Gerson Nei Lemos Schulz
Como dizem os atores Nicolas Cage e
Jared Leto, interpretando os personagens Yuri Orlov e Vitaly Orlov em "Lord
of War" ou "O Senhor das Armas", no Brasil, cap. 2): Yuri Orlov
entra na cozinha do restaurante de seus pais e, após provar a comida que seu
irmão está cozinhando e fingir passar mal (ironizando o irmão), ao sair lê, em
uma placa, na porta do recinto: Beware of the dog. Ele, então, pergunta a seu irmão:
Cuidado com o cão? Você não tem cão, tá assustando as pessoas? Vitaly: Não, é
para me assustar, para me lembrar de ter cuidado com o cão em mim, o cão que
quer destruir tudo que se mexe, que quer lutar e matar os cachorros mais
fracos. Acho que é... para me lembrar de ser mais humano. Yuri: Ser cão não faz
parte de ser humano? E se essa fosse a melhor parte de você, ser cão? E se você
fosse apenas um cão de duas pernas? Ocorre uma pausa e Vitaly diz: – Você precisa
de ajuda. Yuri ironiza: – 'tá fedendo aqui.
Essa fala dos atores supracitados
sintetiza bem o que o filósofo alemão do século XIX, Friedrich Nietzsche, já
mencionava em sua obra: "A vontade de potência". Lá, Nietzsche nos
leva a refletir sobre a moral e sua função controladora e repressora. Para ele, a moral é repressora à medida que impede o
homem de ser aquilo que determina sua natureza humana, isto é, exercer os predicados de sua parte animal.
Para Nietzsche, toda a moral ocidental
associou ser racional a ser moralista e isso representou o certo, o bom e o
belo desejável em oposição ao ruim, ao feio e ao indesejável. Assim – no mundo
antigo – Sócrates estabeleceu que a vida física não era a mais digna de ser
vivida, mas que ela era apenas preparação para a outra vida – a da alma – a
verdadeira vida, porque era eterna, uma vez que Sócrates dizia que a alma era
imortal.
O mundo cristão medieval endossou
várias ideias de Sócrates descritas sob o entendimento de Platão; mas é claro,
renegando, por exemplo, a ideia de reencarnação, impossível para o
cristianismo. De qualquer forma, mesmo com o cristianismo entendendo que o
homem não tem uma "alma", como diziam Sócrates e Platão, mas "pneuma", um "sopro divino" que, após a morte, volta para Deus e que renascerá em
novo corpo somente no dia do Juízo Final, ainda assim, a ideia de que essa vida
é apenas uma preparação para uma próxima, "melhor", persiste, pois as
igrejas cristãs afirmam que a próxima vida será melhor que esta e será em
plenitude.
Immanuel Kant 1724-1804 Autor de "Crítica da Razão Pura" Conhecido por ter expulsado Deus pela porta da frente em seu projeto filosófico e o readmitido pela porta dos fundos. |
A Modernidade, por outro lado – embora
nasça no bojo da Reforma Protestante de Lutero e desencadeie o Iluminismo
europeu – ainda não conseguiu se livrar dessas ideias, mesmo com vários
pensadores tentando desmistificar o cristianismo da igreja católica ou protestante
como arcabouço teológico e filosófico. Ainda não se substituiu a ética cristã
que impregna o direito e a moral ocidentais, desde a idade Média, por outros
valores. No mundo medieval a ordem era seguir o rei porque ele estava no poder
endossado pelo Papa e este era Papa, porque "deus queria". Na
modernidade, mesmo após a substituição do rei pela República, a ordem
estabelecida ainda mandava adorar o Estado, e as igrejas ainda serviam de
veículo ideológico poderoso para convencer o povo a obedecer as leis. Nem
Jean-Jacques Rousseau ou Immanuel Kant conseguiram elaborar uma ética que
escape dos preceitos cristãos, ainda que suas propostas tendam a um tipo de racionalismo.
