econômico, social) em relação à natureza por meio da
produção tecnológica que hoje explora o espaço, se de fato acabou-se, fez o
homem de hoje, – pós-moderno? – esbarrar, no meio desse caminho
"glorioso" de um futuro promissor, em um obstáculo, uma "herança
maldita" moderna (prova de que seu conceito de totalidade era ignorante),
a saber: as transformações climáticas que estão causando desastres abissais em
zonas cada vez maiores do planeta. Não é novidade que as geleiras estão
derretendo aceleradamente e, caso derretam, causará grande destruição. Quem pensa
que as armas nucleares podem destruir o globo milhares de vezes e que, por
isso, superarão a força da natureza está enganado. A natureza não pode ser
controlada.
A questão climática passa pelo Brasil,
especificamente pela Amazônia. O mundo inteiro está, desde a Eco-92, discutindo
o que se pode fazer para não impedir o crescimento econômico e, ao mesmo, tempo
não destruir a natureza. Além disso, a Amazônia, especificamente, contém
minerais estratégicos como urânio, manganês, ouro, ferro que têm grande valor
comercial. Então, é claro que se trata de uma área de grande interesse nacional
e internacional.
2
Contextualizando a Amazônia
Para Aragón (2005),
as
expressões Amazônia, pan-Amazônia, Amazônia Sul-Americana, Região Amazônica ou
grande Amazônia, compreendem diferentes enfoques, discernimentos e
representações espaciais. De forma geral, estes termos definem a maior selva
tropical úmida do planeta onde também está o maior rio do mundo em extensão e
volume de água do planeta, o Amazonas.
2.1
A Amazônia e o indígena
Amazônida ou amazônico? Índio ou indígena?
O termo "amazônida", de acordo com
Ferreira (2004, meio eletrônico), refere-se a "todo aquele que nasceu na
Amazônia"; já amazônico "refere-se a tudo aquilo que, independente de
ser objeto ou pessoa, pertence à Amazônia". Sendo assim, para efeitos
técnicos nesse artigo, adotou-se a palavra amazônida para a discussão sobre a
cultura. Geograficamente, a região amazônica é formada pelos estados do Amapá,
Pará, Tocantins, Roraima, Amazonas, Acre e Rondônia, sendo esta a maior
cobertura florestal do planeta.
Quanto ao termo índio, de acordo com (HECK;
PREZIA, 1998, p. 12), o termo índio é um vocábulo equivocado e colonialista,
pois remota ao tempo da colonização do Brasil pelos portugueses quinhentistas.
Atualmente os antropólogos afirmam que ser indígena não é
uma questão biológica, racial, pois esses critérios são superados. Ser indígena
é uma questão cultural que diz respeito às ligações históricas com o passado.
[...] indígenas são todos aqueles que se consideram distintos da sociedade
nacional, por apresentarem uma ligação histórica com as sociedades
pré-colombianas [...] (Idem).
Sendo assim,
concorda-se aqui com o abandono do termo "índio" porque este denota
algo pejorativo (preguiçoso, hostil), termo criado pelos colonizadores que
queriam submeter o indígena a trabalhos forçados quando é impossível isso para
a maioria dos grupos.
2.2
Os grupos indígenas no Amapá e no Pará
Mapa do estado do Pará. |
De acordo com Gallois e Grupioni (2003), os
grupos indígenas da região do Amapá e norte do Pará são: Gallibi Marworno,
Palikur, Karipuna, Galibi do Oiapoque, Wajãpi, Aparai, Wyana, Tiriyó, Katxuyana
e Zo'é, os quais estão distribuídos em aproximadamente 118 tribos no Amapá e no
Pará.
Para as autoras, essas tribos têm uma
cosmologia em comum. A crença que compartilham sobre a criação do mundo é de
que no início o mundo era espacial e temporalmente indiferenciado.
