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sexta-feira, 17 de junho de 2011

ENSAIO SOBRE A ORIGEM DA CONCEPÇÃO DE IMORTALIDADE


Gerson Nei Lemos Schulz


* Este artigo contém "spoilers"




Quem quer viver para sempre? Esse é o título de uma música da banda "Queen" que foi composta em 1986 para o filme "Highlander, o guerreiro imortal", conforme nome no Brasil. O filme conta a história de um habitante de outro planeta que mora entre os humanos e cuja principal característica é ser imortal.

O primeiro filme da série mostra o personagem principal chamado Connor MacLeod descobrindo que é imortal. São duas histórias paralelas: uma que se passa em 1986 em Nova York e outra em que ele vivia na Escócia do século XVI. Na história que se passa no início da Modernidade, ele vive com uma companheira que, aos poucos vai, naturalmente, envelhecendo. Essa parte do filme acaba quando ela morre e ele vai embora da Escócia permanentemente jovem, pois não pode envelhecer nem que queira.

A questão central do filme é indagar o expectador sobre a possibilidade de um homem ser imortal e, sendo, o que ele faria com essa capacidade. E você, o que faria se pudesse ser imortal?

No filme dos anos 1980, o personagem vê todos aqueles que ele mais ama morrerem. MacLeod vive a morte de todos os outros menos a sua. E vive sabendo que se se envolver com alguém amorosamente, a mesma história se repetirá. Assim, o filme mostra o lado negativo de se ser imortal, em outras palavras, em vez de Connor MacLeod ser feliz, ele é infeliz devido às consequências de sua imortalidade.


Ouso dizer que a imortalidade desejada pelo homem desde que começou a compreender a morte, desde que a morte entrou no jogo cultural e adquiriu significado ontológico e não apenas filogenético, passou a ser desejada como forma de combate à morte e à natureza. O homem pré-histórico desejava tanto ser imortal para dominar a morte quanto dominar a natureza para ser o "homem". Desde então, não é mais possível ser-se homem sem impingir às gerações esse combate contra a natureza que é "cruel" (porque a morte é natural); estaria aí a crueldade da natureza.

Assim, o homem passou a ontologizar o corpo, ou seja, passou a ver nele e dentro dele, o espírito - uma criação, um símbolo seu - para driblar a morte, para amenizar a ausência do corpo morto, de si ou do outro, que pensava que lhe pertencia (seja o seu próprio corpo, seja o de uma esposa, de um filho, de um pai). Criou-se a religião, o conjunto dos ritos para entender e dominar a morte.

Oferenda de velas para uma árvore,
dias atuais

Nos tempos pré-históricos o homem praticava o tipo de religião chamado "animismo". Por não poder explicar os "mistérios" da natureza na qual estava plenamente imerso durante toda a vida e sofrendo seus efeitos naturais: do clima, da saúde, da doença, das colheitas, da caça, da morte; ele começou a dividir a natureza em feras, árvores, rios, lagos, montanhas e etc. então, logo o homem passou a representar estes entes naturais criando o "deus das águas" (mares, rios, lagos e canais, vitais para a manutenção da vida e para a troca de mercadorias e comunicação entre povos), a "deusa da chuva" (vital para a agricultura), o "deus dos trovões" (masculino, símbolo do poder), a "deusa da caça" (alimentos), a "deusa da agricultura" (alimentos), o "deus do vinho" (importante bebida para recreação e ritos religiosos, também bebida misteriosa devido, na época, ao inexplicável fenômeno da fermentação e dos efeitos do álcool). Mas a mais importante das divindades criadas nesse período e que aparece em quase todas as culturas, por mais diferentes que sejam, é a "grande mãe", a "Mãe Terra. A Gaia, responsável pela fertilidade de animais, plantas e homens. A figura da "mãe" é uma representação do cuidado e da manutenção da vida dos homens. O sol também é um elemento que cedo é tornado "deus" nas diversas culturas. Assim, a Terra, o sol, a lua são tornados "deuses" devido a importância que tinham para a sobrevivência humana, pois da Terra e da terra provinham tudo que o homem consumia, do Sol vinha a luz que permitia o trabalho, vinha o calor, as estações do ano. A lua permitiu o surgimento dos primeiros calendários e atribuiu-se a ela vários poderes mágicos. Após a sistematização das diversas religiões antigas como a etrusca, a grega, a romana e a cristã surgiram várias figuras humanizadas da "deusa Terra". Assim é o caso de Rhea Silvia e Sibele e, atualmente, seguindo essa tradição, é o caso da "mãe" mais famosa na cultura ocidental e cujas origens está também nas primeiras mães do período primitivo, trata-se da "virgem Maria" dos evangelhos. A "mãe de Deus" ou de Jesus.