Nietzsche, por seu turno, tenta construir uma
filosofia que faz um retorno, um retorno ao homem como um todo, procurando, nas
entrelinhas, o homem integral que ele chamava de "além-do-homem". Esse ser humano que, ao mesmo tempo é capaz de
atos heroicos, sublimes, corajosos e em defesa até de outrem, mas também dos
atos mais violentos, mais desprezíveis – na ótica cristã – e mais egoístas para
defender a si próprio, esse é o homem real. Para Nietzsche, o homem não é o que querem os valores
cristãos. O homem teria sido, para ele, "estrangulado" pela moral
socrático-cristã. Para Nietzsche, tal qual para Hobbes e Kant, o homem não é
bom nem mau, ele é egoísta. Assim, estariam equivocadas as religiões que preconizam que o ser humano é "mau" por natureza e por
isso ele, o homem, precisa "lutar" pela sua salvação. Caso o ser humano não seja mau, como dizem os religiosos, perde o sentido esse esforço em ser
"bom", em salvar sua alma. Perde o sentido buscar sentido para a
vida que não seja aquele que ela mesma apresenta: lutar, cada um por si mesmo,
para satisfazer suas necessidades básicas.
Friedrich Nietzsche 1844-1900 |
Nietzsche nos faz pensar que é um erro
afirmar que ser egoísta é "errado". Para ele o erro está em
sufocar o egoísmo, porque é graças ao egoísmo que cada indivíduo pode se
manter vivo. É do egoísmo que sai a "vontade de vida". O único sentido
mesmo da vida, então, que não é metafísico, é suprir esse egoísmo. Logo,
Nietzsche diz que o cristianismo erra ao apregoar que a principal motivação da
vida de cada homem e mulher é desmantelar esse egoísmo. É um erro acreditar que se esse egoísmo
desaparecer, teria-se a paz. É por isso que, para Nietzsche, o cristianismo, em vez de promover a vida, ele a renega. A renega ao dizer que o egoísmo deve desaparecer para dar lugar à compaixão.
O filósofo conclui, daí, que o cristianismo é a religião do niilismo, porque mata
a vontade de viver ao matar o egoísmo do homem. Então, em vez de combater o niilismo, o cristianismo o promove, quando reprime e tenta matar a motivação da vida, que não é só o egoísmo, mas os instintos em geral.
O cristianismo é então (como ele diz
em sua obra "O Anticristo") uma praga! Praga, porque insiste que o
homem é pecador, que nasce doente pelo pecado – como dizem as igrejas cristãs. E
se essas ideias de pecado, de culpa desaparecessem, ainda se precisaria da
igreja, de "deus"? Não desapareceriam as ideias de bem e mal, bom e
belo, ruim e feio? O homem não reconheceria – por fim – que sua "natureza"
é amoral e que as regras morais que conhecemos são ficções criadas pelos
"melhoradores" ou "reformadores" da sociedade – igreja, Estado,
comunidade? Mas, mais ainda, corroborando as perguntas, Nietzsche – e no
século XX, Foucault – nos fazem perceber que as convenções sociais, a moral, a
ética de determinada comunidade – em suas entrelinhas – sempre delegam
"poderes" a alguém (àqueles que criam os valores: como o sacerdote no
passado – hoje padres, pastores, líderes religiosos em geral; ao guerreiro –
hoje ao chefe militar –; ao dirigente do Estado – presidente ou Parlamento).
Todos esses agentes exercem sobre as demais pessoas o poder, o controle. E
Foucault ainda nos pergunta: "por que nos submetemos a este poder?"
Responde ele: "porque o poder é uma relação, ele está diluído nas
estruturas da sociedade.
O poder se manifesta não somente de cima para baixo, mas de baixo
para cima também" (aqui citado livremente). Em outras palavras, Foucault nos
faz pensar que aceitamos o poder político, econômico, moral, ético não porque
sejamos submissos a ele, temamos as autoridades, mas, porque em nosso íntimo, também
desejamos o poder. O seguinte exemplo ilustra essa tese: uma pessoa pode ser pobre, trabalhar como
"flanelinha" no trânsito. Alguém poderia classificá-la facilmente
como uma pessoa "oprimida" – sob a ótica maniqueísta marxista ortodoxa
– por exemplo; mas essa análise é apressada, pois da mesma forma que tal pessoa
é pobre, é "oprimida" pelo Estado que não dá condições suficientes para que ela estude, tenha emprego e goze das
benesses da civilização, ela também exerce poder. Onde? Em um exemplo nosso, quando ameaça, veladamente, arranhar o carro de um cidadão que estacione pelas ruas das
nossas cidades e que não aceite a oferta de seus "cuidados".
Quem é que se sente livre e à vontade para recusar a "ajuda" do flanelinha? Não é porque, embora de
forma velada, o cidadão tema que a recusa signifique que o ofertante arranhe ou
danifique seu bem?
