Gerson Nei Lemos Schulz
Como dizem os atores Nicolas Cage e
Jared Leto, interpretando os personagens Yuri Orlov e Vitaly Orlov em "Lord
of War" ou "O Senhor das Armas", no Brasil, cap. 2): Yuri Orlov
entra na cozinha do restaurante de seus pais e, após provar a comida que seu
irmão está cozinhando e fingir passar mal (ironizando o irmão) ao sair lê em
uma placa na porta do recinto: Beware of the dog e pergunta a seu irmão:
Cuidado com o cão? Você não tem cão, tá assustando as pessoas? Vitaly: Não, é
para me assustar, para me lembrar de ter cuidado com o cão em mim, o cão que
quer destruir tudo que se mexe, que quer lutar e matar os cachorros mais
fracos. Acho que é... para me lembrar de ser mais humano. Yuri: Ser cão não faz
parte de ser humano? E se essa fosse a melhor parte de você, ser cão? E se você
fosse apenas um cão de duas pernas? Ocorre uma pausa e Vitaly diz: – Você precisa
de ajuda. Yuri ironiza: – 'tá fedendo aqui.
Essa fala dos atores supracitados
sintetiza bem o que o filósofo alemão do século XIX, Friedrich Nietzsche, já
mencionava em sua obra: "A vontade de potência". Lá Nietzsche nos
leva a refletir sobre a moral e sua função controladora e repressora. Para ele
a moral é repressora à medida que impede o
homem de ser aquilo que determina sua natureza humana, isto é, exercer os predicados de sua parte animal.
Para Nietzsche toda a moral ocidental
associou ser racional a ser moralista e isso representou o certo, o bom e o
belo desejável em oposição ao ruim, ao feio e ao indesejável. Assim – no mundo
antigo – Sócrates estabeleceu que a vida física não era a mais digna de ser
vivida, mas que ela era apenas preparação para a outra vida – a da alma – a
verdadeira vida, porque era eterna, uma vez que Sócrates dizia que a alma era
imortal.
O mundo cristão medieval endossou
várias ideias de Sócrates descritas sob o entendimento de Platão; mas é claro,
renegando, por exemplo, a ideia de reencarnação, impossível para o
cristianismo. De qualquer forma, mesmo com o cristianismo entendendo que o
homem não tem uma "alma" como diziam Sócrates e Platão, mas um "pneuma"
um "sopro divino" que após a morte volta para Deus e que renascerá em
novo corpo somente no dia do Juízo Final, ainda assim a ideia de que esta vida
é apenas uma preparação para uma próxima, "melhor", persiste, pois as
igrejas cristãs afirmam que a próxima vida será melhor que esta e será em
plenitude, conforme dizem os evangelhos.
Immanuel Kant 1724-1804 Autor de "Crítica da Razão Pura" Conhecido por ter expulsado Deus pela porta da frente em seu projeto filosófico e o readmitido pela porta dos fundos. |
A Modernidade, por outro lado – embora
nasça no bojo da Reforma Protestante de Lutero e desencadeie o Iluminismo
europeu – ainda não conseguiu se livrar dessas ideias, mesmo com vários
pensadores tentando desmistificar o cristianismo da igreja católica ou protestante
como arcabouço teológico e filosófico. Ainda não se substituiu a ética cristã
que impregna o direito e a moral ocidentais desde a idade Média por outros
valores. No mundo medieval a ordem era seguir o rei porque ele estava no poder
endossado pelo Papa e este era Papa porque "deus queria". Na
modernidade, mesmo após a substituição do rei pela República, a ordem
estabelecida ainda mandava adorar o Estado e as igrejas ainda serviam de
veículo ideológico poderoso para convencer o povo a obedecer as leis. Nem
Jean-Jacques Rousseau ou Immanuel Kant conseguiram elaborar uma ética que
escape dos preceitos cristãos, ainda que suas propostas tendam a um tipo de racionalismo.
