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sexta-feira, 11 de julho de 2014

NIETZSCHE: A EDUCAÇÃO CONTRA A CULTURA



Gerson N. L. Schulz


É filósofo, mestre em educação e foi professor
da disciplina de Filosofia da Educação
no Instituto de Ensino Superior do Amapá/IESAP
e na Universidade do Estado do Amapá/UEAP.
Contato: filosofodocotidiano@gmail.com


Artigo publicado originalmente no livro:

SCHULZ, Gerson Nei Lemos.  Nietzsche: a educação contra a cultura.
In: SCHULZ, Gerson Nei Lemos. (Org.). Et al.
Educação: ser, saber, fazer
Macapá/Porto Alegre: Alcance/Iesap, 2007.


O objetivo deste artigo é discutir o pensamento de Nietzsche sobre educação e cultura e para isso nada melhor que citar a Terceira Consideração Extemporânea intitulada: Schopenhauer como educador (1874), onde o filósofo alemão começa a conceber suas idéias sobre cultura. Ela traz à tona uma discussão a respeito da cultura alemã do século XIX, acusando-a de estar doente e ser muito inferior à cultura grega e romana da Antigüidade, não passando de uma caricatura daquelas.

Aprender a pensar: nas nossas escolas não se sabe mais o que isto significa. Até mesmo na universidade, até mesmo entre os verdadeiros sábios da filosofia, a lógica como teoria, como prática, como profissão começa a desaparecer. (NIETZSCHE, 1999, § 7). 


Friedrich Nietzsche - 1844-1900.
Nietzsche estava abismado diante do crescimento das escolas tecnicistas empreendidas pelo positivismo de Comte que acreditava que o progresso e a riqueza das nações européias estava no capitalismo industrial. A partir disso, constatava Nietzsche, surgia um prejuízo crescente das formas clássicas de ensino, a moda entre os estudantes era decorar o conhecimento, utilizá-lo como ferramenta apenas na indústria e não como meio para o crescimento pessoal. "Qual a tarefa de toda instrução superior? Converter o homem numa máquina". (Ibid., § 44).

Se o homem fosse convertido em máquina, definitivamente não haveria mais filosofia, sendo que ela só existe se existir o pensamento autônomo. E sem existir o pensamento, não poderia surgir nenhum gênio da cultura que Nietzsche entendia como o indivíduo que consegue se elevar acima da cultura de sua época para saná-la da doença. 

Meu conceito de gênio – Os grandes homens são como as grandes épocas, matérias explosivas, imensas acumulações de forças. [...] Quanto a tensão chegou a ser muito grande na massa, a mais casual irritação basta para se chamar à cena do mundo o gênio, para chamá-lo à ação e aos grandes destinos [...] Entre o gênio e seu tempo existe a relação que existe entre o forte e o fraco, entre o jovem e o velho (Apud DANELON, 2003).


Nessa época um exemplo de gênio – para Nietzsche – era Arthur Schopenhauer (de quem mais tarde se afastou como também se afastaria de Wagner que cogitou, por algum tempo ser outro modelo de gênio). É por isso que ele

[...] traz à tona uma discussão que vale sublinhar: a idéia de um modelo de educador, ou seja, a educação se faz somente se o educando tiver como referência para sua educação um modelo de mestre no qual ele possa assumir para si (Idem).

Para Nietzsche, Schopenhauer era esse modelo de homem e de gênio porque foi o único a renegar o Ocidente com seu pessimismo em O Mundo como Vontade e Representação, servindo de modelo (no entender de Nietzsche) não só para ele, como para toda a humanidade que devia elevar-se acima daquela cultura ocidental contaminada pelo utilitarismo capitalista que queria transformá-la em dinheiro – como queria o positivismo – e criticá-la. Logo: 

A minha avaliação de um filósofo depende da medida em que ele é capaz de dar um exemplo [...] Portanto, eu queria dizer que a filosofia na Alemanha deve sempre mais desaprender a ser 'ciência pura' e, justamente, este é o exemplo do homem Schopenhauer (Apud. DANELON, 2003).


Por isso Nietzsche se encanta com Schopenhauer logo quando toma em mãos O Mundo como Vontade e Representação, essa obra despertou nele uma profunda admiração pelas idéias contrárias aos modismos culturais da época. Nietzsche chamava essa cultura de "filistéia".

A cultura filistéia foi descrita por Nietzsche numa carta a Carl von Gesdorff na noite de 11 de abril de 1869, onde, em síntese, ele diz que está indo trabalhar na "instituição universitária", descrita por ele como um ambiente pesado, cheio de obrigações e onde é vendido o conhecimento, o que o transformará – conclui entristecido – num 'filisteu da cultura', isto é, num homem especializado (Cf. DIAS, sd). Para Scarlet Marton os filisteus da cultura são:

[...] aqueles que, estritos cumpridores das leis e dedicados executores dos deveres, execravam a liberdade gozada pelos estudantes. O 'filisteu' era uma personagem de bom senso, inculta em questões de arte e crédula na ordem natural das coisas. Usava o mesmo raciocínio para abordar as riquezas mundanas e as riquezas culturais [...] Os filisteus da cultura além de não serem cultos, têm a ilusão de sê-lo. Incapazes de criar, limitam-se a imitar ou consumir. Aliás, a imitação é apenas outra forma de consumo. Fizeram da cultura algo venal, puseram-na à venda, submeteram-na às leis que regem as relações comerciais 'quem e quantos consomem' é a questão fundamental a ser respondida (Apud. MARTON, 1982).

