Gerson N. L. Schulz
Professor de Filosofia no Brasil
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Apiacás com João Ramalho - SP Foto do arquivo pessoal de Gerson Schulz |
Era julho de 2015, meio dia. Eu estava tomando um café com
sanduíche num bar popular na esquina da rua Apiacás com a João Ramalho, nas
Perdizes, em São Paulo. Estava calor. Apesar de ser inverno, o dia estava
ensolarado e com nuvens esparsas.
Eu admirava – com a perspectiva de um cliente – a destreza e
a rapidez com que o garçom preparava lanches, servia coxinhas, pães de queijo, aquecia
esfirras no micro-ondas e, quase ao mesmo tempo em que cortava laranjas para
espremer e preparar o suco que eu havia pedido, conversava com seus clientes
conhecidos que iam chegando para o almoço. Outro colega dele cortava limões
para preparar bebidas. Outro cozinhava atrapalhado pelos vapores quentes que
saiam das panelas.
De repente as mesas vazias se encheram rapidamente. Duas
mulheres jovens, com uniformes azuis que pareciam ser comerciárias, solicitaram
sanduíches para levar. Induzi que estavam em horário de almoço e não teriam
sequer tempo para comer ali.
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Os trabalhadores no bar Nova Lisboa - SP Foto do arquivo pessoal de Gerson Schulz |
Havia umas trinta mesinhas de quatro lugares naquele
estabelecimento que rapidamente ficaram cheias. As pessoas que as ocuparam não
eram muito diferentes. Eram, na maior parte, pessoas vestindo uniformes. Entregadores
de gás, vendedores, operários de fábrica e oficinas mecânicas, garis. E eu
estava lá e, por um momento, me perguntei: o que fazia ali? Uma vez que aquele
não era meu universo!
Não por preconceito, mas porque não sou paulistano, não sou
operário de serviço pesado e não deveria estar comento sanduíches gordurosos de
boteco que fazem mal para a saúde de qualquer um, mas foi circunstancial...
O mais estranho era estar ali pensando que não devia estar ali
e analisando, ao mesmo tempo, as cenas. Pensava sobre quem eram aquelas pessoas
e como suportavam sua rotina de trabalho. Então me lembrei de Karl Marx (1818-1883)
que afirmava que o capitalismo era nefasto porque espoliava os trabalhadores,
ao explorar o único bem que eles têm, sua força de trabalho.
A teoria de Marx diz que os donos dos meios de produção (os
capitalistas), detêm o capital e como eles detêm os modos de produção (as máquinas,
os implementos, as terras e etc.), eles pagam o salário ao trabalhador que, em
troca, vende sua força de trabalho (barata) ao capitalista. Barata porque, para
Marx, ninguém ganha o quanto merece!
Assim, na esteira de Marx, eu me perguntei, por exemplo: em
quanto tempo um pedreiro, um entregador de mercadorias, um motorista, um
lixeiro, um empregado qualquer daqueles ali, naquele dia, precisava trabalhar
para produzir seu salário?
Marx, em "O Capital", calculou que o tempo da
metade de um dia é o tempo necessário que qualquer operário leva para produzir
a riqueza para o capitalista pagar o seu salário. Dessa forma, o restante do
dinheiro do tempo trabalhado (da outra metade do dia), fica com os donos dos
meios de produção. A esse excedente Marx chamou de "mais-valia".
Por isso, de acordo com Marx, quando a classe trabalhadora
tomasse consciência dessa espoliação – do fato de que o patrão fica com o resto
da produção de um dia de trabalho e com a produção de todos os outros dias de
trabalho do mês inteiro, faria uma revolução e tomaria para si os meios de
produção. Momento em que deixariam de existir as classes sociais e adviria o regime
socialista. As fábricas e os comércios iriam para as "mãos" de seus
"donos legítimos", os trabalhadores; e a exploração desapareceria da
face da Terra porque se acabariam as classes sociais, desapareceriam ricos e
pobres.
Mas hoje essa teoria soa romântica e me soou também quando
eu olhei para aquelas pessoas no bar da esquina da Apiacás com a João Ramalho.