Nietzsche é o primeiro a construir uma
filosofia que faz um retorno, um retorno ao homem como um todo, procurando nas
entrelinhas humanas o homem integral que ele chamava de "além-do-homem". Esse ser humano que ao mesmo tempo é capaz de
atos heroicos, sublimes, corajosos e em defesa até de outrem, mas também dos
atos mais violentos, mais desprezíveis – na ótica cristã – e mais egoístas para
defender a si próprio, esse é o homem real. Para Nietzsche o homem não é o que querem os valores
cristãos. O homem teria sido, para ele, "estrangulado" pela moral
socrático-cristã. Para Nietzsche, tal qual para Hobbes e Kant, o homem não é
bom nem mal, ele é egoísta. Assim, estariam equivocadas as religiões que preconizam que o ser humano é "mau" por natureza e por
isso ele, o homem, precisa "lutar" pela sua salvação. Caso o ser humano não seja mau como dizem os religiosos, perde o sentido esse esforço em ser
"bom", em salvar sua alma. Perde o sentido buscar sentido para a
vida que não seja aquele que ela mesma apresenta: lutar, cada um por si mesmo,
para satisfazer suas necessidades básicas.
Friedrich Nietzsche 1844-1900 |
Nietzsche nos faz pensar que é um erro
afirmar que ser egoísta é "errado". Para ele o erro está em
sufocar o egoísmo porque é graças ao egoísmo que cada indivíduo pode se
manter vivo. É do egoísmo que sai a "vontade de vida". O único sentido
mesmo da vida, então, que não é metafísico, é suprir esse egoísmo. Logo,
Nietzsche diz que o cristianismo erra ao apregoar que a principal motivação da
vida de cada homem e mulher é desmantelar esse egoísmo. É um erro acreditar que se esse egoísmo
desaparecer, teria-se a paz. É por isso que, para Nietzsche, o cristianismo ao invés de promover a vida, ele a renega. A renega ao dizer que o egoísmo deve desaparecer para dar lugar à compaixão.
O filósofo conclui, daí, que o cristianismo é a religião do niilismo porque mata
a vontade de viver ao matar o egoísmo do homem. Então, ao invés de combater o niilismo, o cristianismo o promove quando reprime e tenta matar a motivação da vida, que não é só o egoísmo, mas os instintos em geral.
O cristianismo é então (como ele diz
em sua obra "O Anticristo") uma praga! Praga porque insiste que o
homem é pecador, que nasce doente pelo pecado – como dizem as igrejas cristãs. E
se essas ideias de pecado, de culpa desaparecessem, ainda se precisaria da
igreja, de "deus"? Não desapareceriam as ideias de bem e mal, bom e
belo, ruim e feio? O homem não reconheceria – por fim – que sua "natureza"
é amoral e que as regras morais que conhecemos são ficções criadas pelos
"melhoradores" ou "reformadores" da sociedade – igreja, Estado,
comunidade? Mas mais ainda, corroborando as perguntas, Nietzsche – e no
século XX, Foucault – nos fazem perceber que as convenções sociais, a moral, a
ética de determinada comunidade – em suas entrelinhas – sempre delegam
"poderes" a alguém (àqueles que criam os valores: como o sacerdote no
passado – hoje padres, pastores, líderes religiosos em geral; ao guerreiro –
hoje ao chefe militar –; ao dirigente do Estado – presidente ou Parlamento).
Todos estes agentes exercem sobre as demais pessoas o poder, o controle. E
Foucault ainda nos pergunta: "por que nos submetemos a este poder?"
Responde ele: "porque o poder é uma relação, ele está diluído nas
estruturas da sociedade.