Arthur Schopenhauer
Mais adiante quando rompe com Schopenhauer, Nietzsche dirá: "O último filósofo, é assim que me nomeio, pois eu sou o último homem. Ninguém me fala a não ser exclusivamente eu, e a minha voz chega-me como a de um moribundo". (NIETZSCHE, sd. § 87). Isto é, quando amadurece o pensamento nietzschiano é ele quem dará exemplos. No livro Ecce Homo Nietzsche declara que a sua tarefa enquanto filósofo é educar e derrubar ídolos: "Eu não construo novos ídolos, os velhos que aprendam o que significa ter pés de barro. Derrubar ídolos (minha palavra para 'ideais') – isto sim é meu ofício" (NIETZSCHE, 1995, § 2)[1]



[1] Parece que levando em consideração esse ponto de vista nietzschiano (o dar exemplos associado ao sofrimento) fica fácil imaginar porque sua vida foi tão atribulada e porque parece que em certas ocasiões (em suas andanças sem casa fixa nem pátria) Nietzsche foi realmente um "moribundo".




A transvaloração da cultura através da educação


As idéias apresentadas em Sobre o Futuro de Nossos Estabelecimentos de Ensino (que se trata de uma palestra onde Nietzsche narra uma longa conversa com um amigo, um filósofo e um acompanhante) é a metade do caminho para se compreender o Nietzsche filósofo e professor. Ali ele aprofunda o que entende por cultura e educação e o que entende por pensamento crítico.

Sua primeira idéia é que a o homem novo (Übermensch) é aquele que é capaz de violar de qualquer forma as crenças que se tornaram a tradição. A respeito da violação das crenças, diz Nietzsche:

– Essa 'malignidade' é reencontrada em todo professor do novo, em todo pregador de novas coisas, a mesma ‘malignidade’ que desacredita o conquistador, ainda que se manifeste mais sutilmente e não mobilize imediatamente o músculo – o que faz, por outro lado, que desacredite com menos força! O novo, de qualquer forma, é o mal, pois é o que quer conquistar, derrubar os limites, destruir as antigas crenças; só o velho é o bem! Os homens de bem de todos os tempos são aqueles que plantam profundamente velhas idéias a fim de fazê-las frutificar, esses são os cultivadores do espírito. Mas todo terreno acaba por se esgotar, é preciso que o arado do mal o revolva (NIETZSCHE, 1976, p. 41).

Quem é o professor do novo? Para ele é o filósofo, mas não no sentido absoluto. Nietzsche quis dizer que todos os profissionais deveriam pensar como filósofos até se tornarem um, pois, de acordo com a teoria do gênio de Nietzsche, este não é predestinado a nascer filósofo. Portanto, a transformação da cultura deve começar por quem lida com ela, por professores e alunos. O estudante deve sempre buscar além daquilo que o professor ministra em sala de aula. Somente assim ele poderá percorrer o caminho para se superar a si e ao próprio professor, escapando da mediocridade.[2]



[2] No sentido nietzschiano: as atividades corriqueiras realizadas sem reflexão, a cultura do senso-comum, a linguagem jornalística que apenas narra o fato sem crítica própria, a "fofoca".

Com essa doutrina educacional (antropológica) Nietzsche supõe possível criar um novo projeto de homem, realizando uma crítica à modernidade cartesiana que separou natureza e homem em res cogitans e res extensa, privilegiando o mecanicismo. Para Nietzsche foi essa idéia de separação mecânica operada no homem (privilegiando as idéias inatas, portanto o intelecto) que fez os indivíduos renegarem outras faculdades humanas como sentimentos e instintos.

Resgatar as faculdades instintivas e sentimentais sem negar a razão é o projeto de Nietzsche. Por isso ele propõe a transvaloração dos valores da lógica aristotélica (lógica do terceiro excluído), da moral cristã (moral das massas que se deixam guiar louca e cegamente por um líder, o messias, na esperança de ganhar o mundo do além) e o rompimento epistemológico com a ciência de sua época (que para ele era a 'gaia ciência'). Assim ele afirma que o Universo e os fatos – como queria o Positivismo – não têm sentido e, por isso mesmo, estão condicionados ao seu tempo e aos olhos de quem os lê, e não à eternidade, não sendo verdades absolutas.

Nietzsche também propõe transvalorar a organização sócio-cultural e política de seu tempo, assim é possível afirmar que ele não concordava com o modo de produção industrial capitalista como afirma no aforismo 21 de A Gaia Ciência. Nietzsche também não é a favor da democracia quando a considera uma decadência no sentido de que ela adula o Estado (Prussiano) que pensava em si e não na cultura. Também não era a favor do autoritarismo, visto que detestava as políticas de massa porque, para ele, elas diluem o indivíduo. Também não se fez simpático ao socialismo nem ao anarquismo, como se observa nos aforismos 34 e 473 das obras: Crepúsculo dos Ídolos e Humano, demasiado humano, respectivamente, embora profetize que o socialismo iria acontecer e tenha incitado os trabalhadores a lutar por seus direitos.

Josef Stalin
1879 - 1953
Sobre o socialismo, ele temia que realmente se tornasse uma ditadura de algum líder mais exaltado e os trabalhadores, escravos do Estado. Fato que, ironicamente, ocorreu no chamado "socialismo real" Soviético sob o comando de Stálin.

Por fim, não se pode afirmar que ele fosse um liberal quando ressalta que

[...] a mais forte espécie de homem que houve até agora, as comunidades aristocráticas ao modo de Roma e Veneza, entendiam liberdade exatamente no sentido que eu entendo a palavra liberdade: como algo que se tem e não se tem, que se quer, e que se conquista [...]' (NIETZSCHE, 1974b, p. 349).

Assim se constata que Nietzsche apoiava um governo de aristocratas (o governo dos melhores), mas um governo formado por homens "geniais" (que se destacassem por sua inteligência) e não porque pertencessem à classe mais abastada.