O "oprimido" também exerce
poderes em casa com sua esposa e filhos, quando está no controle da casa. A mulher
"oprimida" pelo empregador pode por este ser explorada, mas também
pode oprimir seus filhos ao espancar-lhes. Pode oprimir, com palavras ou
atos, a sogra idosa a quem "cuida", o cunhado doente, a mãe senil. Inspirado no conceito de "vontade de potência" de Nietzsche, Foucault dá um passo além de Marx. Se para Marx, há quase como que opressores e oprimidos "puros" e o poder é sempre opressor e vertical, para Foucault, o poder é horizontal. Ele está no centro, mas também na periferia.
Apesar de todas as suas críticas à moral, Nietzsche
não propõe o império da "barbárie" e da "imoralidade". Pensar
com Nietzsche significa repensar nossos padrões de conduta moralistas – pensar
em quão é realmente possível seguir, com a possibilidade de se ter alguma felicidade, os padrões que as religiões determinam
para o homem.
A filosofia de Nietzsche nos leva a outras perguntas como: há legitimidade e autoridade em algumas pessoas que se dizem evangélicas e que não ingerem
bebidas alcoólicas, mas desejam, em seu íntimo, que todas aquelas que não pensam como elas vão-se para o inferno?
Que autoridade tem um crente para "condenar", agredir, difamar outras pessoas que não acreditam na Bíblia, no Corão, no Bagavadguitá? A resposta também serve para a pergunta contrária: Tem autoridade um não-crente para condenar, agredir ou difamar quem acredita?
Nietzsche nos provoca – como devem
fazer os filósofos – a pensar: como seria se o homem fosse e agisse 'naturalmente'?
Sem se reprimir com a moral, com a religião, com as tradições, com seus
preconceitos sobre o mundo e sobre si mesmo?
O que podemos perguntar depois de
Nietzsche é: que fundamento terá nossa razão se ela também não passar de mero
instinto de sobrevivência?
E a relação entre o poder e a violência?
Para a filosofia nietzscheana, a violência
também faz parte do ser humano, pois não há sociedade que até hoje não tenha
elaborado algum tipo de manifestação violenta.
Os antigos sumérios
sacrificavam pessoas aos deuses. Babilônios, astecas e maias também. Os judeus,
gregos e romanos sacrificavam pombos, bodes e bois a seus deuses. Algumas religiões
animistas, como certos desdobramentos do candomblé, ainda
o praticam. Na mitologia judaico-cristã, a divindade exigiu o sacrifício do personagem Jesus para que a humanidade fosse
salva. Na missa, os cristãos
"comem" e "bebem" seu "deus" por meio da hóstia e do
vinho.
A
violência também é praticada pela mãe com o filho(a) no ato, considerado por muitos um
"ato pedagógico" de bater na criança para educá-lo(a), para impor-lhe
limites. A violência é exercida por todo aquele que, de alguma forma, lança mão
de força física ou psicológica para doutrinar seu cão, seu gato e etc. E, aqui, uma pergunta: o
que é doutrinar, senão fazer com que outrem (o filho, o cão, o gato) se
comportem dentro de certas regras que o doutrinador quer? Duas perguntas capitais
saem daí: "que direito tem alguém de se intitular doutrinador? Se, supostamente, sua
doutrinação parte do princípio de que este quer que sua vontade predomine. E: por
que, então, tem que predominar a vontade de uns sobre os outros?" É isso que significa o exercício do poder, mas, para Nietzsche, também do egoísmo.
Mas para Nietzsche não é assim tão simples. Sua resposta é mais elaborada. Para ele, isso é a "vontade de
potência", e é um ato presente em todo o universo. Do átomo à célula. Ele diz que as espécies animais têm a vontade de
potência e ela se exerce quando esses animais procuram se reproduzir, quando eles
entram em conflito pelo alimento, pela água, pelo território. Isso, para
Nietzsche, é o exercício pleno da busca pela satisfação do egoísmo, mas de um "egoísmo
positivo", sendo que é devido a essa busca que a vida tem sentido de ser
vivida. A "vontade de potência" é esse ato de querer desenvolver-se além daquilo que já se é. A semente tem o princípio de ser árvore e luta para se
desenvolver em plenitude. O animal filhote luta e mata outros para ser o
dominador e garantir para si território, caça, fêmeas para se reproduzir. E o homem,
faz diferente?
Para Nietzsche o homem age da mesma forma, apenas por outros meios.