O poder se manifesta não somente de cima para baixo, mas de baixo para cima também" (aqui citado livremente). Em outras palavras, Foucault nos faz pensar que aceitamos o poder político, econômico, moral, ético não porque sejamos submissos a ele, temamos as autoridades, mas porque em nosso íntimo também desejamos o poder. Uma pessoa pode ser pobre, trabalhar como "flanelinha" no trânsito. Alguém poderia classificá-la facilmente como uma pessoa "oprimida" – sob a ótica maniqueísta marxista ortodoxa – por exemplo; mas essa análise é apressada, pois da mesma forma que tal pessoa é pobre, é "oprimida" pelo Estado que não dá condições suficientes (no caso dos países pobres) para que ela estude, tenha emprego e goze das benesses da civilização, ela também exerce poder. Onde? Em um exemplo nosso, quando ameaça veladamente arranhar o carro de um cidadão que estacione pelas ruas das nossas cidades e que não aceite a oferta de seus "cuidados". Quem é que se sente livre e à vontade para recusar a "ajuda" do flanelinha? Por que o cidadão não se sente livre para recusá-la? Não é porque, embora de forma velada, o cidadão teme que a recusa signifique que o ofertante arranhe ou danifique seu bem?
O poder se manifesta não somente de cima para baixo, mas de baixo para cima também" (aqui citado livremente). Em outras palavras, Foucault nos faz pensar que aceitamos o poder político, econômico, moral, ético não porque sejamos submissos a ele, temamos as autoridades, mas porque em nosso íntimo também desejamos o poder. Uma pessoa pode ser pobre, trabalhar como "flanelinha" no trânsito. Alguém poderia classificá-la facilmente como uma pessoa "oprimida" – sob a ótica maniqueísta marxista ortodoxa – por exemplo; mas essa análise é apressada, pois da mesma forma que tal pessoa é pobre, é "oprimida" pelo Estado que não dá condições suficientes (no caso dos países pobres) para que ela estude, tenha emprego e goze das benesses da civilização, ela também exerce poder. Onde? Em um exemplo nosso, quando ameaça veladamente arranhar o carro de um cidadão que estacione pelas ruas das nossas cidades e que não aceite a oferta de seus "cuidados". Quem é que se sente livre e à vontade para recusar a "ajuda" do flanelinha? Por que o cidadão não se sente livre para recusá-la? Não é porque, embora de forma velada, o cidadão teme que a recusa signifique que o ofertante arranhe ou danifique seu bem?
O "oprimido" também exerce
poderes em casa com sua esposa e filhos quando está no controle da casa. A mulher
"oprimida" pelo empregador pode por este ser explorada, mas também
pode oprimir seu seus filhos ao espancar-lhes. Pode oprimir com palavras ou
atos a sogra idosa a quem "cuida", o cunhado doente, a mãe senil.
Apesar de todas as suas críticas, Nietzsche
não propõe o império da "barbárie" e da "imoralidade". Pensar
com Nietzsche significa repensar nossos padrões de conduta moralistas – pensar
em quão é realmente possível seguir com felicidade os padrões que as religiões determinam
para o homem.
A filosofia de Nietzsche nos leva a outras perguntas como: há legitimidade e autoridade em algumas pessoas que se dizem evangélicas e que não ingerem
bebidas alcoólicas, mas desejam em seu íntimo, que todas aquelas que
as consomem vão-se para o inferno?
Que autoridade tem um crente para "condenar", agredir, difamar outras pessoas que não acreditam na Bíblia, no Al Corão, no Bagavadguitá? A resposta também serve para a pergunta contrária: Tem autoridade um não-crente para condenar, agredir ou difamar quem acredita?
Nietzsche nos provoca – como devem
fazer os filósofos – a pensar: como seria se o homem fosse e agisse 'naturalmente'?
Sem se reprimir com a moral, com a religião, com as tradições, com seus
preconceitos sobre o mundo e sobre si mesmo?
O que podemos perguntar depois de
Nietzsche é: que fundamento terá nossa razão se ela também não passar de mero
instinto de sobrevivência? E se Deus não existir não será vã a fé? Mas como não
se pode provar que Deus exista ou não exista, o homem desenvolve e cultiva
outros "instrumentos" de sobrevivência além da razão, um deles é a fé
que, mesmo não podendo provar a solidez de seu fundamento – Deus – continua viva,
servindo de motivação para as pessoas viverem, sobreviverem, criarem, sonharem
com um mundo melhor, e manterem a esperança. Será que, assim como a verdade para
Nietzsche é uma "ficção útil" assim podemos classificar também a fé?