Em relação à educação ele afirma:

[...] procede geralmente desta maneira: tentar determinar no indivíduo, com o engodo de inúmeras vantagens, maneira de pensar e agir que, tornada finalmente hábito, instinto, paixão, dominará nele e sobre ele, contra seus interesses supremos, mas em benefício de todos. Quantas vezes não observei que se o trabalho devotado, o zelo cego atribuem a riqueza, as honras fazem, por outro lado, com que os órgãos percam a sensibilidade que lhe permitiria fruir essa riqueza [...] Quantas vezes não constatei que esse remédio radical contra o aborrecimento e as paixões amolece os sentidos e torna o espírito rebelde a toda nova excitação (a mais laboriosa das épocas, a nossa, não sabe o que fazer de seu trabalho e de seu dinheiro, a não ser cada vez mais trabalho e mais dinheiro; [...] Adiante, deveremos ter 'netos'... A educação logra sucesso, qualquer virtude individual se torna utilidade pública e desvantagem privada tendo em vista o fim supremo do indivíduo; consegue apenas um enfraquecimento do espírito e dos sentidos [...],'Deves procurar teu proveito pessoal mesmo à custa dos demais’, apregoam portanto com o mesmo fôlego, o 'tu deves' e o 'tu não deves' (NIETZSCHE, 1976, p. 55-56).

A partir dessa citação, pode-se ter uma idéia do que Nietzsche pensa que deveria ser a educação. O oposto do que ele descreve. Isto é, uma forma de pensamento crítico (uma reflexão) sobre a cultura dada (isto é, construída antes do indivíduo nascer e transmitida a ele pelas instituições civis ou religiosas). Incluindo os maiores valores estabelecidos: "Deus" e o "Bem" que, para Nietzsche, foram construções humanas e não divinas. Logo, o modelo de educação apregoado pelo filósofo é humanista e deve permitir que o indivíduo libere seus instintos, suas habilidades, talentos (subjetividade).


Os fatos não devem ser ensinados ao aprendiz da forma como o Positivismo ensinava (tecnicista/mecânica/repetitiva), mas deve, isto sim, apresentar como e onde o indivíduo poderá utilizar aquele conhecimento adquirido em sua vida prática, pública e privada. Portanto, a educação, em última instância, deve ser estética, permitindo ao homem desenvolver a criatividade sobre o fato. Só assim poderá se revelar algum gênio e, então, para Nietzsche, o homem escapará do niilismo, do sem sentido e da mediocridade causados pela vida maquinal, automática que o modo de vida proposto pela Modernidade trouxe. Esta é sua idéia filosófica do dizer "não" para a cultura Ocidental.



[...] Em que medida, também entre nós, capacitar-se para ganhar dinheiro não se converteu em sinônimo de adquirir cultura? Em que medida o ensino profissionalizante e a especialização dos cursos superiores não se fazem em detrimento da formação humanística? Em que medida a massificação e o utilitarismo não se impõem à custa do aprimoramento individual? A estas questões nenhum educador pode furtar-se. Nietzsche combate, com veemência, a difusão inescrupulosa dos ditos bens culturais e os interesses imediatos que ela visa satisfazer. Longe, porém, de defender a cultura formal, que se limita a acumular dados e informações, opõe a erudição à vida, mas não nos deixemos enganar. Isso não revela traço algum de antiacademicismo, e sim a existência de um projeto: fazer dos estabelecimentos de ensino o lugar apropriado para a reflexão, o espírito crítico e a atividade criadora. É preciso, pois, devolver aos estabelecimentos de ensino a vocação que lhes é própria: 'fazer do homem um homem' (DIAS, sd., prefácio).


Nietzsche assinala o equívoco em se pensar que cultura é trabalho árduo, apenas. Para ele a cultura é o aprendizado não utilitarista de tudo o que o ser humano realizou na história, sem desvincular-se da vida real. A cultura não é uma erudição, mas um cabedal de conhecimentos vivos que deve ser ensinada de forma tal que os indivíduos possam criar coisas novas sobre as que aprendem. Nietzsche considera a produção da cultura industrializada[3] moda meramente intelectualista, uma farsa. Assim, é tomando esse pressuposto que se pode explorar a possibilidade de construir hoje uma pedagogia crítica do dizer "não" aos modismos, aos intelectualismos, aos capitalistas da cultura e até mesmo às ideologias do Estado que defendem a idéia de que a educação é um serviço, portanto, uma mercadoria.

A partir daí pode-se pensar a idéia que o verdadeiro estudante, tal qual o verdadeiro mestre, também pode ser autêntico dentro de sua escola sendo um crítico da própria cultura e auxiliando a podá-la de seus desvios utilitaristas patrocinados pelas classes econômicas dirigentes (aristocracia burguesa) que têm interesse em manter essa lógica de utilidade sobre tudo o que é produzido para transformá-la em mercadoria e gerar lucro puro e simples.


Para Nietzsche o niilismo ante a vida levou boa parcela da humanidade a crer que a história acabou e nada mais pode ser mudado. A idéia de massificação ganha espaço e surge o conceito do padrão (todos devem ser iguais). Mas com isso aparece um "mal-estar" dentro do núcleo da civilização porque as coisas perdem o sentido (niilismo). Não há mais o que inventar, o que fazer. A vida fica autômata. (SCHULZ, 2003, p. 137)




[3] Nietzsche criticava a formação meramente técnica de seu tempo, acusando-a de empobrecer a verdadeira cultura. Para ele o modelo que representa o ensino dos bacharelados (na Europa bacharelado equivale ao liceu) sugere uma cópia do processo industrial onde as mercadorias são produzidas em série. Da mesma forma o modelo de escola também produz indivíduos moldados para o Estado, para exercer a cidadania de forma igual, cumprindo mais deveres que lutando por direitos, pois todos têm os mesmos saberes e mesmas práticas morais e éticas. Dessa forma a cultura massifica-se caindo ela mesma no niilismo.

E como Nietzsche entende a cultura de seu tempo?