Assim a violência é uma das formas de
manifestação da "vontade de potência". Daí posso induzir, para
analisar a fala do personagem Yuri Orlov no filme "O senhor das
armas" que a violência está institucionalizada. Ela se institucionaliza
antes mesmo da concepção. Afinal, para que alguém nasça, alguém tem que lutar
para que nasça. Ao nascer, se conseguirmos sobreviver às dificuldades do útero,
somos vencedores, mas "matamos" nossa mãe que, durante a gravidez,
nos dá, mesmo que não queira, seus melhores nutrientes corporais, suas forças
para que nasçamos. Depois é a família que nos doutrina, imbuída da cultura dominante e, cuja doutrinação, caso não sigamos, nos penaliza, nos castiga. E o comportamento da religião não é diferente. Tem-se, por exemplo, em três grandes religiões contemporâneas (judaísmo, cristianismo e islamismo), a exibição de exemplos de mártires que morreram
por, ou em nome de Deus. E essas três religiões clássicas sempre exigiram batismo
de sangue para seu 'deus'. O judaísmo, porque valoriza o sacrifício, a morte por
entrega a 'deus'. Deus acima de tudo! O cristianismo católico, pela valorização
do sangue de seus "mártires" perseguidos pelo "amor à
palavra". O islamismo também embarcou na mesma filosofia, pregando a
"guerra aos infiéis"!
Mesmo correndo o risco de o leitor
pensar que estou "inspirado pelo diabo" em minha análise, me arrisco a endossar que
grandes fatos históricos são frutos direto de ações consideradas violentas.
Egípcios, Babilônios, Persas conquistaram Ocidente e Oriente, levando de um
extremo ao outro do mundo os numerais arábicos, as noções de contagem, escrita,
organização político-militar, a pólvora, o astrolábio, tudo graças às guerras. Como diria Nietzsche, graças à vontade de potência.
Gregos, judeus e romanos também
promoveram guerras. Será que restaria, hoje, alguém do povo judeu caso o mítico personagem
Moisés não tivesse assassinado um guarda egípcio – uma ação violenta que causou
a morte de uma pessoa que cumpria as leis de seu país – para libertar seu povo? Israel de hoje existiria se Moisés não incitasse seu povo a combater e
massacrar os filisteus que habitavam a chamada "terra prometida" para dela se
apossar?
E Alexandre, o Grande, se ele não
tivesse conquistado o mundo oriental, teria ocorrido a helenização? E, no mundo medieval, não foram os próprios
cristãos que usaram a violência física e ideológica para dividir e conquistar
outras culturas, afirmando que o que faziam era em nome de seu "deus"?
O desafio ao leitor é não pensar nesses fatos como "bons" ou "ruins". Uma guerra não é boa nem má. Ela é um fato. A intencionalidade dos atos que se praticam com elas é que alguns classificam como bons ou maus.
Com a perspectiva de Nietzsche, é possível afirmar que, na modernidade, a escravidão alavancou os grandes impérios fisiocratas, o comércio, a Revolução Industrial. Que o capitalismo, com as 20 horas ou mais de trabalho imposto aos operários do século
XIX, propiciou o exercício da "vontade de potência" da Inglaterra,
Estados Unidos da América, França, Itália, Alemanha e outras nações industriais. Da mesma forma, se deu nos Estados "socialistas", pois, em nome da justiça plena, equanimidade... aqueles países também investiram altos esforços
humanos (com sacrifícios e exploração e expropriação de pessoas e animais), para alcançar e manter um nível
elevado de progresso técnico-industrial.
E, na pós-modernidade tem-se, ainda, a
violência simbólica, denunciada por Bourdieu e Passeron, que é aquele tipo de
violência que nos cercava e nos invadia nas propagandas de cigarros (lembrando que, nos anos 1970, era bem cotada socialmente a pessoa que fumava, e que alguns médicos indicavam o fumo como medicamento contra o cansaço mental, hoje conhecido como estresse), bebidas (como a propagação de que consumir bebida alcoólica significa autonomia, emancipação). E, ainda hoje, a "família feliz" branca e de classe média alta da propaganda de margarina.
De volta ao "Senhor das Armas", o filme mostra que a guerra sempre existiu e que a violência está aí e todos a praticam em maior ou menor escala. Ela sempre deu lucros para governos, fábricas de armas, contrabandistas, traficantes. É o instrumento fundamental dos soldados. Mundo afora muitos
empresários, staffs governamentais e políticos perderiam o poder caso não
dispusessem de exércitos poderosos pelas armas, especialmente pelas armas de fogo.
