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sexta-feira, 25 de julho de 2014

ANÁLISE FILOSÓFICA DO FILME: O SENHOR DAS ARMAS



Gerson Nei Lemos Schulz


Como dizem os atores Nicolas Cage e Jared Leto, interpretando os personagens Yuri Orlov e Vitaly Orlov em "Lord of War" ou "O Senhor das Armas", no Brasil, cap. 2): Yuri Orlov entra na cozinha do restaurante de seus pais e, após provar a comida que seu irmão está cozinhando e fingir passar mal (ironizando o irmão), ao sair lê, em uma placa, na porta do recinto: Beware of the dog. Ele, então, pergunta a seu irmão: Cuidado com o cão? Você não tem cão, tá assustando as pessoas? Vitaly: Não, é para me assustar, para me lembrar de ter cuidado com o cão em mim, o cão que quer destruir tudo que se mexe, que quer lutar e matar os cachorros mais fracos. Acho que é... para me lembrar de ser mais humano. Yuri: Ser cão não faz parte de ser humano? E se essa fosse a melhor parte de você, ser cão? E se você fosse apenas um cão de duas pernas? Ocorre uma pausa e Vitaly diz: – Você precisa de ajuda. Yuri ironiza: – 'tá fedendo aqui.

Existem mais de 550 milhões de armas de fogo em circulação no mundo,
isso equivale a uma arma pra cada doze pessoas no planeta.
A única pergunta é... como podemos armar as outras onze?

Yuri Orlov/Nicolas Cage
In: O senhor das armas. Propriedade da
Entertainment Manufacturing Company,
Ascendant Pictures,
Saturn Films, USA: 2005.

Essa fala dos atores supracitados sintetiza bem o que o filósofo alemão do século XIX, Friedrich Nietzsche, já mencionava em sua obra: "A vontade de potência". Lá, Nietzsche nos leva a refletir sobre a moral e sua função controladora e repressora. Para ele, a moral é repressora à medida que impede o homem de ser aquilo que determina sua natureza humana, isto é, exercer os predicados de sua parte animal.

Para Nietzsche, toda a moral ocidental associou ser racional a ser moralista e isso representou o certo, o bom e o belo desejável em oposição ao ruim, ao feio e ao indesejável. Assim – no mundo antigo – Sócrates estabeleceu que a vida física não era a mais digna de ser vivida, mas que ela era apenas preparação para a outra vida – a da alma – a verdadeira vida, porque era eterna, uma vez que Sócrates dizia que a alma era imortal.

O mundo cristão medieval endossou várias ideias de Sócrates descritas sob o entendimento de Platão; mas é claro, renegando, por exemplo, a ideia de reencarnação, impossível para o cristianismo. De qualquer forma, mesmo com o cristianismo entendendo que o homem não tem uma "alma", como diziam Sócrates e Platão, mas "pneuma", um "sopro divino" que, após a morte, volta para Deus e que renascerá em novo corpo somente no dia do Juízo Final, ainda assim, a ideia de que essa vida é apenas uma preparação para uma próxima, "melhor", persiste, pois as igrejas cristãs afirmam que a próxima vida será melhor que esta e será em plenitude.

Immanuel Kant 1724-1804
Autor de "Crítica da Razão Pura"
Conhecido por ter expulsado Deus
pela porta da frente em seu projeto filosófico
e o readmitido pela porta dos fundos.


A Modernidade, por outro lado – embora nasça no bojo da Reforma Protestante de Lutero e desencadeie o Iluminismo europeu – ainda não conseguiu se livrar dessas ideias, mesmo com vários pensadores tentando desmistificar o cristianismo da igreja católica ou protestante como arcabouço teológico e filosófico. Ainda não se substituiu a ética cristã que impregna o direito e a moral ocidentais, desde a idade Média, por outros valores. No mundo medieval a ordem era seguir o rei porque ele estava no poder endossado pelo Papa e este era Papa, porque "deus queria". Na modernidade, mesmo após a substituição do rei pela República, a ordem estabelecida ainda mandava adorar o Estado, e as igrejas ainda serviam de veículo ideológico poderoso para convencer o povo a obedecer as leis. Nem Jean-Jacques Rousseau ou Immanuel Kant conseguiram elaborar uma ética que escape dos preceitos cristãos, ainda que suas propostas tendam a um tipo de racionalismo.