No começo dos tempos não havia separação entre o plano
terrestre e o plano celeste, nem entre os diferentes domínios e espécies do
universo. Como explicam os Wajãpi: 'tudo era como a gente', ou seja, a origem
de todos os seres é humana, não animal. A separação ocorre no processo de
surgimento da humanidade como aponta a tradição oral desse povo, também pode
ser entendida como uma 'especiação', ou separação entre 'espécies' de seres.
Sendo as etapas que se sucedem após essa separação também recorrentes nas tradições
míticas de outros povos da região (GALLOIS e GRUPIONI, 2003, p. 67).
Para esses povos, a origem do mundo está associada à criação do espaço e
do tempo. Antes disso, havia a indiferenciação das camadas do universo e a
imutabilidade. A mitologia da criação consiste em um herói mítico chamado Janejar ou Kuyuri que no início estava só no mundo e criou a mulher para
conceber como esposa. Esse é o pai "primordial" de toda a humanidade,
que, segundo a crença, era imperfeita, daí justificar-se que o universo seja
destruído e reconstruído permanentemente para que a humanidade chegue à
perfeição. Os motivos mais comuns para que o universo seja destruído e
reconstruído diversas vezes pode se dá porque a Terra está povoada em excesso,
por causa dos conflitos entre os homens ou por falta de um comportamento
descente destes.
Outra crença comum é
a de que todos os seres que hoje são inanimados já foram animados um dia. Nesse
momento que se perde no tempo, todos os seres do mundo viviam num mundo
relacional. Homens e animais viviam juntos. Mas os homens eram criadores,
portanto, havia ações que os animais não sabiam fazer. Conta a lenda, que um
dia, um animal quis provar aos homens que sabia tanto quanto eles e resolveu
construir uma casa para dar uma festa, mas a casa fora mal construída e
desabou. O animal construtor e os demais animais acharam que o fato de os
homens não os terem avisado do perigo de desabamento foi um ato de traição e
por isso se refugiaram na floresta, vivendo longe dos homens. Os seres inanimados
também já foram humanos, mas desistiram de sê-lo por algum motivo (Ibid., p.
70).
Outro detalhe que
chama a atenção é a forma de se organizar socialmente. Para começar, os
diferentes povos da região têm calendários dos quais se utilizam para a
agricultura e ao qual são agregadas festas religiosas e ritos de passagem da
infância para a adolescência e desta para a vida adulta. Um costume em
particular pode ser destacado em que, ao contrário da sociedade Ocidental,
entre essas tribos geralmente é o marido quem vai morar perto da casa dos
sogros. Quanto aos chefes de tribo estes não esperam obediência de seus
"subordinados" como espera um chefe político "branco" ou um
rei, pois o chefe é, no máximo, considerado o fundador da aldeia, mas sua
administração depende de seus atos agradarem a coletividade da tribo. As
alianças políticas jamais são construídas à força, mas pela colaboração entre
todos. O chefe tem plena consciência de que não subsiste sem a ajuda de todos
os membros da comunidade, porque a comunidade não subsiste sem cada um.
Apesar da existência
das famílias, todas as aldeias dispõem de espaços que são usados coletivamente
como cozinhas e salas especiais para certos rituais religiosos ou sociais. De
acordo com Silva: "uma das maneiras pelos quais especialistas costumam
conceber os mitos inclui sua definição como narrativas orais". (2004, p.
323-4). Assim, ele contém a história originária de determinado povo, é seu mito
fundante. Como qualquer outro povo (gregos e romanos, norte-americanos,
alemães, ingleses e os brasileiros) tem seu mito fundante, os povos indígenas
também os têm. Por outro lado, para a mesma autora, o mito (no singular)
expressa uma linguagem, uma maneira especial de ver o mundo, categorias,
conceitos.