"As balas mudam os governos mais rápido do que os votos", diz no filme o
personagem Simeon Weisz, um mercador internacional de armamentos.
A maioria das Constituições de países
pelo mundo permite a seus cidadãos terem armas de fogo. Em vários países árabes
as pessoas podem ter em casa fuzis como a famosa AK-47. Na Suíça a maioria dos
cidadãos têm em casa – sendo por ela responsável – fuzis que serão utilizados
para a defesa daquele país em caso de guerra, já que a Suíça não tem um exército
regular, mas todos os cidadãos são militares. Na África, há localidades
(e isso não é simples piada do filme "O senhor das armas") em que se
pode comprar fuzis, metralhadoras ao preço de uma galinha. As armas sempre
fascinaram a humanidade. Elas sempre permitiram a uns esmagar outros. Aos
exércitos – cujos reis desejavam conquistar territórios vizinhos para aumentar
a área de gozo de seus cidadãos e também o seu poder – conquistar terras,
cidades, fortunas, riquezas minerais.
A Segunda Guerra Mundial, especialmente,
permitiu avanços tecnológicos imensos como o aperfeiçoamento do colete salva-vidas (à
custas das experiências com seres humanos vivos, realizadas pelos alemães), o
nascimento dos foguetes modernos, de bombas melhor elaboradas jogadas de aviões.
Aperfeiçoou-se a aviação militar, donde, posteriormente, a civil. Os transportes
e logística no século XX. E o que está por trás de todo esse progresso? Qual
sua motivação? A "vontade de potência" de que nos fala
Nietzsche?
E a violência é o instrumento pelo
qual essa "vontade" se realiza, geralmente, embora não a única.
Após a institucionalização do Estado
entre os seres humanos, iniciou-se a tradição – e surgiram várias filosofias – para
justificar que o melhor para a humanidade se manter viva era abandonar o que
Hobbes, no século XVI, chamou de "estado de natureza" (a barbárie) pelo
"estado de paz", que seria garantido pelas leis, costumes, pela moral
e pela ética. Acreditou-se, a partir daí, que a humanidade
"melhoraria", progrediria. Que a violência deveria ser erradicada e
que ela desapareceria, porque as pessoas perceberiam que é muito
"melhor" viver em uma sociedade em que ninguém se mata por uma fonte
de água, por uma peça de caça, pela "posse" de uma parceira sexual.
Freud chega mesmo a dizer em "O mal-estar da cultura", de 1930, que o
homem "sacrificou a liberdade que possuía no Estado primitivo de barbárie
pela segurança da vida em sociedade." Mas, ele pergunta se o sacrifício
compensou ao homem, e termina sua reflexão sem nos dar uma resposta.
Guerrilheiras das FARC. Na luta por sua "vontade de potência"? |
É claro que ninguém gosta da violência
urbana que aumenta em nossas cidades a cada dia, tanto em países ricos e pobres. Porém, quando se fala em violência é comum as pessoas lembrarem-se de
assassinatos em periferias. Guerras de traficantes e as
forças de segurança do Estado. Lembra-se também das guerras distantes para nós
brasileiros, como as guerras da antiga Iugoslávia, dos grupos separatistas da
Irlanda, da Espanha, das guerras entre países miseráveis na África. Guerras
entre árabes e judeus. Mas, a violência não é só isso. Ela não se dá apenas na
guerra, embora este seja sua expressão mais enfática.
A violência está dentro do homem. É ou
não parte do instinto de sobrevivência da humanidade? A mentira, outra forma de
violência, é indispensável para alguém viver em sociedade hoje, infelizmente,
ou não? Sua esposa cortou o cabelo e o penteado está horrível, você falaria a verdade para ela ou diria outra coisa? Você não tem dinheiro algum e precisa de crédito
de outros bancos para pagar as dívidas, contaria para o agiota que está falido?