As águas da religião refluem e deixam para trás pântanos ou poças; as nações se separam outra vez com a maior das hostilidades e querem esquartejar-se. As ciências, praticadas sem nenhuma medida e no mais cego laissez faire, estilhaçam-se e dissolvem toda crença firme; as classes cultas e os Estados civilizados são varridos por uma economia monetária grandiosamente desdenhosa. Nunca o mundo foi mais mundo, nunca foi mais pobre em amor e bondade. As classes eruditas não são mais faróis ou asilos, em meio a toda essa intranqüilidade da mundanização; elas mesmas se tornam dia a dia mais intranqüilas, desprovidas de pensamento e de amor. Tudo está a serviço da barbárie que vem vindo, inclusive arte e a ciência de agora. O homem culto degenerou no pior inimigo da cultura, pois quer negar com mentiras a doença geral e é um empecilho para os médicos. (NIETZSCHE, 1974b, trechos dos aforismos 4 e 6. p. 81-4).

Aqui surge a idéia do filósofo como médico da civilização. Para Nietzsche é o filósofo que tem o papel preponderante de alertar as demais categorias profissionais (eruditos, médicos, cientistas) para os perigos da extirpação do conhecimento e sua fragmentação em especializações. Para o filósofo alemão não é especializando o homem aos "pedaços" (fragmentos) que ele saberá o todo, como se o todo fosse desprovido de sua própria totalidade, mas unindo o homem com seus vínculos fortes (instinto e paixão) que ele poderá tornar-se filósofo e ter o verdadeiro amor à sabedoria. Transformando conhecimento em sabedoria, só assim se poderá criar uma "nova cultura".

terça-feira, 13 de maio de 2014

DESEJO DE ESPERANÇA



"Geralmente as coisas não são como

queríamos; porém, seria a vitória do nosso

egoísmo se fossem,

por isso celebro que, ao menos, temos a

esperança!"

Autor: Gerson N. L. Schulz

sábado, 10 de maio de 2014

ERNST BLOCH: A ESPERANÇA



Gerson N. L. Schulz
Professor de Filosofia


Ainda não é noite o dia todo, 
ainda há uma manhã para cada noite.

Ernst Bloch




Pode ser no "ano novo", pode ser no final de semana, na saída de uma missa, de um culto, em uma segunda-feira qualquer, depois do carnaval, depois de perder o emprego, depois de uma briga com alguém, mas há no homem e na mulher um "motor" que faz com que ele e ela se movam e se renovem: é a esperança. A esperança renova a vontade de viver, a fé (para os que têm crença religiosa), a verdade (para os que buscam-na), a cura para o doente, a razão para o louco! E para falar em "esperança" ninguém melhor do que um pensador alemão do século XX chamado Ernst Bloch (1885-1977).

Bloch foi um filósofo marxista de origem judaica. Ele lecionou na Universidade de Leipzig mas, com a ascensão de Hitler ao poder em 1933, exilou-se nos Estados Unidos e só regressou à Alemanha Oriental em 1948, porém radicou-se definitivamente na Alemanha Ocidental dez anos depois onde continuou sendo professor na Universidade de Tübingen.

O marxismo de Bloch foi influenciado pelo romantismo alemão de George Hegel (1770-1831) e pela tradição judaico-cristã. Assim, o princípio fundamental de sua filosofia é a esperança (Hoffnung, em alemão). Para Bloch a história é algo que vai se fazendo de acordo com o princípio da esperança humana. Para ele a consciência é "consciência antecipadora" das coisas, do porvir. E é em "O Princípio Esperança" (1954-1959), em três volumes, que ele define o que é esperança.

Esperança, para o filósofo, não é mera ilusão, emoção infundada e até irracional como pensavam os gregos da escola estóica (para quem o princípio de uma vida feliz estava na ataraxia). Ernst Bloch diz que a esperança é uma emoção e é sempre positiva, daí, para ele, a possibilidade de ela ser a mola da história. Isto é, ninguém comete uma ação: pensar, planejar, viver, caso não tenha "esperança" de pôr seus planos em prática. Então a esperança é uma emoção positiva porque leva alguém de um ponto zero a um ponto infinito. Ela motiva a própria existência humana a sair do que é agora para algo que ainda não é. A sair da ataraxia, do estado de conforto. Ela é responsável, assim, pela transformação.

Mas esperança para Bloch também é o principio vital para se superar a servidão e as estruturas hierárquicas injustas da sociedade contemporânea. Logo, a esperança é militante, é transformadora da sociedade, dos valores, da cultura. O princípio da esperança é que ela não é aquilo que se deixa abalar por uma decepção qualquer, pois se isso acontece, não é esperança, é ilusão, fracasso! A esperança positiva leva o homem à utopia, ao sonho, mas não a um sonho qualquer (onírico), e sim ao sonho da própria existência e de torná-la absolutamente significativa. Bloch dá à esperança o papel de militância, ela serve, assim, como instrumento que deve garantir e promover a luta contra a opressão social, contra as humilhações e ofensas que o sistema político-industrial-militar impinge aos cidadãos. A esperança deve permitir ao homem andar de cabeça ereta e confiante em si mesmo, mas sem a arrogância. A esperança é, assim, aquilo que leva a um humanismo real, e tal humanismo só pode ser concreto, juntamente com a esperança, se o outro for considerado como igual, como ser humano que tem, como todos, os mesmos direitos, porém com o respeito a sua alteridade.

Como a esperança é um sentimento, é mais fácil renová-la nas datas que servem, simbolicamente, de referência para a mudança, como é o caso do ano novo, de um aniversário, de um acontecimento importante na vida de uma pessoa. A esperança é reinício; é um rito de passagem do agora para o depois que ainda não é. Mas esperança é também a possibilidade do perdão, do amor para que daí haja o renascimento. O faminto espera o que comer. Quem não tem moradia espera o lugar para viver. O doente espera a cura.