Na pré-história as primeiras tribos humanas não enterravam seu mortos, eles eram deixados ao ar livre para seus corpos se decomporem. Com o tempo, o homem pré-histórico percebeu que os corpos deixados em grutas ou cavernas tinha um tipo de decomposição diferente porque decomposta a carne, os ossos se cobriam de carbonato de cálcio e o esqueleto era preservado por muito mais tempo. Praticamente esta era a forma encontrada para cristalizar a presença daquele que morreu. Os túmulos, assim, passaram também a ser local de adoração ao ancestral morto, lugar sagrado. Alguns povos acreditavam, inclusive, que o espírito do morto permanecia junto ao seu cadáver e por isso eram ali depositados comida, água e seus antigos pertences.


Atualmente se acredita que esse fenômeno de enterrar os mortos tenha se dado por volta de 35.000 anos a.C.. Com o ritual de enterrar os mortos, criou-se aí a ideia de que a terra "comia" tudo e todo aquele que morria. Que a vida do homem sobre o planeta estava eternamente submissa aos desígnios da natureza. As mesmas chuvas que alimentavam a agricultura também causam inundações e morte. O mesmo vento que soprava os rios, causava estragos.




Exemplo típico de uma montanha sagrada:
o Monte Sinai no Egito, importante ponto
religioso para o judaísmo e o cristianismo





Com a incompreensão da morte, os povos que habitavam florestas ou próximo a elas criaram uma gama de deuses e deusas para expressar o desconhecido. Era comum na idade da pedra lascada as tribos existentes oferecerem à floresta de onde extraiam seu alimento a melhor parte desse alimento como forma de agradecimento pelo alimento que a floresta proporcionava. As comunidades que compartilhavam uma vida próxima a um rio ofereciam ao rio a melhor parte da pesca proporcionada pelo rio. Os povos que viviam perto de montanhas costumavam atribuir à montanha algum valor sagrado, dizer que nela habitava algum "deus" protetor daquela aldeia. Também, em comum, homens e mulheres deste período passaram a atribuir aos "deuses" o poder sobre a morte porque pensavam que seus deuses eram imortais. Uma conclusão extraída da observação de que mesmo que os humanos morressem, determinado rio, floresta ou montanha permanecia "eterno".

Representação do deus grego Zeus

Quando surgiram as primeiras civilizações, surgiram as organizações religiosas (zoroastrismo, budismo, judaísmo, xintoísmo, hinduísmo, cristianismo, islamismo). Essas religiões sistematizadas com seus códices, ética, sua moral, controlada por um sacerdote ou grupo de iniciados, ligou-se à organização política das primeiras civilizações. No mundo antigo a política estava subordinada, em algumas culturas como as do Oriente Médio (Mesopotâmia), aos sacerdotes. Isso também ocorria no antigo Egito onde o Faraó só podia ser eleito dentre os sacerdotes. Na Grécia antiga havia a democracia, porém em todas as cidades-estado sempre houve uma forte influência dos sacerdotes sobre os políticos e sobre o povo em geral que costumava procurar os adivinhos ou oráculos para saber se determinada ação sua no mundo dos negócios ou em outra esfera social daria certo. Em Roma, durante o período imperial, os imperadores se autodeterminavam filhos dos deuses ou os próprios deuses.

Representação do Imperador
Romano Constantino
Em 313 d. C. quando o imperador Constantino decretou o cristianismo como a religião oficial do Império Romano que abarcava toda a Europa, parte do Oriente e o Norte da África, os valores cristãos católicos passaram a ser obrigatórios em todas as esferas sociais. A igreja romana, juntamente com o Estado, mandava na sociedade. Seus ritos, sua moral, sua ética, a "tradição" (que é o conjunto das crenças da fé construída por uma autoridade religiosa ou por um colegiado de autoridades e que deve ser perene), a palavra de seus documentos, passou a valer.

Mas em relação à sistematização da imortalidade na Índia, muito antes do cristianismo, os orientais já produziram um conjunto de valores que incluíam a ideia da existência de um "espírito" que é imortal e que poderá retornar ao mundo no futuro por meio da reencarnação. No Egito antigo a crença na reencarnação era comum, daí as múmias, pois os egípcios acreditavam que o espírito retornaria ao mesmo corpo por força dos deuses, então para preservar os corpos, os mumificavam. O detalhe é que a reencarnação para os egípcios se daria no mesmo corpo, fato que se chamaria "ressurreição" nas culturas babilônica, caldeia, assíria e judaica.