Mas e em relação à violência, de onde ela
vem?
Para a filosofia nietzscheana a violência
também faz parte do ser humano. Não há sociedade que até hoje não tenha
elaborado algum tipo de manifestação violenta. Os antigos sumérios
sacrificavam pessoas aos deuses. Babilônios, astecas e maias também. Os judeus,
gregos e romanos sacrificavam pombos, bodes e bois a seus deuses. Algumas religiões
animistas como certos desdobramentos do "batuque" e da umbanda ainda
o praticam. Na mitologia judaico-cristã adotada pelo catolicismo, o deus
cristão exigiu o sacrifício do personagem Jesus para que a humanidade fosse
salva e sua ira causada pelos pecados humanos fosse 'aplacada'. Na missa os cristãos
"comem" e "bebem" seu "deus" (na hóstia – que significa etimologicamente 'vítima' – e no
vinho que são, para eles, corpo e sangue de Jesus) ou o sacrifício da missa.
A violência é praticada pela mãe com o filho(a) no ato considerado por muitos um "ato pedagógico": o bater na criança para educá-lo(a), para impor-lhe limites. A violência é exercida por todo aquele que, de alguma forma, lança mão de força física para doutrinar seu cão, seu gato e etc. E, aqui, uma pergunta: o que é doutrinar, senão fazer com que outrem (o filho, o cão, o gato) se comportem dentro de certas regras que o doutrinador quer? Duas perguntas capitais saem daí: "que direito tem alguém de se intitular doutrinador sendo que sua doutrinação parte do princípio de que este quer que sua vontade predomine? E: por que, então, tem que predominar a vontade de uns sobre os outros?" Esse, seria na concepção de Nietzsche, nada mais que o exercício do egoísmo.
A violência é praticada pela mãe com o filho(a) no ato considerado por muitos um "ato pedagógico": o bater na criança para educá-lo(a), para impor-lhe limites. A violência é exercida por todo aquele que, de alguma forma, lança mão de força física para doutrinar seu cão, seu gato e etc. E, aqui, uma pergunta: o que é doutrinar, senão fazer com que outrem (o filho, o cão, o gato) se comportem dentro de certas regras que o doutrinador quer? Duas perguntas capitais saem daí: "que direito tem alguém de se intitular doutrinador sendo que sua doutrinação parte do princípio de que este quer que sua vontade predomine? E: por que, então, tem que predominar a vontade de uns sobre os outros?" Esse, seria na concepção de Nietzsche, nada mais que o exercício do egoísmo.
Mas para Nietzsche não é assim tão simples. Sua resposta é mais elaborada. Para ele, isso é a "vontade de
potência", e é um ato presente em todo o universo –
por exemplo – ele diz que as espécies animais têm a vontade de
potência e ela se exerce quando esses animais procuram se reproduzir, quando eles
entram em conflito pelo alimento, pela água, pelo território. Isso, para
Nietzsche, é o exercício pleno da busca pela satisfação do egoísmo, mas de um "egoísmo
positivo", sendo que é devido a essa busca que a vida tem sentido de ser
vivida. A "vontade de potência" é esse ato de querer desenvolver-se ainda
mais aquilo que já se é. A semente tem o princípio de ser árvore e luta para se
desenvolver em plenitude. O animal filhote luta e mata outros para ser o
dominador e garantir para si território, caça, fêmeas para se reproduzir. E o homem,
faz diferente?
Para Nietzsche o homem age da mesma forma, apenas por outros meios.
