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segunda-feira, 30 de março de 2015

HERMENÊUTICA DA MORTE



Gerson N. Lemos Schulz
Filósofo



O cenário de um velório me gerou esta reflexão sobre a morte. Ali, observando os túmulos (alguns abandonados outros imponentes) no cemitério, imóveis, cercados por flores murchas, secas, mortas... o choro, a tristeza da perda, o cheiro fúnebre das velas me penetrando as narinas... pensei no lugar que a morte ocupa no cotidiano e o espaço que damos a ela. Muitos a temem, mas ninguém pode afirmar absolutamente o que ela é. Para a ciência trata-se do fim das atividades de um organismo vivo. O fim das atividades cerebrais, já que o cérebro é responsável pelo comando das ações do organismo.

Mas ao contrário do que se pensa, não vejo a morte como experiência teológica. A vejo como experiência estética. Empiricamente, ninguém provou ainda que o homem possua uma alma imortal que sobreviva, e ainda mantendo sua identidade (pensamentos, lembranças, etc.). Muito menos determinou que haja um "lugar" para esta alma após a morte. Isso é, ainda, teologia. A estética é a parte da Filosofia que estuda os conceitos de beleza, belo, puro e seus contrários e se fundamenta num sentimento resultante de um conjunto de sensações internas ou orgânicas caracterizadas pelo bem ou mal-estar, tratando-se de um fundamento cenestésico. Você pode perguntar-me: "mas o que tem de belo no ato de morrer?" Respondo: depende do ponto de vista. E, ademais, não pode haver a "estética do feio"? Quando alguém afirma que algo é "feio" é porque tem algum juízo estético, o que nos permite pensar que o feio é também estético, porém, apenas, não se encaixa nos parâmetros estéticos de quem classifica algo como feio. E quanto ao "depende do ponto de vista" em considerar-se a morte passível de alguma beleza, é possível dizer que ela é bela no sentido do uso que a ela é possível dar. Por exemplo, o herói que morre para salvar outrem, sua morte (em si é 'feia'), mas no uso é "bela" quando alguém diz que o ato foi de um altruísta, heroico, exemplar! Assim, em termos filosóficos, me parece que a morte é uma experiência do corpo tal como a dor ou o prazer; e é a última, por sinal. De fato, morte é dor e é aí que ela se torna também estética.


Quando alguém morre num acidente automobilístico, nos milésimos de segundo finais de consciência, a dor do impacto se faz presente e é possível sentir a morte. O excesso de dor faz nosso cérebro "desligar" momentaneamente caso outros órgãos viscerais não tenham sido atingidos, ou para sempre, caso o corpo tenha sido irremediavelmente destruído. É o fim do eu.

Buda afirmou que tudo é dor. Mas talvez nem tudo. A vida também é prazer, e dor e prazer se relacionam com beleza e feiura, portanto: estética. E não é por acaso que castigo infrinja dor (é caminho para a morte), e recompensa incentive prazer, lembre uma "vida boa", uma vida bela. Igualmente, não se deve confundir prazer sempre com sexo. Ler, escrever, falar, comer, trabalhar, pensar e até rezar podem ser prazer para uns e outros.


Os conteúdos da vida são experiências estéticas: nascer, aprender, sentir dor ou alegria, saudade, raiva, tristeza, chorar, morrer. Nessa perspectiva, a morte não é passagem, qualquer ponte para outro lugar, nenhuma entrada para outro mundo. Ela faz parte da vida, é um ato concreto e também a última experiência do corpo.


Enfim, a morte é apenas a completude de um caminho iniciado na fecundação, sendo o fim de uma linha e não de um círculo em que se chega ao mesmo lugar de partida. A morte também é a experiência mais cruel, mais aterradora. Aquela que causa a dor permanente pela perda de alguém que jamais voltará. Quem fica é obrigado a viver "a" e "na" ausência do outro, além de ver prenunciado seu próprio fim. 

De outro ponto de vista, essa ideia pode levar à reflexão (a uma pedagogia da morte). Ajudar a pensar sobre o sentido do 'que se está fazendo', do 'que se vive' e transtornar a ótica da vida tal qual a cultura nos ensina, a dar uma segunda chance aos outros e a si mesmo sem que seja por causa do medo com que as religiões ameaçam àqueles que não perdoam. E por que não - quem sabe - fazer nascer uma nova ética. A ética daqueles que sabem viver e conviver sob a perspectiva da morte, nosso maior tabu.

Um comentário :

  1. Convivemos no mundo de hoje com essa perspectiva o tempo todo, meu querido professor Gerson. Parabéns pelo texto.

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