Por fim, como a Phoenix que renasce sempre das próprias cinzas, a esperança faz os seres humanos se levantarem todos os dias em busca de uma vida melhor de acordo, porém, com aquilo que seu horizonte de esperança permitir.

quarta-feira, 30 de abril de 2014

SÓCRATES E A FILOSOFIA


Gerson N. L. Schulz




Alusão a Sócrates na hora de sua morte.
Sócrates foi um filósofo grego que viveu por volta de (469 – 399 a.C). Seu lema era: "Conhece-te a ti mesmo". Ele partia da premissa de que nada sabia. Por isso incitava os jovens ao questionamento do óbvio: tinha a coragem de questionar em praça pública conceitos cotidianos como: "o que é a felicidade?" "O que é a coragem?". Muitos, arrogantemente, tentavam responder com exemplos: "coragem é enfrentar o inimigo de peito aberto em batalha!" Sócrates retrucava: "isso não é loucura, suicídio?" Outro dizia: "a felicidade é ter muito dinheiro!" Sócrates ironizava: "não há ricos que se suicidam?" E todos se calavam, pois nenhum dos interlocutores conseguia definir, claramente, esses e outros conceitos considerados inquestionáveis como a bondade, a justiça, o belo. Destarte, as aulas de Sócrates a seus discípulos trouxeram-lhe a fama, ainda mais porque ele nada cobrava de seus alunos, diferentemente dos filósofos sofistas (profissionais na arte da retórica) que cobravam altos preços por suas aulas. Sócrates, inevitavelmente, questionou as grandes verdades da sociedade grega: a política dos poderosos, a justiça dos tribunais, a venda do conhecimento praticada pelos sofistas (a quem detestava) e a religião pública controlada pelos sacerdotes. Suas perguntas ácidas e sua ironia para com os inimigos incomodaram a classe abastada de Atenas, a quem interessava manter o status quo na política e na religião, pois esses eram seus baldrames no palco do poder, por isso houve uma confabulação para levar Sócrates ao tribunal e condená-lo sob a acusação pífia de perverter a juventude e subverter a ordem estabelecida. Na prática, o que Sócrates fazia era incitar os jovens a pensar, apenas.
Enfim, por isso, ele foi obrigado a beber o venenoso sumo da cicuta aos setenta anos de idade.


REFERÊNCIAS

PLATÃO. República. Lisboa: Gulbenkian, 1993.

REALE, Giovanni ; ANTISERI, Dario. História da filosofia: antiguidade e idade média. 6. ed. São Paulo: Paulus, 1990.


sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

PAULO FREIRE: PEDAGOGIA DE REBANHO?



Prof. Dr. Gerson Nei Lemos Schulz
Editor do Blog





Atualmente ainda é muito comum ouvir-se nas escolas e nas graduações, especialmente de Pedagogia nas universidades, discursos como os dos professores Saviani ou Paulo Freire. As chamadas "pedagogias críticas".

Saviani, por exemplo, afirma em "Escola e democracia" (1983), que a "pedagogia revolucionária", acredita na igualdade essencial entre as pessoas. E que essa igualdade deve ser entendida em termos reais e não apenas formais (1983, p. 68). Então, o objetivo da educação crítica e revolucionária, segundo ele, é servir de instrumento para a instauração de uma sociedade igualitária. E, com esse fim, torna-se obrigatório que as classes exploradas e oprimidas tomem consciência de que é fundamental se apropriar da escola como instrumento para a "libertação" de sua condição de oprimidos.

Assim, nessa perspectiva, é essencial impor que a escola, e também o trabalho dos professores, intente a superação do modelo de sociedade vigente para a construção de uma sociedade sem classes, a sociedade socialista (SAVIANI, Pedagogia histórico-crítica, 1991, p. 105).

Por seu turno, a pedagogia de Paulo Freire – cujo ponto alto está em palavras-chave como "opressão", "libertação", "conscientização" –, segundo a professora Maria Manuela Alves Garcia (da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas em sua tese: 'A função pastoral-disciplinar das pedagogias críticas', UFRGS, 2000), tem como proposta educacional a "pedagogia libertadora" e essa não deve propor meramente conteúdos ou conhecimentos escolares, nem meras técnicas para se chegar à alfabetização ou à especialização, a fim de obter qualificação profissional ou pensamento crítico. Esses métodos – continua ela citando Freire – devem, sim, levar os sujeitos à "intimidade da sociedade" e à "razão de ser" de cada objeto de estudo. Analisa ela que "o discurso libertador 'ilumina' a realidade no contexto do desenvolvimento do trabalho intelectual sério" e, concomitantemente, ilumina e esclarece também a razão e as consciências.

Pode-se perceber que ocorre aqui uma "iluminação" e um "esclarecimento" que resultam do exercício da reflexão sobre si mesmo e sobre o mundo, "[...] do exame de consciência e do exame do mundo em que transcorre a existência daqueles que estão aprendendo" (FREIRE & SHOR, Medo e ousadia, 1987, p. 24-25).

Para a professora, a produção do cidadão racional, masculino, (auto)reflexivo e autônomo – em outras palavras – o sujeito ou a classe social plenamente desenvolvidos, a redenção e a salvação de si mesmo e da humanidade, pelo poder libertador da razão e da ação humanas, sintetizam os enunciados de pedagogias que se auto-intitulam: "pedagogias revolucionárias", "sócio-histórica", "histórico-crítica", "crítico-social dos conteúdos", "libertadora", "da conscientização", "da autonomia", e "da esperança", quando tratam das finalidades, das metas ou da teleologia da educação e do trabalho "didático-pedagógico crítico e progressista". É por isso que em sua tese a professora defende a ideia de que essas pedagogias são "pastorais" e "disciplinares".