Na Grécia antiga os filósofos Pitágoras, Sócrates e Platão pregavam a existência de um espírito imortal nos homens e mulheres e a reencarnação, porém - em parte - nos mesmos moldes dos orientais, porque esta se daria em um corpo diferente e em outra vida, em outro tempo histórico, mas diferentemente da crença oriental, todo homem e toda mulher reencarnaria diversas vezes até "pagar" por todas as suas más ações praticadas em vidas passadas (essa é a versão ocidental de Karma).


Múmia Egípcia

Já no oriente, para o budismo, por exemplo, Karma significa em sânscrito, ação, portanto, a reencarnação na cultura oriental e o Karma significam que todo homem e mulher deve reencarnar para "equilibrar" todas as suas ações (Karma). O Karma, nesse caso, não é, como para os ocidentais - uma dívida. Ele é a compreensão de que toda ação feita por um ser-humano envolve igualmente uma reação que deve ser equilibrada. Não sendo possível, por exemplo, reequilibrar uma ação homicida (no caso de alguém praticar um homicídio na atual existência), o homicida deve reencarnar para, talvez, sofrer na outra vida o mesmo ato que praticou contra outrem ou algo parecido. O Karma pode ser também positivo, de forma que se alguém em uma existência anterior praticou o amor ao próximo, em uma existência futura receberá essa mesma prática de volta.

Nas visões culturais do oriente (China, Índia, Japão), a imortalidade não é somente uma capacidade humana, ela é o fundamento de toda a história que é cíclica, pois um espírito (a pessoa) deve encarnar e reencarnar várias vezes, ciclicamente. Então, a história para aqueles povos não é linear como no ocidente (em que o fim da história se dará quando acontecer o "Juízo Final" bíblico). O ciclo de uma existência só se fecha no oriente quando o espírito individual de alguém merecer se fundir com Brahma e se transformar em "deus", diluído no universo.

Hippolyte Rivail
1804-1869
No ocidente cristianizado de hoje a ideia de reencarnação ficou no ostracismo por centenas de anos devido aos esforços da igreja católica em pregar a ressurreição, ideia que vem da tradição religiosa do oriente médio, especialmente judaica e também adotada pelo islamismo, surgido por volta de 672 d.C.. Ressurreição e reencarnação são conceitos muito diferentes.

Reencarnação significa que existe um espírito imortal que encarna, se faz carne, vive e morre. Quando o corpo morre ocorre o desencarne, então o espírito segundo a concepção platônica sofre um processo escatológico. Caso o espírito enquanto encarnado tenha realizado boas ações (éticas, morais, praticante da justiça) ele vai para a "ilha de bem-aventuranças", caso não, vai para os mundos inferiores onde poderá ficar por longo tempo até ser resgatado e se preparar para reencarnar (sua segunda chance) para tentar praticar na nova vida terrena boas ações. Esse conceito foi recuperado no século XIX por um francês chamado Allan Kardec (Hippolyte Rivail) fundador do "espiritismo moderno".

Ressurreição, por outro lado, tem origem nas culturas do oriente médio como egípcia, caldaica e judaica e significa que homens e mulheres têm um espírito imortal que se faz carne pela vontade de "deus" (o 'deus' judaico-cristão, por exemplo). Após a morte do corpo físico, esse espírito que é imortal retorna para as mãos de "deus" e lá permanece até o dia do Juízo Final (no caso do cristianismo) quando, igualmente pela vontade de Deus, ressuscitará, ou seja, o espírito acordará e receberá novamente uma carne para habitar, um corpo semelhante àquele que tinha quando vivia na terra, em aparência física e intelectual, porém esse novo corpo será imortal, imperecível e eterno. Para o cristianismo, aqueles que até o dia do "juízo final" não seguiram a doutrina cristã, não praticaram o bem em vida, não terão segunda chance como na concepção da reencarnação, pois irão para o inferno onde permanecerão para sempre.

Em uma visão filosófica atual se pode afirmar que não é o fato de muitos acreditarem em uma religião que a torna algo verdadeiro. As filosofias de Friedrich Nietzsche (1844-1900) e de Marx (1818-1883), por exemplo, inferem que a religião é um jogo fundado sobre estruturas fixas que não passam de máscaras que criam uma realidade como um mosaico cria a ilusão da compreensão da totalidade. A infra-estrutura da religião é "deus", a hierarquia, sua superestrutura. Não existindo "deus", todo o resto desaba. Rui o alicerce. Perde-se todo sentido do discurso do sacerdote que não passará de um jogo de palavras (máscaras) para esconder uma realidade, a morte, e o fato inegável que ela continua sendo a ausência do outro/a. Claro, essa concepção filosófica é materialista. Ignora qualquer transcendência. Não considera e nem se preocuparia em investigar ou explicar os fenômenos espíritas, o sentimento de fé das pessoas, os "milagres" ou curas inexplicáveis pela ciência atual.