Nietzsche, por seu turno, tenta construir uma filosofia que faz um retorno, um retorno ao homem como um todo, procurando, nas entrelinhas, o homem integral que ele chamava de "além-do-homem". Esse ser humano que, ao mesmo tempo é capaz de atos heroicos, sublimes, corajosos e em defesa até de outrem, mas também dos atos mais violentos, mais desprezíveis – na ótica cristã – e mais egoístas para defender a si próprio, esse é o homem real. Para Nietzsche, o homem não é o que querem os valores cristãos. O homem teria sido, para ele, "estrangulado" pela moral socrático-cristã. Para Nietzsche, tal qual para Hobbes e Kant, o homem não é bom nem mau, ele é egoísta. Assim, estariam equivocadas as religiões que preconizam que o ser humano é "mau" por natureza e por isso ele, o homem, precisa "lutar" pela sua salvação. Caso o ser humano não seja mau, como dizem os religiosos, perde o sentido esse esforço em ser "bom", em salvar sua alma. Perde o sentido buscar sentido para a vida que não seja aquele que ela mesma apresenta: lutar, cada um por si mesmo, para satisfazer suas necessidades básicas.

Friedrich Nietzsche
1844-1900
Nietzsche nos faz pensar que é um erro afirmar que ser egoísta é "errado". Para ele o erro está em sufocar o egoísmo, porque é graças ao egoísmo que cada indivíduo pode se manter vivo. É do egoísmo que sai a "vontade de vida". O único sentido mesmo da vida, então, que não é metafísico, é suprir esse egoísmo. Logo, Nietzsche diz que o cristianismo erra ao apregoar que a principal motivação da vida de cada homem e mulher é desmantelar esse egoísmo. É um erro acreditar que se esse egoísmo desaparecer, teria-se a paz. É por isso que, para Nietzsche, o cristianismo, em vez de promover a vida, ele a renega. A renega ao dizer que o egoísmo deve desaparecer para dar lugar à compaixão. O filósofo conclui, daí, que o cristianismo é a religião do niilismo, porque mata a vontade de viver ao matar o egoísmo do homem. Então, em vez de combater o niilismo, o cristianismo o promove, quando reprime e tenta matar a motivação da vida, que não é só o egoísmo, mas os instintos em geral.

O cristianismo é então (como ele diz em sua obra "O Anticristo") uma praga! Praga, porque insiste que o homem é pecador, que nasce doente pelo pecado – como dizem as igrejas cristãs. E se essas ideias de pecado, de culpa desaparecessem, ainda se precisaria da igreja, de "deus"? Não desapareceriam as ideias de bem e mal, bom e belo, ruim e feio? O homem não reconheceria – por fim – que sua "natureza" é amoral e que as regras morais que conhecemos são ficções criadas pelos "melhoradores" ou "reformadores" da sociedade – igreja, Estado, comunidade? Mas, mais ainda, corroborando as perguntas, Nietzsche – e no século XX, Foucault – nos fazem perceber que as convenções sociais, a moral, a ética de determinada comunidade – em suas entrelinhas – sempre delegam "poderes" a alguém (àqueles que criam os valores: como o sacerdote no passado – hoje padres, pastores, líderes religiosos em geral; ao guerreiro – hoje ao chefe militar –; ao dirigente do Estado – presidente ou Parlamento). Todos esses agentes exercem sobre as demais pessoas o poder, o controle. E Foucault ainda nos pergunta: "por que nos submetemos a este poder?" Responde ele: "porque o poder é uma relação, ele está diluído nas estruturas da sociedade.

O poder se manifesta não somente de cima para baixo, mas de baixo para cima também" (aqui citado livremente). Em outras palavras, Foucault nos faz pensar que aceitamos o poder político, econômico, moral, ético não porque sejamos submissos a ele, temamos as autoridades, mas, porque em nosso íntimo, também desejamos o poder. O seguinte exemplo ilustra essa tese: uma pessoa pode ser pobre, trabalhar como "flanelinha" no trânsito. Alguém poderia classificá-la facilmente como uma pessoa "oprimida" – sob a ótica maniqueísta marxista ortodoxa – por exemplo; mas essa análise é apressada, pois da mesma forma que tal pessoa é pobre, é "oprimida" pelo Estado que não dá condições suficientes para que ela estude, tenha emprego e goze das benesses da civilização, ela também exerce poder. Onde? Em um exemplo nosso, quando ameaça, veladamente, arranhar o carro de um cidadão que estacione pelas ruas das nossas cidades e que não aceite a oferta de seus "cuidados". Quem é que se sente livre e à vontade para recusar a "ajuda" do flanelinha? Não é porque, embora de forma velada, o cidadão tema que a recusa signifique que o ofertante arranhe ou danifique seu bem?