As reflexões da professora me levam a perceber que essas pedagogias são moralizantes e moralistas, que pregam a "libertação" e a "autonomia", mas fazem justamente o contrário. Ela leva a crer que tais pedagogias são atos que tentam inculcar no indivíduo que todos são bons por natureza (tese rousseuniana do século XVIII) que também embasa as teorias marxistas do século XIX e XX. E, da mesma forma, são também a expressão tardia do Iluminismo francês do século XVIII quando pregam que há uma realidade que precisa ser desvelada, iluminada. Marx chega a afirmar que existe uma classe (geralmente chamada de burguesia) que falseia a realidade e a distorce para seu benefício em detrimento dos operários. Então é preciso revelar para as pessoas a "verdade", – o que é um ato de fé quando se acredita que existe apenas uma verdade – e qual verdade? – aquela que é propagada pela vanguarda intelectual que se dá a autoridade de "formar" o coletivo!

Outro argumento duvidoso é o que afirma que essa revelação da "verdade" se dá pela "conscientização", que é um processo pedagógico criado pelo coletivo das pessoas que se intitulam oprimidas ou excluídas. Dessa forma, a conscientização, quando ato pedagógico, pode ser adquirida na família, na igreja, mas especialmente na escola, pois é o lugar que desfruta de maior tempo obrigatório de audiência para os estudantes. É aí que o trabalho do professor é relevante ao funcionar como "guia", "pastor" (função outrora atribuída aos padres).

O guia é aquele que conduzirá os indivíduos para a "libertação" por meio da "conscientização". Então o professor/pastor, de posse do conhecimento a partir da perspectiva da luta de classes, levará – inevitavelmente – a sociedade ao socialismo, verdade "incontestável", "justa" e "absoluta" nas propostas pedagógicas libertadoras e histórico-críticas. Mas aqui pergunto: tais pedagogias não dão seguimento ao erro de Marx quando advogou a possibilidade do socialismo ser científico, acreditando que uma ideologia (o socialismo) poderia ter status de ciência?

A dinâmica dessas propostas implica que todos no coletivo se policiem para não cair na "tentação" de distorcer a realidade em seu benefício nem cair em algum modo de interpretar a sociedade por outro viés que não o da luta de classes e o do socialismo. Mas não é essa pedagogia um 'moralismo'? Pois, à medida que afirma que existe um "inimigo do povo" que deve ser perseguido e combatido a qualquer custo sob pena de (caso isso não ocorra) todo o projeto desabar e a sociedade "conscientizada" sofrer com a injustiça, a opressão, a desigualdade – palavras comuns tanto no discurso de Freire e de Saviani); e não é sem essa "conscientização iluminada" voltada para a igualdade das classes que se tem o "reino" das condutas da imoralidade? Condutas essas "imorais" apenas porque não são fruto da doutrina socialista? Não é também moralizante à medida que obriga todos que acreditam em seu "auto-de-fé" a se policiarem a si próprios, lutando para manter coeso e motivado o grupo (a sociedade) sob a mesma doutrinação ideológica para conseguir conquistar seu objetivo, a sociedade sem classes do socialismo? Além disso, as propostas desses autores parecem moralistas e moralizantes à medida que incorporam aos seus discursos as dicotomias presentes no binarismo das palavras "justo/injusto, "bom/mau", "pensar certo/pensar errado" e etc. Os autores não percebem que ao propor modelos de educação universalistas e totalizantes, eles seguem a mesma filosofia da educação que criticam e que provêm do Iluminismo francês. Também não percebem que suas propostas não têm qualquer possibilidade de se dizerem "melhor" ou "pior" que outras filosofias da educação porque são apenas discursos – propostas e concepções particulares de mundo – e, como tal, carregados de valorações subjetivas.


Sigo esta reflexão indagando: e o que a escola tem que ver com isso?
Ao considerar os argumentos favoráveis às teorias críticas concluo que a educação, nessa proposta, torna-se o que Nietzsche chama de "educação de rebanho". Uma educação para ovelhas, para bois...
Nietzsche, em "A genealogia da moral" (1974), faz severas críticas à moral ocidental afirmando que ela nunca deixou de ser, mesmo na modernidade racionalista, uma "moral de padres", ou como ele diz: uma "moral de rebanho". A moral de rebanho é aquela que pretende tornar os diferentes em iguais.

Assim, a escola que aplica qualquer uma das chamadas teorias críticas na sala de aula se torna uma instituição que, ao invés de permitir que o ser humano se desenvolva de acordo com seus potenciais, colabora para que haja um tipo de "castração" de ideias porque, na prática, contribui para que seja instaurado e oficializado um discurso doutrinário que promete a "libertação", porém, disfarçado de doutrinação. Quando uma escola qualquer adota tais discursos, alegando que eles são os únicos que portam a "verdade", ela deixa de ser uma instituição de formação para a pluralidade de pensamento e passa a ser um instrumento de "formação de rebanhos" porque toma indivíduos com potenciais diferentes, modos de pensar diferentes, e os padroniza por meio dos conteúdos reproduzidos pela figura da autoridade professoral. Conteúdos estes que estão de acordo com o que pensa a vanguarda que é formada pelos "intelectuais" que governam o coletivo.

Veja também

http://filosofiadomarcozero.blogspot.com.br/2010/05/por-que-nietzsche-nao-e-cristao.html

http://filosofiadomarcozero.blogspot.com.br/2012/12/paulo-freire-inside-out.html

http://filosofiadomarcozero.blogspot.com.br/2013/03/o-opressor-e-o-oprimido-na-perspectiva.html



Então, essas propostas falham escandalosamente porque prometem a "libertação" e a "autonomia" mas impõem (e aqui acaba a liberdade) a padronização e o pensamento único e finda a "autonomia" quando esta é substituída pela heteronomia do coletivismo.

Enfim, a escola institui e mantém assim uma "ditadura do coletivo" sobre os indivíduos. Por isso, para Nietzsche, em uma sociedade coletivista, todos são policiais de todos. Há uma vigilância ininterrupta sobre cada um, exercida por todos para que em momento algum um dos membros se desgarre – tal qual ocorre com as ovelhas que – às vezes – se desgarram da tutela do pastor – que promete as conduzir sempre ao "bom caminho".