A partir disso,
percebem-se duas coisas: que uma das características marcantes da concepção
mitológica de mundo é o exercício da dialética, pois um indígena mais velho ao
contar uma história para um público permite que o público interfira na
história, de tal forma o mito nunca é um discurso pronto. Ao contrário, é
sempre polissêmico. E, por outro lado, só tem sentido se contado na língua
materna (indígena) da mesma forma que alguém que leia grego antigo entenderá
muito mais amplamente o universo de Homero em sua Odisséia. O outro ponto a destacar
é que, de forma positivista, o Ocidente sempre tende a classificar as culturas
como superiores e inferiores. Um erro que a pós-modernidade tenta corrigir,
pois nada garante a superioridade de uma cultura sobre outra. Por fim, cabe
destacar a noção de tempo que o mito mostra, um "tempo" cíclico de
destruição e construção semelhante à noção de tempo do Oriente.
2.3 O indígena e a natureza
Outra categoria de
difícil compreensão para o Ocidente é a relação dos povos indígenas com a
natureza. Assim como não existe indígena sem sua gente, não existe também
indígena sem sua terra, ou sua casa, pois é na terra, na aldeia, na comunidade,
que está sua história. No universo indígena, a própria casa faz parte do ser da
pessoa indígena. É na terra onde está fincada sua aldeia, que está seu
sustento, sua religiosidade, seus mortos que, mesmo mortos, em várias
comunidades, ainda fazem parte do cotidiano das pessoas. Além disso, os
indígenas, apesar de muitas vezes migrarem e fundarem novas aldeias, uma vez
que as terras de suas antigas aglomerações se esgotam para a agricultura ou a
caça e a pesca, diminuem: eles têm um modo todo especial de demarcar onde será
a nova comunidade. Isso significa que há toda uma "leitura" da
realidade (natureza) para demarcar a nova "casa". Outro fato
interessante é que em sua organização tem-se claramente a noção do limite de
espaço. A maioria das comunidades não tolera mais que trezentos indivíduos em
uma aldeia, quando há excedente de pessoas, se funda outra comunidade.
Indígenas da aldeia Waiãpi - Amapá. Foto: arquivo pessoal da profa. da rede pública do estado do Amapá Ronsângela Carvalho Nascimento. |
Como afirma
Junqueira (2002, p. 79), "privar o índio de sua terra é condená-lo à
extinção". E, para Balée (1993, p. 386), "os índios, nunca contribuem
para o aumento da poluição na atmosfera."
As sociedades indígenas amazônicas [...] não possuem
[...] uma política explícita de conservação, nem associações voluntárias
devotadas à preservação da biodiversidade, talvez pela simples razão que suas
atividades econômicas nunca as tornaram necessárias. Elas nunca tiveram um
Estado. As sociedades-Estado, com suas altas densidades populacionais, elevados
índices de consumo energético e tecnologias capazes de transformar os habitat
em qualquer parte do planeta sãos as únicas responsáveis pela emergente
justificadamente alarmante tendência a grandes depleções bióticas, e não a espécie
humana per se. Há ainda esperança; mas talvez apenas enquanto aquelas
sociedades não estatais como aquela dos índios amazônicos continuem existir (Idem).
Habitação típica da aldeia Palicur - Amapá. Foto: arquivo pessoal da profa. da rede pública do estado do Amapá Ronsângela Carvalho Nascimento. |
Essa passagem pode
justificar a atitude dos grupos de defesa da natureza no Ocidente que partem de
uma cosmovisão inclusiva e de uma relação de respeito à natureza e não mais de
exploração como promulgava a Revolução Industrial. Ainda pensa-se que, quando
um indígena não acumula bens nem tem a propriedade privada da terra, isso
significa que ele não é trabalhador. Somente quem já teve contato com um povo
indígena sabe que a maior parte do dia eles dedicam ao trabalho de
subsistência. E isso inclui o trabalho na lavoura, os ritos religiosos, as
atividades coletivas de socialização da caça e da pesca. O fabrico de bebidas e
remédios. Outro ponto importante a destacar é a ausência de propriedade privada,
postura completamente oposta ao capitalismo globalizado. Há ausência total de
consumismo. Pode-se ainda acrescentar que na cosmovisão indígena, originalmente,
não há prostituição e, apesar da existência de homossexualismo, ninguém é
desprezado ou sofre preconceito por isso. O indígena sabe que a vida em
comunidade torna-se impossível quando uns têm "tudo" e outros vivem
na miséria, outro argumento que mostra que na vida indígena a natureza é mesmo
"mãe" e o que ela produz serve para o homem ter uma vida feliz.