Michel Foucault
1926-1984
O "oprimido" também exerce poderes em casa com sua esposa e filhos, quando está no controle da casa. A mulher "oprimida" pelo empregador pode por este ser explorada, mas também pode oprimir seus filhos ao espancar-lhes. Pode oprimir, com palavras ou atos, a sogra idosa a quem "cuida", o cunhado doente, a mãe senil. Inspirado no conceito de "vontade de potência" de Nietzsche, Foucault dá um passo além de Marx. Se para Marx, há quase como que opressores e oprimidos "puros" e o poder é sempre opressor e vertical, para Foucault, o poder é horizontal. Ele está no centro, mas também na periferia.

Apesar de todas as suas críticas à moral, Nietzsche não propõe o império da "barbárie" e da "imoralidade". Pensar com Nietzsche significa repensar nossos padrões de conduta moralistas – pensar em quão é realmente possível seguir, com a possibilidade de se ter alguma felicidade, os padrões que as religiões determinam para o homem.

A filosofia de Nietzsche nos leva a outras perguntas como: há legitimidade e autoridade em algumas pessoas que se dizem evangélicas e que não ingerem bebidas alcoólicas, mas desejam, em seu íntimo, que todas aquelas que não pensam como elas vão-se para o inferno?

Que autoridade tem um crente para "condenar", agredir, difamar outras pessoas que não acreditam na Bíblia, no Corão, no Bagavadguitá? A resposta também serve para a pergunta contrária: Tem autoridade um não-crente para condenar, agredir ou difamar quem acredita?

Nietzsche nos provoca – como devem fazer os filósofos – a pensar: como seria se o homem fosse e agisse 'naturalmente'? Sem se reprimir com a moral, com a religião, com as tradições, com seus preconceitos sobre o mundo e sobre si mesmo?

O que podemos perguntar depois de Nietzsche é: que fundamento terá nossa razão se ela também não passar de mero instinto de sobrevivência?
E a relação entre o poder e a violência?

Para a filosofia nietzscheana, a violência também faz parte do ser humano, pois não há sociedade que até hoje não tenha elaborado algum tipo de manifestação violenta.

Os antigos sumérios sacrificavam pessoas aos deuses. Babilônios, astecas e maias também. Os judeus, gregos e romanos sacrificavam pombos, bodes e bois a seus deuses. Algumas religiões animistas, como certos desdobramentos do candomblé, ainda o praticam. Na mitologia judaico-cristã, a divindade exigiu o sacrifício do personagem Jesus para que a humanidade fosse salva. Na missa, os cristãos "comem" e "bebem" seu "deus" por meio da hóstia e do vinho.

A violência também é praticada pela mãe com o filho(a) no ato, considerado por muitos um "ato pedagógico" de bater na criança para educá-lo(a), para impor-lhe limites. A violência é exercida por todo aquele que, de alguma forma, lança mão de força física ou psicológica para doutrinar seu cão, seu gato e etc. E, aqui, uma pergunta: o que é doutrinar, senão fazer com que outrem (o filho, o cão, o gato) se comportem dentro de certas regras que o doutrinador quer? Duas perguntas capitais saem daí: "que direito tem alguém de se intitular doutrinador? Se, supostamente, sua doutrinação parte do princípio de que este quer que sua vontade predomine. E: por que, então, tem que predominar a vontade de uns sobre os outros?" É isso que significa o exercício do poder, mas, para Nietzsche, também do egoísmo.

Mas para Nietzsche não é assim tão simples. Sua resposta é mais elaborada. Para ele, isso é a "vontade de potência", e é um ato presente em todo o universo. Do átomo à célula. Ele diz que as espécies animais têm a vontade de potência e ela se exerce quando esses animais procuram se reproduzir, quando eles entram em conflito pelo alimento, pela água, pelo território. Isso, para Nietzsche, é o exercício pleno da busca pela satisfação do egoísmo, mas de um "egoísmo positivo", sendo que é devido a essa busca que a vida tem sentido de ser vivida. A "vontade de potência" é esse ato de querer desenvolver-se além daquilo que já se é. A semente tem o princípio de ser árvore e luta para se desenvolver em plenitude. O animal filhote luta e mata outros para ser o dominador e garantir para si território, caça, fêmeas para se reproduzir. E o homem, faz diferente?

