Gerson Nei Lemos Schulz
Para iniciar este artigo falando sobre os feitos de Galileu Galilei (1564-1642) e a inauguração da ciência moderna é preciso falar também em seus antecessores modernos: Nicolau Copérnico (1473-1543), Thyco Brahe (1546-1601) e Johannes Kepler (1571-1630).
Para Reale (História da Filosofia, 1990) Copérnico não criou sua teoria do nada, pois o próprio Copérnico descobriu que antes dele Iceta de Siracusa (séc. V a.C.), e os pitagóricos Filolau (Séc. V a.C.) e Ecfanto (séc. IV a.C.), além de Heraclides do Ponto, pensavam que a Terra girava. Além disso, Copérnico, estudando em Bolonha, entrou em contato com os neoplatônicos que, dentre outras, coisas acreditavam como Platão que o Sol equivalia a Deus, e também que o deus platônico era um deus geômetra. Então, a matemática tinha vital importância, além das meras observações valorizadas pelos aristotélicos que dominavam o pensamento filosófico e a teologia da época e acreditavam que a Terra estava imóvel no universo. Os aristotélicos também acreditavam que as órbitas dos planetas eram círculos perfeitos e que estes se sustentavam no universo com arcos de Éter, e o próprio universo estava cheio dessa substância, o que garantia a mecânica celestial.
Copérnico, insatisfeito com o modelo ptolomaico-aristotélico - porque este não permitia prever com exatidão a posição dos astros no céu (importante para o calendário), desenvolveu outro baseado em cálculos e na geometria que publicado em De Revolutionibus Orbium Celestium, onde é o Sol que se fixa no centro e os demais planetas giram ao seu entorno.
Teologicamente, o modelo tradicional garantia a hegemonia da igreja Cristã sobre a vida dos mortais, pois com a idéia de que a Terra era o centro do Universo justificava-se o lugar especial que o homem tem dentro do mito da criação.
Para Guy Consolmagno, do Observatório do Vaticano, se acreditava que abaixo da Terra, no espaço, ficava o inferno. Já para o astrônomo de Harvard, Owen Gingerich, os cristãos, baseados no livro bíblico de Josué (10,13), acreditavam que a Terra estava parada porque, nesta passagem, Josué pede ao deus judeu para parar o Sol, a fim de os israelitas ganharem a batalha de Gideon. Por isso, a teoria copernicana contradizia a bíblia. Copérnico também afirmava que a Terra girava em volta de seu eixo a 1190 Km/h e a 50.000 km/h ao redor do Sol, de acordo com o físico teórico Julian Barbour, e por isso poucos acreditaram nele. Em valores de hoje são respectivamente: 1679 km/h e 107.244 km/h.
Já Thyco Brahe foi um opositor de Copérnico e concebeu um sistema intermediário onde a Terra continuava sendo o centro do universo, mas Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno giravam em torno do Sol. Apesar de ele estar errado foi o responsável pela demonstração da não existência das esferas cristalinas que se suspeitava existir para guiar os planetas em suas órbitas, a partir da observação de um cometa cuja órbita "invadia" a de outros planetas, como, então, sua órbita não se chocaria com os arcos cristalinos? Sua conclusão óbvia foi: eles não existiam.
Mas a ciência moderna começa, de fato, com Johannes Kepler (discípulo de Brahe), astrônomo e astrólogo, que depois de dez anos, na obra Mysterium Cosmographicus, publica a fundamentação matemática do sistema copernicano. Também, estudando a olho nu - como todos até então - ele consegue explicar algo que ninguém havia explicado: o movimento irregular de Marte em sua Nova Astronomia. Kepler tentou enquadrar Marte em órbitas circulares, mas essa concepção faliu. Foi somente quando ele encaixou Marte numa órbita elíptica é que seu sistema se harmonizou, como afirma em sua obra. Para Reale (1990, p. 246), Kepler não só construiu um modelo espetacular do sistema solar onde os planetas giram ao redor do Sol em órbitas elípticas, como também inaugura um método científico que é hipotético-indutivo (observacional), ou seja, hipotético porque o cientista elabora várias hipóteses para resolver um problema e depois vai testando uma a uma (indutivamente), se alguma delas responde à questão universal, então o cientista testa essa hipótese em outras situações semelhantes, se ela funcionar, estabelece-se uma lei geral, a lei científica.
Admitindo as órbitas planetárias elípticas, Kepler pôde prever com absoluta certeza a posição dos astros no céu e essa era a prova necessária para comprovar sua teoria. Pode-se afirmar que nisso se baseia a ciência. Algo, para ser científico, carece necessariamente de comprovação empírica, norteada por uma teoria. E Kepler conseguiu isso com sucesso.