Assim a violência é uma das formas de
manifestação da "vontade de potência". Daí posso induzir, para
analisar a fala do personagem Yuri Orlov no filme "O senhor das
armas" que a violência está institucionalizada. Ela se institucionaliza
antes mesmo da concepção. Afinal, para que alguém nasça, alguém tem que lutar
para que nasça. Ao nascer, se conseguirmos sobreviver às dificuldades do útero,
somos vencedores, mas "matamos" nossa mãe que, durante a gravidez,
nos dá, mesmo que não queira, seus melhores nutrientes corporais, suas forças
para que nasçamos. Depois é a família que nos doutrina, imbuída da cultura dominante e cuja doutrinação, caso não sigamos, nos penaliza, nos castiga. E o comportamento da religião não é diferente. Tem-se, por exemplo, em três grandes religiões contemporâneas (judaísmo, cristianismo e islamismo), a exibição de exemplos de mártires que morreram
por, ou em nome de Deus. E essas três religiões clássicas sempre exigiram batismo
de sangue para seu 'deus'. O judaísmo porque valoriza o sacrifício, a morte por
entrega a 'deus'. Deus acima de tudo! O cristianismo católico, pela valorização
do sangue de seus "mártires" perseguidos pelo "amor à
palavra". O islamismo também embarcou na mesma filosofia pregando a
"guerra aos infiéis"!
Mesmo correndo o risco de o leitor
pensar que estou "inspirado pelo diabo" em minha análise, me arrisco a endossar que
grandes fatos históricos são frutos direto de ações consideradas violentas.
Egípcios, Babilônios, Persas conquistaram Ocidente e Oriente levando de um
extremo ao outro do mundo os numerais arábicos, as noções de contagem, escrita,
organização político-militar, a pólvora, o astrolábio, tudo graças às guerras.
Gregos, judeus e romanos também
promoveram guerras. Será que restaria hoje alguém do povo judeu caso o personagem
Moisés não tivesse assassinado um guarda egípcio – uma ação violenta que causou
a morte de uma pessoa que cumpria as leis de seu país – para libertar seu povo?
Israel de hoje existiria se Moisés não incitasse seu povo a combater e
massacrar os filisteus que habitavam a chamada "terra prometida" para dela se
apossar?
E Alexandre, o Grande, se ele não
tivesse conquistado o mundo oriental, seria conhecida a cultura ocidental? O mesmo se daria com a cultura latina que é nosso berço? E no mundo medieval os próprios
cristãos não usaram a violência física e ideológica para dividir e conquistar
outras culturas, afirmando que o que faziam era em nome de seu "deus"?
O desafio ao leitor é não pensar nesses fatos como "bons" ou "ruins". Uma guerra não é boa nem má. Assim como uma faca não é boa nem má, elas são o que são. O uso que se dá a elas, a intencionalidade dos atos que se praticam com elas é que alguns classificam como bons ou maus. Uma guerra sempre será "ruim" para o perdedor e boa para o vencedor, ruim para as vítimas (civis ou militares), mas boa para o soldado herói, para os governos de países aliados, para as empresas que lucraram com ela. Uma faca será algo "bom" para o indivíduo que corta a corda e se livra da forca, mas algo "ruim" para alguém que é esfaqueado.
E na modernidade... a escravidão não alavancou os grandes impérios fisiocratas, o comércio, a Revolução Industrial? O capitalismo, com as 20 horas - ou mais de trabalho imposto aos operários do século XIX - não propiciou o exercício da "vontade de potência" da Inglaterra, Estados Unidos da América, França, Itália, Alemanha e outros? E, se enganam aqueles que acreditam que nos Estados "socialistas" haja "justiça" plena, equanimidade, pois aqueles países também investiram altos esforços humanos (com sacrifícios de pessoas e animais), para alcançar e manter um nível elevado de progresso técnico-industrial.
O desafio ao leitor é não pensar nesses fatos como "bons" ou "ruins". Uma guerra não é boa nem má. Assim como uma faca não é boa nem má, elas são o que são. O uso que se dá a elas, a intencionalidade dos atos que se praticam com elas é que alguns classificam como bons ou maus. Uma guerra sempre será "ruim" para o perdedor e boa para o vencedor, ruim para as vítimas (civis ou militares), mas boa para o soldado herói, para os governos de países aliados, para as empresas que lucraram com ela. Uma faca será algo "bom" para o indivíduo que corta a corda e se livra da forca, mas algo "ruim" para alguém que é esfaqueado.