As mãos endurecidas, a conversa sobre um de seus maiores lazeres (futebol), mas
também sobre o quanto já tinham trabalhado naquela manhã antes do almoço. Suas
vidas rotineiras que tinham por objetivo ganhar seu salário para pagar aluguel,
alimentos, transporte, roupas, mandar os filhos para a escola, certamente ruim,
da periferia onde moram.
Trabalhadores do Brasil! Gente que passa (como em São Paulo)
horas dentro de ônibus e metrôs lotados, em pé, suados! Será que sonham?
Perguntei-me naquele meio dia. Sonham, sim, pois em uma mesa havia um
trabalhador que sonhava em comprar um par de alianças a prestações e se casar.
É, mas, na prática, a teoria de Marx e Engels não aconteceu. O que ocorreu foi uma experiência
malfadada sob a alegada "ditadura do proletariado". A "ditadura
do proletariado" de Marx (esse domínio da sociedade por parte dos
trabalhadores e o fim das classes sociais) é um sonho que, na prática, se transformou
em pesadelo para milhões no mundo real pela falta de liberdade, de democracia,
pela insistência na ideia de economia planificada dos socialismos! E, na antiga
União Soviética, até por escassez de alimentos e produtos de primeira
necessidade.
Mas a minha principal reflexão ali sentado junto àquele balcão
de bar foi sobre o grau de justiça que há (ou não há) nos argumentos de Marx
quando ele se preocupa com os trabalhadores. Então lembrei que se tem um grande
problema em seus argumentos quando ele fala da mais-valia e lembrei também
de um autor chamado Eugen Von Böhm-Bawerk (1851-1914) e de outro chamado Ludwig
von Mises (1881-1973) que, separadamente, refutaram Marx e mostraram porque a mais-valia
é um argumento falacioso.
Para ambos, Marx não considerou que o capitalista tem que
investir na produção, nas máquinas, nas matérias primas e pagar os salários dos
empregados, tudo isso antes de receber o possível "lucro". Na
prática, não há qualquer garantia de que o empregador receberá aquilo que
investiu e mais um pouco (o capital necessário para continuar mantendo a
produção). Assim, mesmo que o trabalhador fosse explorado e oprimido, ele já
recebeu seu salário antes mesmo do capitalista iniciar a venda de suas mercadorias.
Mas há exploração?
Eu penso que Marx acusa os capitalistas de apenas explorarem
os trabalhadores, mas não diz que os capitalistas também precisam trabalhar,
senão braçalmente, intelectualmente – realizando negócios para vender seus
produtos a outros capitalistas, viajar para encontrar matérias-primas mais
baratas, investir, se arriscar no mercado e pagar os impostos que os governos
exigem para permitir que alguém inicie um negócio.
A teoria de Marx me levou a um exemplo incomum, mas não
impossível. Vamos imaginar um pequeno produtor rural que tem um sítio onde
produz hortaliças juntamente com sua família (esposa e filhos). Esse pequeno
produtor precisa conseguir a terra (que pode ser sua por herança ou pode ser
arrendada). Para produzir, ele precisa comprar as sementes, o adubo, os
herbicidas, irrigar a lavoura. Suponhamos que em determinado período a safra foi
maior do que ele pôde colher com a ajuda de seus próprios braços, da esposa e filhos
e ele precise contratar um empregado para ajudá-lo. Ele negocia com o empregado
um valor de $ 50,00 dinheiros por dia de serviço e lhe paga ao final da semana
o combinado, ou seja, $ 250,00 dinheiros. Esse trabalhador, embora tenha
trabalhado de segunda-feira a sexta-feira, ao fim da semana terá recebido seu
pagamento, o pequeno produtor, não. Ele terá que esperar até o dia da
feira-livre (no sábado) na cidade (onde geralmente ele vende seus produtos). Transportá-los
(e, com isso, gastar tempo, combustível, dinheiro para alimentação de sua família
durante o período de estadia fora de casa e etc.), e ainda torcer para conseguir
vender todas as hortaliças na feira-livre. Ele assume algo que o trabalhador
não pode assumir devido a sua condição (e não assume, porque não precisa), o
risco.