Para Nietzsche o homem age da mesma forma, apenas por outros meios.

Assim a violência é uma das formas de manifestação da "vontade de potência". Daí posso induzir, para analisar a fala do personagem Yuri Orlov no filme "O senhor das armas" que a violência está institucionalizada. Ela se institucionaliza antes mesmo da concepção. Afinal, para que alguém nasça, alguém tem que lutar para que nasça. Ao nascer, se conseguirmos sobreviver às dificuldades do útero, somos vencedores, mas "matamos" nossa mãe que, durante a gravidez, nos dá, mesmo que não queira, seus melhores nutrientes corporais, suas forças para que nasçamos. Depois é a família que nos doutrina, imbuída da cultura dominante e, cuja doutrinação, caso não sigamos, nos penaliza, nos castiga. E o comportamento da religião não é diferente. Tem-se, por exemplo, em três grandes religiões contemporâneas (judaísmo, cristianismo e islamismo), a exibição de exemplos de mártires que morreram por, ou em nome de Deus. E essas três religiões clássicas sempre exigiram batismo de sangue para seu 'deus'. O judaísmo, porque valoriza o sacrifício, a morte por entrega a 'deus'. Deus acima de tudo! O cristianismo católico, pela valorização do sangue de seus "mártires" perseguidos pelo "amor à palavra". O islamismo também embarcou na mesma filosofia, pregando a "guerra aos infiéis"!

Mesmo correndo o risco de o leitor pensar que estou "inspirado pelo diabo" em minha análise, me arrisco a endossar que grandes fatos históricos são frutos direto de ações consideradas violentas. Egípcios, Babilônios, Persas conquistaram Ocidente e Oriente, levando de um extremo ao outro do mundo os numerais arábicos, as noções de contagem, escrita, organização político-militar, a pólvora, o astrolábio, tudo  graças às guerras. Como diria Nietzsche, graças à vontade de potência.



Gregos, judeus e romanos também promoveram guerras. Será que restaria, hoje, alguém do povo judeu caso o mítico personagem Moisés não tivesse assassinado um guarda egípcio – uma ação violenta que causou a morte de uma pessoa que cumpria as leis de seu país – para libertar seu povo? Israel de hoje existiria se Moisés não incitasse seu povo a combater e massacrar os filisteus que habitavam a chamada "terra prometida" para dela se apossar?

E Alexandre, o Grande, se ele não tivesse conquistado o mundo oriental, teria ocorrido a helenização? E, no mundo medieval, não foram os próprios cristãos que usaram a violência física e ideológica para dividir e conquistar outras culturas, afirmando que o que faziam era em nome de seu "deus"?

O desafio ao leitor é não pensar nesses fatos como "bons" ou "ruins". Uma guerra não é boa nem má. Ela é um fato. A intencionalidade dos atos que se praticam com elas é que alguns classificam como bons ou maus.

Com a perspectiva de Nietzsche, é possível afirmar que, na modernidade, a escravidão alavancou os grandes impérios fisiocratas, o comércio, a Revolução Industrial. Que o capitalismo, com as 20 horas ou mais de trabalho imposto aos operários do século XIX, propiciou o exercício da "vontade de potência" da Inglaterra, Estados Unidos da América, França, Itália, Alemanha e outras nações industriais. Da mesma forma, se deu nos Estados "socialistas", pois, em nome da justiça plena, equanimidade... aqueles países também investiram altos esforços humanos (com sacrifícios e exploração e expropriação de pessoas e animais), para alcançar e manter um nível elevado de progresso técnico-industrial.

E, na pós-modernidade tem-se, ainda, a violência simbólica, denunciada por Bourdieu e Passeron, que é aquele tipo de violência que nos cercava e nos invadia nas propagandas de cigarros (lembrando que, nos anos 1970, era bem cotada socialmente a pessoa que fumava, e que alguns médicos indicavam o fumo como medicamento contra o cansaço mental, hoje conhecido como estresse), bebidas (como a propagação de que consumir bebida alcoólica significa autonomia, emancipação). E, ainda hoje, a "família feliz" branca e de classe média alta da propaganda de margarina.