E na modernidade... a escravidão não alavancou os grandes impérios fisiocratas, o comércio, a Revolução Industrial? O capitalismo, com as 20 horas - ou mais de trabalho imposto aos operários do século XIX - não propiciou o exercício da "vontade de potência" da Inglaterra, Estados Unidos da América, França, Itália, Alemanha e outros? E, se enganam aqueles que acreditam que nos Estados "socialistas" haja "justiça" plena, equanimidade, pois aqueles países também investiram altos esforços humanos (com sacrifícios de pessoas e animais), para alcançar e manter um nível elevado de progresso técnico-industrial.
E na pós-modernidade surge ainda a
violência simbólica denunciada por Bourdieu e Passeron, que é aquele tipo de
violência que nos cercava e nos invadia nas propagandas de cigarros (lembrando que nos anos 1970 era bem cotada socialmente a pessoa que fumava, e que alguns médicos indicavam o fumo como medicamento contra o cansaço mental, hoje conhecido como estresse), bebidas (como a propagação de que consumir bebida alcoólica significa autonomia, emancipação); ter um carro signifique status. Mas a violência simbólica é velada, por isso tenta se parecer com o que menos ela é: com liberdade de escolha!
De volta ao "Senhor das Armas", o filme mostra que a guerra sempre existiu e que a violência está aí e todos a praticam em maior ou menor escala. Ela sempre deu lucros para governos, fábricas de armas, contrabandistas,
vendedores finais. É o instrumento fundamental dos soldados. Mundo afora muitos
empresários, staffs governamentais e políticos perderiam o poder caso não
dispusessem de exércitos poderosos pelas armas, especialmente pelas armas de fogo.
"As balas mudam os governos mais rápido que os votos", diz no filme o
personagem Simeon Weisz, um mercador internacional de armamentos. Ele está errado?
A maioria das Constituições de países
pelo mundo permite a seus cidadãos terem armas de fogo. Em vários países árabes
as pessoas podem ter em casa fuzis como a famosa AK-47. Na Suíça a maioria dos
cidadãos têm em casa – sendo por ela responsável – fuzis que serão utilizados
para a defesa daquele país em caso de guerra, já que a Suíça não tem um exército
regular, mas todos os cidadãos são militares armados. Na África há localidades
(e isso não é simples piada do filme "O senhor das armas") em que se
pode comprar fuzis, metralhadoras ao preço de uma galinha. As armas sempre
fascinaram a humanidade. Elas sempre permitiram a uns esmagar outros. Aos
exércitos – cujos reis desejavam conquistar territórios vizinhos para aumentar
a área de gozo de seus cidadãos e também o seu poder – conquistar terras,
cidades, fortunas, riquezas minerais.
A Segunda Guerra Mundial, especialmente, permitiu avanços tecnológicos imensos como o aperfeiçoamento do colete salva-vidas (à custas das experiências com seres humanos vivos, realizadas pelos alemães), o nascimento dos foguetes modernos, de bombas melhor elaboradas jogadas de aviões. Aperfeiçoou-se a aviação militar donde, posteriormente, a civil. Os transportes e logística no século XX. E o que está por trás de todo este progresso? Qual sua motivação? A "vontade de potência" de que nos fala Nietzsche?
A Segunda Guerra Mundial, especialmente, permitiu avanços tecnológicos imensos como o aperfeiçoamento do colete salva-vidas (à custas das experiências com seres humanos vivos, realizadas pelos alemães), o nascimento dos foguetes modernos, de bombas melhor elaboradas jogadas de aviões. Aperfeiçoou-se a aviação militar donde, posteriormente, a civil. Os transportes e logística no século XX. E o que está por trás de todo este progresso? Qual sua motivação? A "vontade de potência" de que nos fala Nietzsche?