O que Marx e Nietzsche, cada qual a seu modo, fazem refletir é que desde quase sempre os seres humanos almejaram ser imortais e para isso tentaram criar uma "máscara" - como diria Nietzsche - sobre a realidade para dominá-la. Sem discutir aqui a validade ou não das religiões, a tese que esses filósofos defendem diz que a ideia de imortalidade é mais uma ideia "fonte". Nietzsche diz que a religião é uma fonte de poder, primeiro porque desde o início o homem atribuiu o poder a algo além dele mesmo, incompreensível, os deuses. Mas esse atribuir poder aos deuses foi também atribuir poder a si mesmo porque à medida que o homem dá poder a determinado "deus", entre estes, a imortalidade, o homem acredita que também, por existir algo maior que ele e que é imortal, ele mesmo também poderá, um dia, gozar desse benefício, a imortalidade.

A partir daí surgem os iniciados, aqueles que dominam a ritualística religiosa. Aqueles que conhecem mais que todos os mistérios, as formas de agradar aos deuses, os períodos corretos para se fazer as oferendas. Então aparece, conforme diz Nietzsche, o sacerdote e, com ele, o poder de controlar as pessoas da comunidade que comungam da mesma fé. O sacerdote, para Nietzsche, ao se autodenominar o conhecedor de "deus", se proclama tal poder que é imediatamente reconhecido pelos outros que se tornam seus subordinados pensando que se submetendo aos desígnios do sacerdote, se submetem à vontade dos deuses. Não é a toa que em boa parte das culturas antigas o sacerdote era também o rei ou imperador e toda sua linhagem era considerada divina.


O filósofo
Nietzsche

O grande problema que Nietzsche e Marx veem na religião é a manipulação e o mascaramento de determinadas realidades. Para eles que defendiam a tese de que a religião em geral não é sagrada porque é apenas uma interpretação humana de certos fenômenos "inexplicáveis", a religião é um instrumento de manipulação das pessoas. A exploração das fraquezas humanas como o medo da morte, da dor, da doença, por meio de promessas cujo cumprimento se atribui aos deuses mediante oferendas ou ritos, orações, cânticos e sacrifícios - humanos em algumas culturas antigas e de animais ou vegetais em culturas animistas ainda  hoje existentes.

Para finalizar este discurso sobre a imortalidade, retomo o enredo do filme que serve de base para essa reflexão. "O Guerreiro Imortal" que veio de outro planeta simboliza o que foi dito. Ele não pode passar a propriedade da imortalidade para ninguém que viva na Terra. Ele mesmo só permanece imortal se realizar um sacrifício, o de outros guerreiros como ele que - apesar de serem imortais - têm um ponto fraco, morrem se cortarem suas cabeças. A cabeça, símbolo do controle, do poder. No segundo filme da série chamado "Highlander II: The Quickening" (Highlander II: A Ressurreição"), o personagem Juan Ramirez, morto no primeiro filme, retorna à vida. Ele ressuscita porque volta à vida no mesmo corpo que possuía, reconstituído.


O highlander Juan Ramirez
(Sean Connery)



A imortalidade não traz a felicidade ao personagem porque o próprio tempo - que é infinito - torna a vida entediante. O personagem vive apenas a morte dos entes queridos e está, como os deuses gregos antigos, condenado à vida, a ser imortal; logo, ele não poderá nunca ser humano porque somente o elemento humano é mortal.


Mesmo que exista um espírito imortal em toda mulher e em todo homem, ainda assim a morte persiste enquanto fenômeno físico. A morte do corpo físico é a fronteira e a compreensão limite de todo feito humano. Qualquer homem ou mulher sabe que morrerá, que seu tempo na Terra acabará mais dia, menos dia. E esta certeza torna a própria vida aqui relativa.


Enfim, a luta diária, a ambição pela riqueza, o desprezo pelos outros, a mesquinharia, o amor ou a paixão, tudo o que as pessoas fazem aqui se torna insignificante diante da morte. O corpo, única certeza humana, perecerá. Nem ele é propriedade eterna. Por outra perspectiva, o desejo da imortalidade é mais que religião, é arte - catarse - porque alguém que se pense imortal, ainda que seja pela graça de um "deus", tem forças para continuar sua caminhada terrena, motivo para procurar significados onde aparentemente reina o caos. Isso é um paradoxo! O paradoxo está em pensar que a vida na Terra perece, mas que para que a possamos viver, é preciso também pensar que a morte individual é que dá significado à existência. O paradoxo está em que para continuarmos vivendo na Terra necessário se faz acreditar na imortalidade do espírito e para merecer essa imortalidade, necessário se faz viver aqui na Terra. E parece que é este paradoxo que é a motivação para que as pessoas continuem sua vida, mesmo que ela seja finita e entediante!

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