De acordo com Dava Sobel, no livro "A filha de Galileu", Foi em 1609 que Galileu aperfeiçoou um brinquedo, a luneta, e a transformou em um instrumento de ciência. Galileu teve de aprender sozinho o processo de polimento de lentes. Inicialmente, vendeu alguns exemplares dela para o Depósito Naval de Veneza. A luneta permitia observarem-se navios no mar que só seriam vistos a olho nu duas horas depois, ao se aproximar do porto. O feito era inédito porque permitia que os venezianos se preparassem para um ataque inimigo iminente. Isso rendeu a Galileu uma boa pensão. Mas seu mérito maior foi quando apontou a luneta para o céu pela primeira vez em toda a história da humanidade e, com esse ato, descobriu as luas de Júpiter jamais vistas antes. Reale diz que a luneta sofreu resistências porque até essa época as lentes eram vistas como coisas para velhos e doentes e muitas autoridades se negavam a mirar por elas por causa desse preconceito, sem dúvida, perdendo a oportunidade de olhar para o futuro da ciência.
Para Reale (1990) o mérito de Galileu foi ter inaugurado a instrumentalização da ciência. Galileu deu à ciência, além da matemática, os instrumentos necessários para sua prática. É no Siderius Nuncius que Galileu publica suas observações com a luneta que construiu e aumentou o poder do olho humano em quase mil vezes. Com ela, ele observou que a lua tem uma superfície extremamente irregular como a Terra: com vales, montanhas e crateras. Assim, ele se opôs ao sistema aristotélico que dividia o mundo em sublunar e supralunar, onde o supralunar era perfeito. Os dois mundos, para Galileu, são iguais. Ele observou ainda milhares de outras estrelas fixas no universo que não podiam ser vistas a olho nu, observou que Vênus apresenta fases como a lua terrestre, o que só podia ser explicado considerando-se a teoria de Copérnico. Com a luneta ele descobriu as manchas solares e os anéis de Saturno.
Tudo isso, de acordo com Thomas Kuhn em "A estrutura das revoluções científicas" (2009), muda radicalmente a forma do homem se ver no universo. Fica claro, a partir de Galileu, que dois sistemas de mundo estavam em conflito, o da igreja Cristã, incluindo o protestantismo que também acreditava que a Terra era o centro, contra o sistema copernicano (REALE; ANTISERI, 1990). E Galileu é copernicano porque as evidências são inegáveis, o que lhe gera dois processos por parte da inquisição católica e uma condenação à prisão perpétua em casa, e a proibição de pesquisar astronomia.
Pensa-se impossível hoje em dia não atribuir esse desfecho de Galileu à ignorância atrelada ao dogmatismo da tradição católica. Outro exemplo citado por Reale (1990) são os argumentos infundados do jesuíta Cristovan Scheiner que disse que as manchas solares eram satélites do sol ou astros próximos a ele. O que não passava de um absurdo, pois a luneta revelava que tais manchas apareciam "do nada" e sumiam para "o nada" ao longo do dia, e elas sugeriam que o Sol também se movia. Um segundo exemplo é o do jesuíta e matemático Cristovan Klau que afirmou, para salvar a idéia de que a lua era perfeita como o Sol, que ela seria coberta por uma substância cristalina, com isso ele queria salvar a esfericidade perfeita da lua e garantir a crença tradicional de que a "obra divina" era perfeita. Apenas Galileu estava correto.
Além dessas descobertas fantásticas para a época e usando instrumentos rudes, contando o tempo, fundamental para a realização de muitas experiências, no próprio pulso, porém com grande exatidão ou em hidras, mesmo assim, ele conseguiu fazer ciência. Em busca da prova concreta de que a Terra se movia, Galileu estudou o movimento desenvolvendo fórmulas matemáticas para seu cálculo que são usadas até hoje. Galileu chegou a estabelecer a relatividade do movimento, fundamental para as pesquisas de Einstein 263 anos depois quando disse que o homem não podia sentir a Terra se movendo porque a Terra passa seu movimento a todos os objetos que estão sobre ela.
Mas apesar de Galileu ser um homem de ciência, ele também tinha seus preconceitos e cometeu um grande erro ao acreditar que as marés podiam ser a prova empírica do movimento da Terra, pois ele, como astrônomo, não admitia que os astrólogos estivessem certos, ou seja, que a lua tinha algo que ver com o movimento das marés. Para provar que a Terra se movia ainda faltava nascer Sr. Isaac Newton.