O feirante poderá ou não conseguir vender todos os seus
produtos. E mais, e se os outros concorrentes feirantes também tiveram superprodução
naquele período? Isso significa que o preço das hortaliças, devido a grande
oferta, será menor que na safra anterior, o lucro corre, assim, o risco de ser
menor.
Ao seguir o raciocínio do feirante que contrata um empregado,
seria possível dizer que um gerente de banco privado é um "oprimido"
porque recebe salário e o pequeno produtor rural é um capitalista, algo que é
um disparate porque um gerente de banco detém um poder de compra muito maior
que o pequeno produtor rural, nesse exemplo.
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Tênis de marcas famosas fabricados em países que usam mão de obra sabidamente escrava ou semi-escrava como Cambodia e Vietnã Fonte: arquivo pessoal de Gerson Schulz |
Mises aponta que, de acordo com Marx, todos os bens são fruto
apenas do tempo gasto para produzi-lo e do trabalho do operário. Em outras
palavras, Marx diz que uma mercadoria custa, por exemplo, $ 10,00 dinheiros
apenas porque nela o trabalhador empregou um tempo socialmente gasto para
produzi-la, mas há, para Mises nessa premissa, um erro. Nenhum produto vale
apenas pelo tempo socialmente gasto pelo trabalhador para fabricá-lo. Pois se
fosse assim, como poderíamos comparar o trabalho de um escultor com o trabalho
de alguém que limpa a sarjeta? As pessoas pagam muito mais pela arte do
escultor (como também pagam por uma garrafa de vinho raro ou por um quadro) do
que a um faxineiro ou jardineiro que limpe suas casas ou gramado e, ao
contrário do que diz Marx, isso nada tem que ver com o tempo socialmente gasto
para produzir uma mercadoria ou prestar um serviço. Isso tem que ver com a
relação psicológica que as pessoas mantêm com as mercadorias.
Marx também afirma em "O Capital" que a exploração
existe porque a mercadoria rende ao capitalista muito mais além dos valores que
ele gastou para produzi-la, mas Mises faz notar que ele esquece que a forma
como as mercadorias são consumidas se transforma ao longo do tempo (e um dos
fatores que lembro para mudar isso é a inflação), de forma que o preço de uma
mercadoria hoje não será o mesmo amanhã. Marx, aqui, toma a parte pelo todo e
quer forçar a conclusão a se tornar universal, mas ela continua valendo apenas
para o âmbito particular.
O preço da mercadoria no mercado do futuro poderá ser maior,
gerando mais dinheiro ao capitalista, mas também poderá ser, por infortúnio, menor,
caso não seja vendido rapidamente. Isso, faço lembrar, sem abordar as
mercadorias que são perecíveis e que precisam ser consumidas logo, mas que nem
sempre são.
Marx comete outro erro quando, ideologicamente, quer instaurar
o socialismo ao dizer que a exploração é a essência do capitalismo e por esse
motivo ele deveria ser abolido. Isso não é verdade de acordo com um raciocínio
simples e empírico. Suponhamos que um empresário que deseja abrir uma fábrica
de sapatos faça o seguinte cálculo: "para abrir a fábrica eu (o
empresário) preciso saber se ela dará lucro (do qual parte eu investirei na
produção, parte pagarei os salários dos empregados e parte ficará para mim a
fim de me sustentar juntamente com minha família). Como eu faço isso?" Ao
fazer um exercício simples, por exemplo, suponha-se que para produzir um par de
sapatos eu gaste $ 50 dinheiros. Para fazer esse cálculo é preciso saber ao
menos os preços das matérias primas, o salário (em média) que terei que pagar a
cada empregado participante do processo de produção, os meios de produção, seu
desgaste natural e as matérias de produção auxiliares, preço das instalações,
aluguéis e outros.