E a violência é o instrumento pelo
qual essa "vontade" se realiza, geralmente, embora não a única.
Após a institucionalização do Estado
entre os seres humanos, iniciou-se a tradição – e surgiram as filosofias – para
justificar que o melhor para a humanidade se manter viva era abandonar o que
Hobbes no século XVI chamou de "estado de natureza" (a barbárie) pelo
"estado de paz" que seria garantido pelas leis, costumes, pela moral
e pela ética. Acreditou-se, a partir daí, que a humanidade
"melhoraria", progrediria. Que a violência deveria ser erradicada e
que ela desapareceria porque as pessoas perceberiam que é muito
"melhor" viver em uma sociedade em que ninguém se mata por uma fonte
de água, por uma peça de caça, pela "posse" de uma parceira sexual.
Freud chega mesmo a dizer em "O mal-estar da cultura", de 1930, que o homem "sacrificou a liberdade que possuía no estado primitivo de barbárie pela segurança da vida em sociedade." Mas ele pergunta se o sacrifício compensou ao homem e termina sua reflexão sem nos dar uma resposta.
Freud chega mesmo a dizer em "O mal-estar da cultura", de 1930, que o homem "sacrificou a liberdade que possuía no estado primitivo de barbárie pela segurança da vida em sociedade." Mas ele pergunta se o sacrifício compensou ao homem e termina sua reflexão sem nos dar uma resposta.
Guerrilheiras das FARC. Na luta por sua "vontade de potência"? |
É claro que ninguém gosta da violência
urbana que aumenta em nossas cidades a cada dia, tanto em países ricos e pobres. Porém, quando se fala em violência é comum as pessoas lembrarem-se de
assassinatos em periferias. Guerras de traficantes contra eles mesmos ou as
forças de segurança do Estado. Lembra-se também das guerras distantes para nós
brasileiros, como as guerras da antiga Iugoslávia, dos grupos separatistas da
Irlanda, da Espanha, das guerras entre países miseráveis na África. Guerras
entre árabes e judeus. Mas a violência não é só isso. Ela não se dá apenas na
guerra, embora este seja sua expressão mais enfática.
A violência está dentro do homem. É ou
não parte do instinto de sobrevivência da humanidade? A mentira, outra forma de
violência, é indispensável para alguém viver em sociedade hoje, infelizmente,
ou não? Sua esposa cortou o cabelo e o penteado está horrível, você falaria a verdade para ela ou diria outra coisa? Você não tem dinheiro algum e precisa de crédito
de outros bancos para pagar as dívidas, contaria para o agiota que está falido?
Uma pessoa está com depressão profunda e já tentou se suicidar algumas vezes; e você
descobre que a mãe dela está com câncer, você contaria para essa pessoa? Você
descobre uma traição conjugal de um marido cuja esposa é obcecada por ele, mas
ela é também sua melhor amiga, você mentiria sobre o tema se ela pedisse sua
opinião ou omitiria o que sabe? Há "n" situações onde mentir ou omitir fatos surte um efeito menos devastador na vida em sociedade, e as pessoas o fazem a fim de não causar mal-estares, desavenças
e até mortes. Isso é bom ou mau?
Por fim, lembro mais uma vez de
Sigmund Freud, de um texto seu, o da nota de rodapé número 47 do seu livro
"O mal-estar na cultura" onde ele afirma – ao refletir sobre a
educação:
o fato de a educação atual ocultar ao jovem o papel que a sexualidade representará em sua vida não é a única censura que se lhe deve fazer. Ela também peca ao não prepará-lo para a agressão de que ele está destinado a ser objeto. Ao lançar os jovens na vida com uma orientação psicológica tão incorreta, a educação procede como se munisse com roupas de verão e mapas dos lagos do norte da Itália pessoas que farão uma expedição polar. Torna-se claro, aí, um certo (sic) abuso das exigências éticas. Não causaria grande prejuízo ao rigor das mesmas se a educação dissesse: 'É assim que as pessoas deveriam ser para se tornarem felizes e fazerem felizes as outras; mas é preciso contar com o fato de que não são assim'. Em vez disso, deixa-se o jovem acreditar que todos os outros cumprem os preceitos éticos, ou seja, que são virtuosos. Com isso se fundamenta a exigência de que ele também venha a sê-lo.