REFERÊNCIAS




FREIRE, P.; SHOR, I. Medo e ousadia; o cotidiano do professor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

GARCIA, Maria Manuela Alves. A função pastoral-disciplinar das pedagogias críticas. Tese de Doutorado, Faculdade de Educação da UFRGS, 2000.


NIETZSCHE, Friedrich. A Genealogia da Moral. In: Os Pensadores. 1. ed. v. XXXII. São Paulo: Abril Cultural, 1974.

SAVIANI, Dermeval. Pedagogia histórico-crítica; primeiras aproximações. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1991.

______. Escola e democracia II – para além da teoria da curvatura da vara. In: ______. Escola e democracia. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1983, p. 62-84.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

O QUE É INDIFERENÇA?



Gerson Nei Lemos Schulz
Prof. universitário



 Fonte da imagem:
http://www.gepazebem.org/
amor-versus-indiferenca.html/indiferenca1
Indiferente é a pessoa que não demonstra preocupação alguma, se comporta de forma serena em face de algo ou alguém. É a ausência de interesse, a falta de consideração. Geralmente a indiferença se dá pela falta de sentimentos ou reações aos desejos, vontades, deveres ou direitos alheios.

Mas a indiferença não é apenas uma palavra, um conceito, é uma prática que vejo aumentar todos os dias nas ruas, entre as pessoas, as famílias. E se aumenta nas ruas há uma origem que tem a ver com a educação.

Parece óbvio que desde a revolução industrial as mulheres ganharam cada vez mais o direito ao trabalho fora de casa, com isso o modelo de família em que apenas os homens garantiam o sustento do lar mudou. De lá para cá se tem outros modelos de família: pais solteiros, mães solteiras, avôs que criam seus netos, casais gays e outros. Essa reflexão de forma alguma tem o objetivo de responsabilizar a independência feminina para o trabalho às mudanças ou origens do aumento da indiferença. Mas um dos fatos que se somam a isso é que os filhos, não importando por quem são educados, estão ficando sozinhos em casa, pois seus pais tem que trabalhar não só porque é uma necessidade antropológica, mas também porque é uma necessidade econômica.

No Brasil, segundo o Painel Nacional de Televisores (Ibope, 2011), as crianças entre 4 e 11 anos permanecem três horas na escola e cinco horas em frente à televisão, o que significa que quem as está educando é a programação da TV aberta que, acredito, tenha poucas qualidades pedagógicas levando-se em consideração as quatro maiores emissoras concorrentes. Nesse sentido ainda se pode comparar a escola à TV no quesito financiamento. Enquanto no Rio Grande do Sul um professor com treze anos de trabalho ganha RS 1300,00/mês, um apresentador de programa dominical ganha entre R$ 1.000.000,00 e R$ 2.000.000,00/mês. Enquanto a escola ganha parcos recursos públicos que muitas vezes não chegam ao destino carcomidos pela corrupção, um espaço no horário nobre da Rede Bandeirantes custa R$ 1.000.000,00 e este espaço nunca está vago. Quem está mais motivado a trabalhar, o professor ou o apresentador de TV?

Em relação à proposta pedagógica, quem interage mais, a escola com aulas semelhantes aos tempos do nascimento da Filosofia na Grécia Antiga onde o mestre falava a uma plateia entre cinquenta ou mais pessoas? Onde o mestre pedia exercícios de fixação a seus discípulos ou como no período medieval em que a escolástica pedia aos alunos que fossem incansáveis repetindo até memorizar todo o conhecimento? Ou a TV, em que as mensagens são transmitidas por comunicadores profissionais, onde as cores, bem ao gosto das crianças, são exuberantes, os sons são agradáveis, os olhos e os ouvidos são super-estimulados, onde, nos adolescentes, se estimula o consumo de mercadorias, às vezes inúteis e com forte apelo sexual, objetificando geralmente o corpo feminino?

A escola parece que perde no quesito interesse frente a TV! E a internet? Suas possibilidades são várias, inclusive ela pode conter todo o conhecimento humano. Vários grupos defendem que a rede mundial poderá abolir os professores e que ela será um ambiente onde cada um poderá se auto-instruir praticamente sem custos. Muito bem, é discutível afirmar isso, uma vez que se pergunta: será que os "alunos" conseguirão relacionar A e B sem a intermediação do professor?

Mas e a indiferença? Um dos lugares em que ela se manifesta mais frequentemente é no trânsito. O Brasil é o quarto país do mundo onde as pessoas são mais violentas no trânsito. Com um terço dos carros que circulam nos E.U.A, o Brasil supera aquele país no número de mortos em acidentes onde a principal causa é a imprudência. A indiferença está quando alguém troca de pista sem alertar os demais condutores da via, quando alguém não respeita os limites de velocidade, quando alguém bebe e pega o volante, quando alguém dirige com sono. E esse alguém não é "ninguém", esse alguém é você, posso ser eu! É o cientista, o policial, o médico, o pedreiro, o pintor, o professor, o desempregado! Esse alguém tem nome, endereço e profissão. Não é o "alguém" abstrato do conceito, da teoria, é alguém real! E esse alguém deixa mortos, deixa feridos irrecuperáveis, deixa tristeza, deixa injustiça pelas ruas e estradas. Por que um motorista ultrapassa em lugar proibido ou em uma curva? Por que um motorista assume este risco? Por que alguém põe em prática essa indiferença pelos demais condutores que circulam no sentido contrário da estrada? Por que esse alguém joga lixo em lugar proibido, mesmo sabendo que tal ato gera e espalha doenças para outras pessoas e até para si mesmas? Mesmo sabendo que isso contamina árvores e fontes de água?

Na prática esse alguém é um criminoso. Mais: não será essa indiferença o sintoma de uma doença? Não será a própria indiferença a doença?