Uma pessoa está com depressão crônica e já tentou se suicidar algumas vezes, você lhe diria palavras de conforto ou repreensão, como fazem certas narrativas religiosas? Você
descobre uma traição conjugal de um marido, cuja esposa é obcecada por ele, mas
ela é também sua melhor amiga, você mentiria sobre o tema se ela pedisse sua
opinião ou omitiria o que sabe? Há "n" situações onde mentir ou omitir fatos surte um efeito menos devastador na vida em sociedade, e as pessoas o fazem a fim de não causar mal-estares, desavenças
e até mortes. Mas nem a violência e nem a mentira são a "vontade de potência". Pois, quando alguém pratica a violência ou mente, mesmo que seja para proteger outrem, ainda está manipulando a outra pessoa, tentando controlar os fatos. Impor a sua vontade sobre aquilo que é contingente. Esse é o exercício da vontade de potência.
Por fim, lembro mais uma vez de
Sigmund Freud, de um texto seu, o da nota de rodapé número 47 do seu livro
"O mal-estar na cultura" onde ele afirma – ao refletir sobre a
educação:
o fato de a educação atual ocultar ao jovem o papel que a sexualidade representará em sua vida não é a única censura que se lhe deve fazer. Ela também peca ao não prepará-lo para a agressão de que ele está destinado a ser objeto. Ao lançar os jovens na vida com uma orientação psicológica tão incorreta, a educação procede como se munisse com roupas de verão e mapas dos lagos do norte da Itália pessoas que farão uma expedição polar. Torna-se claro, aí, um certo (sic) abuso das exigências éticas. Não causaria grande prejuízo ao rigor das mesmas se a educação dissesse: 'É assim que as pessoas deveriam ser para se tornarem felizes e fazerem felizes as outras; mas é preciso contar com o fato de que não são assim'. Em vez disso, deixa-se o jovem acreditar que todos os outros cumprem os preceitos éticos, ou seja, que são virtuosos. Com isso, se fundamenta a exigência de que ele também venha a sê-lo.
Na passagem acima, Freud ironiza a escola, apontando seu
grande fracasso: não cumprir o que promete. Ora, se a escola sempre se deu
por função, como todo o aparato dos professores, criando toda uma estrutura
burocrática para justificar sua existência sobre o mito de que ela educa para a
vida, Freud denuncia que isso é falso. A escola, sugere ele, não prepara as
pessoas para a vida.
Antes do que preparar alguém para a
dureza que é a vida, de dar-lhe instrumentos necessários e seguros para
qualquer estudante perceber as falácias do mundo, as mentiras que as pessoas
lhe contarão para tirar vantagem do estudante que sai "nu de malícia"
da escola, a escola o "prepara" para viver em um mundo
ideal, algo que não existe a não ser na fantasia dos programas
escolares, no pensamento filosófico, na mente dos "melhoradores" da
humanidade, como se propõem muitos autores das áreas da ética e da moral, da
filosofia ou da teologia.
E se ser cão for sua melhor parte? A escola pode estar cometendo o equívoco de matar o "cão" dentro de seus alunos. Não falo da violência pura e gratuita. Falo da "vontade de potência" do indivíduo, de fazer as pessoas se tornarem aquilo que elas são. De dar-lhes chances para concretizar seus talentos, dons, e não as obrigarem a ouvir o tempo todo aulas que são ministradas da mesma forma que há dois mil anos nas academias gregas, cujos conteúdos são facilmente mais assimilados, hoje, ao se assistir um vídeo do que pela explanação oral, apenas. E isso não é novidade, Nietzsche propõe em sua obra "Sobre o Futuro de Nossos Estabelecimentos de Ensino" uma escola em que se deixasse desenvolver na criança suas aptidões naturais, e não fossem os alunos, cujos talentos fossem conhecidos, obrigados a estudar como se obriga na escola atual alguém que será músico a estudar biologia, dentre outras disciplinas, por anos
Por isso que pensar que o mundo humano "é perfeito e
que todas as pessoas são felizes" (Legião Urbana) é um grande engano! O texto de Freud é um tiro de misericórdia nos projetos que visam a chamada "educação para a paz" da Organização Mundial das Nações Unidas. Freud faz pensar que a escola ainda hoje dá mapas dos lagos do norte da Itália e roupas de verão para quem, na verdade, fará uma viagem polar. Quando Freud denuncia a escola e seu fracasso para ensinar alguém a ser humano, eu lembro que, em outras palavras, podemos dizer que a escola faz o mesmo que Sísifo, o personagem da mitologia grega que foi obrigado a rolar uma pedra gigantesca morro acima, mas que sempre
escorregava novamente para a base, obrigando o imortal personagem ao trabalho
eterno e inglório.
E se, realmente, ser cão for a nossa melhor parte?