Por fim, quem afirma
que os indígenas não produziram filosofia, educação, ciência? Os homens
descendentes dos colonizadores europeus. Será impossível gerar conhecimento sem
fragmentá-lo? Parece que não. Sem querer afirmar que os indígenas estejam numa
"idade Média", o medievo europeu cristão subordinava as verdades
epistemológicas (ciências empírico-formais quase inexistentes, filosofia) ao
mito judaico-cristão. Ainda hoje, a sociedade Ocidental, mesmo com o decréscimo
de fiéis nas igrejas, diz-se cristã frente a um Oriente islamizado. Quer dizer,
a religião, mesmo sendo criticada por filósofos e sociólogos, na "hora do
aperto" serve para identificar (dar identidade) ao Ocidente. Quem é o
Ocidente para se afirmar "melhor" que outros povos? Seria a
tecnologia critério para isso? Ou a capacidade de destruição em massa? Ou,
agora no século XXI, o critério mais primordial, a preservação da natureza? Se
for, quem a preserva e quem a entende mais? A sociedade-Estado urbana, ou as
sociedades sem Estado, da floresta?
Provisoriamente,
pode-se afirmar que as principais conclusões a que se chega são: 1) Em se considerando a sociedade
ocidental dentro de uma perspectiva pós-moderna, a Amazônia com seu contexto
regional, local, multicultural, mas, ao mesmo tempo, globalizada pode ser
"classificada" como uma manifestação deste tipo de pensamento. 2) É
imprescindível que se tenha um respeito aos povos da floresta com suas
manifestações culturais, que, ainda, em grande parte, são desconhecidas. Ritos
de passagem, forma de organização social, religiosa e etc. Que direito tem o
homem "civilizado" de impor suas crenças religiosas ou científicas a
estes povos? É esse o mesmo erro que os colonizadores cometeram. Isso é bem
diferente de oferecer a medicina (remédios, procedimentos médicos e etc.),
pode-se oferecer, mas não se pode obrigar, esse é o princípio básico da
dialética. 3) Na atualidade, faz-se mister citar a questão ambiental. Os dados
são alarmantes: chuva de granizo em plena floresta (Oiapoque, 2007), tornados
no sul do Brasil (2009), inundações na Ásia (2009), derretimento rápido de
geleiras (2009).
Os modernos foram
ingênuos ao pensar que a natureza se regeneraria pura e simplesmente sem consequências
drásticas para os humanos. É certo que a natureza parece seguir um
"curso" lógico de estágios. Onde hoje há grandes desertos, um dia houve
florestas exuberantes e o homem não estava lá para destruir, mas hoje o homem está
e contribui enormemente para isso. Onde está a razão redentora iluminista? A
ciência "moderna" trouxe "felicidade" para todos? Por que
não se salva a humanidade por meio da compreensão do mito? Poesia? Por que não
se "juntam" os cacos do que sobrou do homem moderno no que se chama
pós-modernidade? Não se nega aqui o valor da ciência, mas será correto
valorizar apenas uma capacidade humana e desvalorizar outras? Somente o tempo
poderá confirmar quem está com a razão.
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* Professor na
Universidade do Estado do Amapá – UEAP. É graduado em filosofia pela
Universidade Católica de Pelotas/RS e Mestre em Ciências da Educação pela
Universidade Federal de Pelotas/RS. E-mail: filosofodocotidiano@gmail.com
[1] O autor não deixa claro
se se refere apenas às ciências empírico-formais.