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terça-feira, 25 de agosto de 2015

A ILUSÃO DA MAIS-VALIA




Gerson N. L. Schulz
Professor de Filosofia no Brasil




Apiacás com João Ramalho - SP
Foto do arquivo pessoal de Gerson Schulz

Era julho de 2015, meio dia. Eu estava tomando um café com sanduíche num bar popular na esquina da rua Apiacás com a João Ramalho, nas Perdizes, em São Paulo. Estava calor. Apesar de ser inverno, o dia estava ensolarado e com nuvens esparsas.

Eu admirava – com a perspectiva de um cliente – a destreza e a rapidez com que o garçom preparava lanches, servia coxinhas, pães de queijo, aquecia esfirras no micro-ondas e, quase ao mesmo tempo em que cortava laranjas para espremer e preparar o suco que eu havia pedido, conversava com seus clientes conhecidos que iam chegando para o almoço. Outro colega dele cortava limões para preparar bebidas. Outro cozinhava atrapalhado pelos vapores quentes que saiam das panelas.

De repente as mesas vazias se encheram rapidamente. Duas mulheres jovens, com uniformes azuis que pareciam ser comerciárias, solicitaram sanduíches para levar. Induzi que estavam em horário de almoço e não teriam sequer tempo para comer ali.

Os trabalhadores no bar Nova Lisboa - SP
Foto do arquivo pessoal de Gerson Schulz


Havia umas trinta mesinhas de quatro lugares naquele estabelecimento que rapidamente ficaram cheias. As pessoas que as ocuparam não eram muito diferentes. Eram, na maior parte, pessoas vestindo uniformes. Entregadores de gás, vendedores, operários de fábrica e oficinas mecânicas, garis. E eu estava lá e, por um momento, me perguntei: o que fazia ali? Uma vez que aquele não era meu universo!

Não por preconceito, mas porque não sou paulistano, não sou operário de serviço pesado e não deveria estar comento sanduíches gordurosos de boteco que fazem mal para a saúde de qualquer um, mas foi circunstancial...

O mais estranho era estar ali pensando que não devia estar ali e analisando, ao mesmo tempo, as cenas. Pensava sobre quem eram aquelas pessoas e como suportavam sua rotina de trabalho. Então me lembrei de Karl Marx (1818-1883) que afirmava que o capitalismo era nefasto porque espoliava os trabalhadores, ao explorar o único bem que eles têm, sua força de trabalho.

A teoria de Marx diz que os donos dos meios de produção (os capitalistas), detêm o capital e como eles detêm os modos de produção (as máquinas, os implementos, as terras e etc.), eles pagam o salário ao trabalhador que, em troca, vende sua força de trabalho (barata) ao capitalista. Barata porque, para Marx, ninguém ganha o quanto merece!

Assim, na esteira de Marx, eu me perguntei, por exemplo: em quanto tempo um pedreiro, um entregador de mercadorias, um motorista, um lixeiro, um empregado qualquer daqueles ali, naquele dia, precisava trabalhar para produzir seu salário?

Marx, em "O Capital", calculou que o tempo da metade de um dia é o tempo necessário que qualquer operário leva para produzir a riqueza para o capitalista pagar o seu salário. Dessa forma, o restante do dinheiro do tempo trabalhado (da outra metade do dia), fica com os donos dos meios de produção. A esse excedente Marx chamou de "mais-valia".

Por isso, de acordo com Marx, quando a classe trabalhadora tomasse consciência dessa espoliação – do fato de que o patrão fica com o resto da produção de um dia de trabalho e com a produção de todos os outros dias de trabalho do mês inteiro, faria uma revolução e tomaria para si os meios de produção. Momento em que deixariam de existir as classes sociais e adviria o regime socialista. As fábricas e os comércios iriam para as "mãos" de seus "donos legítimos", os trabalhadores; e a exploração desapareceria da face da Terra porque se acabariam as classes sociais, desapareceriam ricos e pobres.

Mas hoje essa teoria soa romântica e me soou também quando eu olhei para aquelas pessoas no bar da esquina da Apiacás com a João Ramalho. As mãos endurecidas, a conversa sobre um de seus maiores lazeres (futebol), mas também sobre o quanto já tinham trabalhado naquela manhã antes do almoço. Suas vidas rotineiras que tinham por objetivo ganhar seu salário para pagar aluguel, alimentos, transporte, roupas, mandar os filhos para a escola, certamente ruim, da periferia onde moram.

Trabalhadores do Brasil! Gente que passa (como em São Paulo) horas dentro de ônibus e metrôs lotados, em pé, suados! Será que sonham? Perguntei-me naquele meio dia. Sonham, sim, pois em uma mesa havia um trabalhador que sonhava em comprar um par de alianças a prestações e se casar.

É, mas, na prática, a teoria de Marx e Engels não aconteceu. O que ocorreu foi uma experiência malfadada sob a alegada "ditadura do proletariado". A "ditadura do proletariado" de Marx (esse domínio da sociedade por parte dos trabalhadores e o fim das classes sociais) é um sonho que, na prática, se transformou em pesadelo para milhões no mundo real pela falta de liberdade, de democracia, pela insistência na ideia de economia planificada dos socialismos! E, na antiga União Soviética, até por escassez de alimentos e produtos de primeira necessidade.

Mas a minha principal reflexão ali sentado junto àquele balcão de bar foi sobre o grau de justiça que há (ou não há) nos argumentos de Marx quando ele se preocupa com os trabalhadores. Então lembrei que se tem um grande problema em seus argumentos quando ele fala da mais-valia e lembrei também de um autor chamado Eugen Von Böhm-Bawerk (1851-1914) e de outro chamado Ludwig von Mises (1881-1973) que, separadamente, refutaram Marx e mostraram porque a mais-valia é um argumento falacioso.