Mas Galileu também desbanca a física de Aristóteles que afirmava que dois corpos de massas diferentes caem ao solo em tempos diferentes, isso Galileu demonstrou ser falso. Ele também retomou Arquimedes e as alavancas e estabeleceu valiosas leis físicas do movimento. Ao construir um laboratório onde aplicou rigorosamente outro método, o hipotético-dedutivo (REALE; ANTISERI, 1990, p. 290) ele inaugurou algo novo, a ciência que é não só a observação da natureza, mas a reconstrução de seus fenômenos em laboratório, baseados em uma teoria que o cientista vai comprovar ou não, por isso hipotético-dedutivo. Apesar de ter hipóteses particulares a comprovar, o método é racionalista (com origem em Platão) porque o cientista é quem dá as regras da observação e não a natureza, o que torna o experimento controlável. Ou seja, é o cientista quem deduz matematicamente a hipótese correta para determinado fenômeno, se ela explica este fenômeno então o cientista a aplica a outros fenômenos, tornando-a lei universal.
Galileu mostra que a ciência não é Ancilla Theologiae (escrava da teologia) cristã como era a Filosofia que estava a serviço da fé no mundo medieval, ela é algo completamente novo que se opõe a dogmas filosóficos e teológicos. As primeiras academias de ciências não foram fundadas em universidades, mas fora delas, opondo-se a elas, inclusive (KUHN, 2009).
Enfim, Galileu não inaugura a ciência moderna sozinho, sem precedentes ele não teria conseguido muito, mas entre seus méritos está o de mostrar que a tradição estava errada. Que nem tudo aquilo que os filósofos ou cientistas herdam da tradição religiosa ou metafísica é correto. Esse pensamento fundamenta a teoria de Kuhn em sua obra já citada de que de tempos em tempos os cientistas voltam à estaca zero, isto é, precisam rever seus conceitos para poder enxergar mais longe e encontrar soluções novas para novos problemas, e Galileu fez isso, alargando as fronteiras humanas acima da ignorância.
Muito interessante este artigo, professor. Não conhecia seu site, mais agora vou ser um "visitante" assíduo. queria lhe dar uma sugestão de pesquisa: que tal se você postasse uma resposta para minha inquietante pergunta: O HOMEM É UM SER INSTINTIVO, OU ISSO É UM ATRIBUTO APENAS DOS ANIMAIS IRRACIONAIS?
ResponderExcluir(José Adeilson, Acadêmico de Filosofia do IESAP)
Ótima pedida José Adeilson, em breve publicarei um artigo com este tema.
ResponderExcluirObrigado.
Professor com sua experiencia, vc acredita que o conhecimento é proveniente do pensamento ou da linguagem ?
ResponderExcluirRoger Nascimento (Acadêmico de Filosofia do IESAP)
É legal saber que o pensamento filosófico está se desenvovendo em nosso Estado, e quando lemos artigos de excelente fundamentação igual ao exposto acima, ficamos entusiasmados na busca de novos conhecimentos.
ResponderExcluirParabens!
Roger Nascimento (Acadêmico de Filosofia do IESAP)
"As obras do físico italiano Galileu, romperam com o modelo aristotélico-medieval de assimilação e compreensão da realidade, realmente foi uma verdadeira reviravolta no modelo científico vigente e suas afirmações geraram muitas polêmicas.
ResponderExcluirConcordo com sua conclusão, realmente houve um 'alagamento das fronteiras humanas acima
da ignorância' e deu lugar para o conhecimento e desenvolvimento da ciência moderna. Parabéns pela sua contribuição no mundo filosófico vasto e árido ainda em nosso Estado"
(Claudia Sobrinho - Acadêmica IESAP- formanda 2010
Sempre que posso respondo aos comentários postados aqui. Agradeço suas considerações, Cláudia. Espero que você e seus colegas formandos sejam as "sementes que cairam em terra boa" e germinem muitos frutos para a filosofia neste estado tão carente de conhecimentos.
ResponderExcluirAbraço.
Prezado Roger,
ResponderExcluirPessoalmente, acredito que pensamento é conhecimento e a linguagem é sua expressão. Mas, é claro, há controvérsias entre os autores. Por isso é uma pergunta filosófica que ainda não foi respondida. E o argumento contrário é: como aprendemos? Como o pensamento se forma ou se formaria sem a linguagem. Caso a linguagem participe desse processo ela já é conhecimento também. Então, para clarear a tua leitura e tuas indagações eu recomendo que leias Piaget e Vigotsky.
Um forte abraço.