O outro fator é o capital variável que é a parte do capital
usada pelo empresário para pagar os salários. O que Marx fez foi calcular o
custo de produção e subtraí-lo do preço final do produto. Ele percebeu que
ambos não eram iguais, pois havia um valor que aparecera como que por
"mágica" sobre o produto. A esse produto, ele chamou "mais-valia".
Porém, se na prática o empresário que quer montar uma fábrica de sapatos fizer
o cálculo e, supomos que o cálculo apresente o resultado positivo de lucro como
$ 20,00 dinheiros e eu somar a isso os $ 50,00 dinheiros, eu terei $ 80,00
dinheiros. O que Marx questiona é o surgimento dos $ 20,00 dinheiros e ele
afirma que esse "plus" é força de trabalho não paga pelo capitalista
e que é produzida pelo trabalhador. Isso na prática não é verdade porque nem
sempre se terá $ 20,00 dinheiros para pagar o trabalho do assalariado, isso vai
depender de uma série de condições independentes da vontade do capitalista como
intempéries, custos de transporte, armazenamento; no caso dos sapatos, a moda,
as tendências e etc. Outra variável que eu acrescento é o fato que todo
empreendedor sabe, que por meses ou anos uma empresa costuma não dar lucro e,
muitas vezes, o empreendedor tem que recorrer a empréstimos para cobrir até
mesmo custos de produção ou salários. De certa forma, a mais-valia pode
ocorrer, mas ela não é uma regra como Marx postulou, ela é algo que pode ou não ocorrer dentro
do sistema capitalista.
Outro argumento que pode rebater a crítica marxiana à
exploração capitalista quanto à mais-valia (considerando que Marx afirmou que o
aumento da riqueza se dava em relação à exploração dos trabalhadores) é o fato
empírico de que, nos dias atuais, se percebe que as empresas que mais têm lucro
no mercado não são aquelas que dispõem de grande montante de empregados (cuja
força de trabalho, supostamente, geraria mais-valia para o capitalista), mas, sim, as que dispõem de poucos empregados.
Ora, se são as empresas que dispõem de poucos empregados são as que
mais dão lucro, não tem sentido, hoje, o argumento de Marx porque se demonstra aí que
o capital gerado não advém de uma suposta exploração do trabalho do operário, o
lucro tem, isto sim, outra fonte.
Nessa perspectiva, está certo, em parte, Böhm-Bawerk quando
diz que "os socialistas desejam que os trabalhadores recebam mais do que
trabalharam" e "mais do que receberiam se fossem empresários".
Eu divagava – sozinho ali no balcão – sobre esse assunto quando
percebi que o garçom servia, apressado, uma bebida amarela em pequenos copos de
vidro. Percebi que em todas as mesas estava presente aquela bebida, que cada
vez mais ela era pedida. Fiquei curioso. Vendo-o apressado servindo, perguntei o que era aquilo. Ele me disse que era
"batidinha", uma mistura de água, cachaça, suco de maracujá e açúcar.
Eu disse: "ah...". Foi ali que percebi também que, esteja Marx errado
ou não, os trabalhadores (especialmente aqueles que 'pegam no pesado') precisam
se "drogar", bebendo álcool para aguentar o serviço a que estão
submetidos todos os dias. Mas também pensei que os ricos também se drogam, só que
com drogas mais caras como uísque doze anos e outras coisas... O fato é que nem
o socialismo como conhecemos e nem o capitalismo nos fizeram felizes. Mas a pergunta que fica
é: "o que nos faria felizes?"
Diante daquelas mãos calejadas dos trabalhadores. Dos rostos cansados. Da situação
miserável de pobreza, espera por dias melhores e mais felizes e rotina monótona
que assola nossas vidas medíocres, penso que naquele dia os operários no bar da
Apiacás com a João Ramalho materializavam diante deste professor que vos
escreve a situação prática que condiz com a frase predileta de um velho amigo
meu que dizia: "só bebendo".
Referências
CARCANHOLO, Reinaldo. Sobre a
Ilusória Origem da Mais-valia. In: Revista Crítica Marxista. São Paulo: v.16,
p.76-95, 2003.
MARX, Karl. O Capital: crítica da
economia política. Livro 1, v. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.