De volta ao "Senhor das Armas", o filme mostra que a guerra sempre existiu e que a violência está aí e todos a praticam em maior ou menor escala. Ela sempre deu lucros para governos, fábricas de armas, contrabandistas, traficantes. É o instrumento fundamental dos soldados. Mundo afora muitos empresários, staffs governamentais e políticos perderiam o poder caso não dispusessem de exércitos poderosos pelas armas, especialmente pelas armas de fogo. "As balas mudam os governos mais rápido do que os votos", diz no filme o personagem Simeon Weisz, um mercador internacional de armamentos.

A maioria das Constituições de países pelo mundo permite a seus cidadãos terem armas de fogo. Em vários países árabes as pessoas podem ter em casa fuzis como a famosa AK-47. Na Suíça a maioria dos cidadãos têm em casa – sendo por ela responsável – fuzis que serão utilizados para a defesa daquele país em caso de guerra, já que a Suíça não tem um exército regular, mas todos os cidadãos são militares. Na África, há localidades (e isso não é simples piada do filme "O senhor das armas") em que se pode comprar fuzis, metralhadoras ao preço de uma galinha. As armas sempre fascinaram a humanidade. Elas sempre permitiram a uns esmagar outros. Aos exércitos – cujos reis desejavam conquistar territórios vizinhos para aumentar a área de gozo de seus cidadãos e também o seu poder – conquistar terras, cidades, fortunas, riquezas minerais.

A Segunda Guerra Mundial, especialmente, permitiu avanços tecnológicos imensos como o aperfeiçoamento do colete salva-vidas (à custas das experiências com seres humanos vivos, realizadas pelos alemães), o nascimento dos foguetes modernos, de bombas melhor elaboradas jogadas de aviões. Aperfeiçoou-se a aviação militar, donde, posteriormente, a civil. Os transportes e logística no século XX. E o que está por trás de todo esse progresso? Qual sua motivação? A "vontade de potência" de que nos fala Nietzsche?


E a violência é o instrumento pelo qual essa "vontade" se realiza, geralmente, embora não a única.

Após a institucionalização do Estado entre os seres humanos, iniciou-se a tradição – e surgiram várias filosofias – para justificar que o melhor para a humanidade se manter viva era abandonar o que Hobbes, no século XVI, chamou de "estado de natureza" (a barbárie) pelo "estado de paz", que seria garantido pelas leis, costumes, pela moral e pela ética. Acreditou-se, a partir daí, que a humanidade "melhoraria", progrediria. Que a violência deveria ser erradicada e que ela desapareceria, porque as pessoas perceberiam que é muito "melhor" viver em uma sociedade em que ninguém se mata por uma fonte de água, por uma peça de caça, pela "posse" de uma parceira sexual.

Freud chega mesmo a dizer em "O mal-estar da cultura", de 1930, que o homem "sacrificou a liberdade que possuía no Estado primitivo de barbárie pela segurança da vida em sociedade." Mas, ele pergunta se o sacrifício compensou ao homem, e termina sua reflexão sem nos dar uma resposta.

Guerrilheiras das FARC.
Na luta por sua "vontade de potência"?

É claro que ninguém gosta da violência urbana que aumenta em nossas cidades a cada dia, tanto em países ricos e pobres. Porém, quando se fala em violência é comum as pessoas lembrarem-se de assassinatos em periferias. Guerras de traficantes e as forças de segurança do Estado. Lembra-se também das guerras distantes para nós brasileiros, como as guerras da antiga Iugoslávia, dos grupos separatistas da Irlanda, da Espanha, das guerras entre países miseráveis na África. Guerras entre árabes e judeus. Mas, a violência não é só isso. Ela não se dá apenas na guerra, embora este seja sua expressão mais enfática.

A violência está dentro do homem. É ou não parte do instinto de sobrevivência da humanidade? A mentira, outra forma de violência, é indispensável para alguém viver em sociedade hoje, infelizmente, ou não? Sua esposa cortou o cabelo e o penteado está horrível, você falaria a verdade para ela ou diria outra coisa? Você não tem dinheiro algum e precisa de crédito de outros bancos para pagar as dívidas, contaria para o agiota que está falido? Uma pessoa está com depressão crônica e já tentou se suicidar algumas vezes, você lhe diria palavras de conforto ou repreensão, como fazem certas narrativas religiosas? Você descobre uma traição conjugal de um marido, cuja esposa é obcecada por ele, mas ela é também sua melhor amiga, você mentiria sobre o tema se ela pedisse sua opinião ou omitiria o que sabe? Há "n" situações onde mentir ou omitir fatos surte um efeito menos devastador na vida em sociedade, e as pessoas o fazem a fim de não causar mal-estares, desavenças e até mortes. Mas nem a violência e nem a mentira são a "vontade de potência". Pois, quando alguém pratica a violência ou mente, mesmo que seja para proteger outrem, ainda está manipulando a outra pessoa, tentando controlar os fatos. Impor a sua vontade sobre aquilo que é contingente. Esse é o exercício da vontade de potência.