Na passagem acima Freud ironiza a escola apontando seu
grande fracasso: não cumprir o que promete. Ora, se a escola sempre se deu
por função, como todo o aparato dos professores, criando toda uma estrutura
burocrática para justificar sua existência sobre o mito de que ela educa para a
vida, Freud denuncia que isso é falso. A escola, sugere ele, não prepara as
pessoas para a vida.
Antes do que preparar alguém para a
dureza que é a vida, de dar-lhe instrumentos necessários e seguros para
qualquer estudante perceber as falácias do mundo, as mentiras que as pessoas
lhe contarão para tirar vantagem do estudante que sai "nu de malícia"
da escola, a escola o "prepara" para viver em um mundo
ideal, algo que não existe a não ser na fantasia dos programas
escolares, no pensamento filosófico, na mente dos "melhoradores" da
humanidade como se propõem muitos autores das áreas da ética e da moral, da
filosofia ou da teologia.
E se ser cão for sua melhor parte? A escola pode estar cometendo o equívoco de matar o "cão" dentro de seus alunos. Não falo da violência pura e gratuita. Falo da "vontade de potência" do indivíduo, de fazer as pessoas se tornarem aquilo que elas são. De dar-lhes chances para concretizar seus talentos, dons e não as obrigarem a ouvir o tempo todo aulas que são ministradas da mesma forma que há dois mil anos nas academias gregas, cujos conteúdos são facilmente mais assimilados, hoje, ao se assistir um vídeo do que pela explanação oral, apenas. E isso não é novidade, Nietzsche propõe em sua obra "Sobre o Futuro de Nossos Estabelecimentos de Ensino" uma escola em que se deixasse desenvolver na criança suas aptidões naturais e não fossem os alunos, cujos talentos fossem conhecidos, obrigados a estudar como se obriga na escola atual alguém que será músico a estudar biologia, dentre outras disciplinas, por anos
Por fim, por isso, que pensar que o mundo humano "é perfeito e
que todas as pessoas são felizes" (Legião Urbana) é um grande engano! O texto de Freud é um tiro de misericórdia nos projetos que visam a chamada "educação para a paz" da Organização Mundial das Nações Unidas. Freud faz pensar que a escola ainda hoje dá mapas dos lagos do norte da Itália e roupas de verão para quem, na verdade, fará uma viagem polar. Quando Freud denuncia a escola e seu fracasso para ensinar alguém a ser humano, eu lembro que, em outras palavras, podemos dizer que a escola faz o mesmo que Sísifo, o personagem da mitologia grega que foi obrigado a rolar uma pedra gigantesca morro acima, mas que sempre
escorregava novamente para a base, obrigando o imortal personagem ao trabalho
eterno e inglório. E se ser cão for sua melhor parte?
Ótimo Texto !
ResponderExcluirSeu texto é muito bom, Dr. Gerson. Conseguisse analisar a essência do personagem Yuri do filme. Um sujeito amoral que está interessado no dinheiro, sem se importar com suas ações e as consequências delas pro mundo, as pessoas. Também ele representa o espírito do capitalismo atual. Não importa o outro e seus problemas, interessa mais resolver o meu [dele] e ganhar. É com Nietzsche que também temos a chance de perceber, como no filme, que temos em nos essa vontade de potência. De sermos aquilo que somos. Exercer aquilo que trazemos conosco. Fazer essa vontade de poder aflorar. Ass.: Flora M.
ResponderExcluirCom tanta produção cultural sintética, para pensar na possibilidade de um ser orgânico precisaríamos ser fora do mundo. Porém jamais estaremos fora dele, pois ele jaz dentro de nós. E se ser cão for sua melhor parte? Essa frase é o orgasmo do literário do texto. Parabéns!
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