Como classificar o sujeito que estaciona na vaga dos deficientes físicos sem o ser? O caminhoneiro que ultrapassa em uma curva?

Mas o que tem que ver com isso a TV e a escola? A TV promove propaganda de carros velozes, promove a imagem de masculinidade ainda associada à velocidade e ousadia no trânsito. Cria uma irrealidade a partir de fragmentos: a um comercial de carros segue-se um de doces ou refrigerantes e outro de cerveja. Os comerciais de publicidade sempre associam a compra à satisfação do indivíduo e nunca da coletividade. Tais comerciais são fragmentos porque não mantém qualquer relação de causa e efeitos uns com os outros. Fazem os desaviados pensar que o mundo está aí somente para eles. Para satisfazer suas necessidades animais. Os comerciais, bem como a educação midiática, mostram um mundo em que o indivíduo paira absoluto na esfera isolada acima do coletivo. É esse mecanismo que põe em funcionamento dentro da mente do desavisado um alerta que soa somente em seu cérebro ingênuo que lhe faz pensar que ele tem, como nos comerciais da TV, todo o direito sobre o mundo. Que o faz pensar que ele está sozinho para usufruir das coisas do mundo. É esse pensamento ingênuo e falso que "autoriza" alguém a jogar lixo em lugares proibidos. Essa falsa premissa permite que os desavisados se autorizem a reclamar por um falso direito que é aquele que eles usam para "encher a boca" alegando que jogam o seu lixo em lugar proibido, em frente à casas alheias porque o Poder Público não lhes dá o que eles merecem: o descarte correto do lixo. Assim, essa prática se perpetua e o falso direito prevalece em detrimento àqueles que gostariam de lutar pelo direito coletivo.

Por isso a situações parecem desconectadas, sem relação! Os desavisados não conseguem fazer a relação do uso do carro com as regras de trânsito ao dirigir. Não conseguem relacionar que o fato de descartarem o lixo em local proibido os põe contra o bom-senso e contra aqueles que desejam um ambiente saudável. Não conseguem perceber que são eles quem estão alijados e marginalizados pelo Poder Público que lhes cobra impostos pesados, mas lhes é indiferente. A inverídica premissa agindo dentro da mente dos desavisados lhes dá a falsa sensação de esperteza, mas o que ocorre é que eles é que são os maiores prejudicados porque, além de serem marginalizados pela autoridade competente, são eles que correm o risco de se tornarem mais doentes com as bactérias do lixo além de sua indiferença.

O que fazer quando a lei é amplamente ignorada? Ficar indiferente a ela? Adequar-se à situação? É o que o próprio sistema, que tem a indiferença inerente, faz com as pessoas. Esse modo de vida atual que associa sucesso à produção e à rapidez e deixa cada vez mais mortos, leva a sociedade ao colapso onde as leis de convivência social não funcionam mais, justamente porque as pessoas, para poder atender à demanda pessoal, as ignoram como se elas fossem obsoletas e não uma salvaguarda do respeito a todos. Essa dinâmica leva o interesse privado a superar o interesse coletivo. Como a TV afirma o tempo todo que o interesse do indivíduo está acima do coletivo, o "imperativo categórico da sobrevivência" dentro desse modelo de civilização fica, assim, comprometido porque é impossível a auto-crítica. Também se torna impossível a crítica ao próprio modelo que é tomado pela maioria das pessoas como o mais perfeito.

Fonte desta imagem e arte:
http://natrilhadocastelo.blogspot.com.br/
2012/12/assassinato-de-indio-galdino.html
Outro exemplo de indiferença que gostaria de relembrar é o caso do índio pataxó, o índio "Galdino", morto com 95% do corpo queimado por cinco jovens em Brasília há dezesseis anos, aos 44 de idade. Dos sete condenados, todos já estão soltos. Alguns hoje ocupam cargos públicos, inclusive. Na ocasião, em 1997, os assassinos alegaram que apenas queriam brincar com a vítima. Será que atear fogo a uma pessoa que está dormindo, sem direito à defesa, é "brincar"?


O mais curioso é que este crime ocorreu na capital federal e os condenados não ficaram presos mais do que cinco anos. Em Pelotas, no Rio Grande do Sul, em 2012, um mendigo foi amarrado a uma pilastra de uma caixa d'água pública, empalado e depois queimado vivo. Na cidade de Pelotas a notícia ganhou pouco destaque nos jornais. Após alguns dias, um cachorro foi morto por um cidadão que defendia uma criança de seu ataque. A população pelotense se indignou com o "assassinato" do animal e organizou passeatas pedindo justiça ao animal morto. Um vereador até propôs a criação de uma comissão especial municipal de defesa dos animais. O homem que matou o cão está respondendo por crime contra os animais. O mais estranho é que ninguém protestou pedindo justiça ao homem que foi empalado, sem chance de se defender, e depois queimado vivo! Pelotas tem 350.000 habitantes, não é no mínimo estranho que seus cidadãos não tenham se indignado também com esse assassinato crudelíssimo?



Será a indiferença um novo valor social?
Mas caso a indiferença seja reconhecida como um novo valor será, então, um direito! O direito à indiferença?

Em caso afirmativo é, no mínimo curioso, pois seria um direito contraditório porque levaria ao colapso a sociedade em função de que se todos forem indiferentes uns aos outros e a tudo, a própria sociedade que, para funcionar, necessita de um mínimo de cordialidade e solidariedade, se extinguirá.

Por fim, parece que se a indiferença for novo valor estará estabelecido aquele jogo em que se um ganhar todos perdem porque à medida que um tiver direito de ser indiferente, todos terão e então as regras de convivência e a lei, a cordialidade e a boa convivência serão banidas.

Voltar-se-ia ao estado de natureza, como diz o filósofo Thomas Hobbes, àquele estágio de selvageria que havia antes da existência da civilização como a conhecemos.