Por fim, lembro mais uma vez de Sigmund Freud, de um texto seu, o da nota de rodapé número 47 do seu livro "O mal-estar na cultura" onde ele afirma – ao refletir sobre a educação:

o fato de a educação atual ocultar ao jovem o papel que a sexualidade representará em sua vida não é a única censura que se lhe deve fazer. Ela também peca ao não prepará-lo para a agressão de que ele está destinado a ser objeto. Ao lançar os jovens na vida com uma orientação psicológica tão incorreta, a educação procede como se munisse com roupas de verão e mapas dos lagos do norte da Itália pessoas que farão uma expedição polar. Torna-se claro, aí, um certo (sic) abuso das exigências éticas. Não causaria grande prejuízo ao rigor das mesmas se a educação dissesse: 'É assim que as pessoas deveriam ser para se tornarem felizes e fazerem felizes as outras; mas é preciso contar com o fato de que não são assim'. Em vez disso, deixa-se o jovem acreditar que todos os outros cumprem os preceitos éticos, ou seja, que são virtuosos. Com isso, se fundamenta a exigência de que ele também venha a sê-lo.


Na passagem acima, Freud ironiza a escola, apontando seu grande fracasso: não cumprir o que promete. Ora, se a escola sempre se deu por função, como todo o aparato dos professores, criando toda uma estrutura burocrática para justificar sua existência sobre o mito de que ela educa para a vida, Freud denuncia que isso é falso. A escola, sugere ele, não prepara as pessoas para a vida.

Sigmund Freud
         1856-1939
Antes do que preparar alguém para a dureza que é a vida, de dar-lhe instrumentos necessários e seguros para qualquer estudante perceber as falácias do mundo, as mentiras que as pessoas lhe contarão para tirar vantagem do estudante que sai "nu de malícia" da escola, a escola o "prepara" para viver em um mundo ideal, algo que não existe a não ser na fantasia dos programas escolares, no pensamento filosófico, na mente dos "melhoradores" da humanidade, como se propõem muitos autores das áreas da ética e da moral, da filosofia ou da teologia.

E se ser cão for sua melhor parte? A escola pode estar cometendo o equívoco de matar o "cão" dentro de seus alunos. Não falo da violência pura e gratuita. Falo da "vontade de potência" do indivíduo, de fazer as pessoas se tornarem aquilo que elas são. De dar-lhes chances para concretizar seus talentos, dons, e não as obrigarem a ouvir o tempo todo aulas que são ministradas da mesma forma que há dois mil anos nas academias gregas, cujos conteúdos são facilmente mais assimilados, hoje, ao se assistir um vídeo do que pela explanação oral, apenas. E isso não é novidade, Nietzsche propõe em sua obra "Sobre o Futuro de Nossos Estabelecimentos de Ensino" uma escola em que se deixasse desenvolver na criança suas aptidões naturais, e não fossem os alunos, cujos talentos fossem conhecidos, obrigados a estudar como se obriga na escola atual alguém que será músico a estudar biologia, dentre outras disciplinas, por anos

Por isso que pensar que o mundo humano "é perfeito e que todas as pessoas são felizes" (Legião Urbana)  é um grande engano! O texto de Freud é um tiro de misericórdia nos projetos que visam a chamada "educação para a paz" da Organização Mundial das Nações Unidas. Freud faz pensar que a escola ainda hoje dá mapas dos lagos do norte da Itália e roupas de verão para quem, na verdade, fará uma viagem polar. Quando Freud denuncia a escola e seu fracasso para ensinar alguém a ser humano, eu lembro que, em outras palavras, podemos dizer que a escola faz o mesmo que Sísifo, o personagem da mitologia grega que foi obrigado a rolar uma pedra gigantesca morro acima, mas que sempre escorregava novamente para a base, obrigando o imortal personagem ao trabalho eterno e inglório.

E se, realmente, ser cão for a nossa melhor parte?