Para ambos, Marx não considerou que o capitalista tem que investir na produção, nas máquinas, nas matérias primas e pagar os salários dos empregados, tudo isso antes de receber o possível "lucro". Na prática, não há qualquer garantia de que o empregador receberá aquilo que investiu e mais um pouco (o capital necessário para continuar mantendo a produção). Assim, mesmo que o trabalhador fosse explorado e oprimido, ele já recebeu seu salário antes mesmo do capitalista iniciar a venda de suas mercadorias. Mas há exploração?

Eu penso que Marx acusa os capitalistas de apenas explorarem os trabalhadores, mas não diz que os capitalistas também precisam trabalhar, senão braçalmente, intelectualmente – realizando negócios para vender seus produtos a outros capitalistas, viajar para encontrar matérias-primas mais baratas, investir, se arriscar no mercado e pagar os impostos que os governos exigem para permitir que alguém inicie um negócio.

A teoria de Marx me levou a um exemplo incomum, mas não impossível. Vamos imaginar um pequeno produtor rural que tem um sítio onde produz hortaliças juntamente com sua família (esposa e filhos). Esse pequeno produtor precisa conseguir a terra (que pode ser sua por herança ou pode ser arrendada). Para produzir, ele precisa comprar as sementes, o adubo, os herbicidas, irrigar a lavoura. Suponhamos que em determinado período a safra foi maior do que ele pôde colher com a ajuda de seus próprios braços, da esposa e filhos e ele precise contratar um empregado para ajudá-lo. Ele negocia com o empregado um valor de $ 50,00 dinheiros por dia de serviço e lhe paga ao final da semana o combinado, ou seja, $ 250,00 dinheiros. Esse trabalhador, embora tenha trabalhado de segunda-feira a sexta-feira, ao fim da semana terá recebido seu pagamento, o pequeno produtor, não. Ele terá que esperar até o dia da feira-livre (no sábado) na cidade (onde geralmente ele vende seus produtos). Transportá-los (e, com isso, gastar tempo, combustível, dinheiro para alimentação de sua família durante o período de estadia fora de casa e etc.), e ainda torcer para conseguir vender todas as hortaliças na feira-livre. Ele assume algo que o trabalhador não pode assumir devido a sua condição (e não assume, porque não precisa), o risco.

O feirante poderá ou não conseguir vender todos os seus produtos. E mais, e se os outros concorrentes feirantes também tiveram superprodução naquele período? Isso significa que o preço das hortaliças, devido a grande oferta, será menor que na safra anterior, o lucro corre, assim, o risco de ser menor.

Ao seguir o raciocínio do feirante que contrata um empregado, seria possível dizer que um gerente de banco privado é um "oprimido" porque recebe salário e o pequeno produtor rural é um capitalista, algo que é um disparate porque um gerente de banco detém um poder de compra muito maior que o pequeno produtor rural, nesse exemplo.

Tênis de marcas famosas
fabricados em países que usam mão de obra
sabidamente escrava ou semi-escrava
como Cambodia e Vietnã
Fonte: arquivo pessoal de
Gerson Schulz

Mises aponta que, de acordo com Marx, todos os bens são fruto apenas do tempo gasto para produzi-lo e do trabalho do operário. Em outras palavras, Marx diz que uma mercadoria custa, por exemplo, $ 10,00 dinheiros apenas porque nela o trabalhador empregou um tempo socialmente gasto para produzi-la, mas há, para Mises nessa premissa, um erro. Nenhum produto vale apenas pelo tempo socialmente gasto pelo trabalhador para fabricá-lo. Pois se fosse assim, como poderíamos comparar o trabalho de um escultor com o trabalho de alguém que limpa a sarjeta? As pessoas pagam muito mais pela arte do escultor (como também pagam por uma garrafa de vinho raro ou por um quadro) do que a um faxineiro ou jardineiro que limpe suas casas ou gramado e, ao contrário do que diz Marx, isso nada tem que ver com o tempo socialmente gasto para produzir uma mercadoria ou prestar um serviço. Isso tem que ver com a relação psicológica que as pessoas mantêm com as mercadorias.

Marx também afirma em "O Capital" que a exploração existe porque a mercadoria rende ao capitalista muito mais além dos valores que ele gastou para produzi-la, mas Mises faz notar que ele esquece que a forma como as mercadorias são consumidas se transforma ao longo do tempo (e um dos fatores que lembro para mudar isso é a inflação), de forma que o preço de uma mercadoria hoje não será o mesmo amanhã. Marx, aqui, toma a parte pelo todo e quer forçar a conclusão a se tornar universal, mas ela continua valendo apenas para o âmbito particular.

O preço da mercadoria no mercado do futuro poderá ser maior, gerando mais dinheiro ao capitalista, mas também poderá ser, por infortúnio, menor, caso não seja vendido rapidamente. Isso, faço lembrar, sem abordar as mercadorias que são perecíveis e que precisam ser consumidas logo, mas que nem sempre são.

Marx comete outro erro quando, ideologicamente, quer instaurar o socialismo ao dizer que a exploração é a essência do capitalismo e por esse motivo ele deveria ser abolido. Isso não é verdade de acordo com um raciocínio simples e empírico. Suponhamos que um empresário que deseja abrir uma fábrica de sapatos faça o seguinte cálculo: "para abrir a fábrica eu (o empresário) preciso saber se ela dará lucro (do qual parte eu investirei na produção, parte pagarei os salários dos empregados e parte ficará para mim a fim de me sustentar juntamente com minha família). Como eu faço isso?" Ao fazer um exercício simples, por exemplo, suponha-se que para produzir um par de sapatos eu gaste $ 50 dinheiros. Para fazer esse cálculo é preciso saber ao menos os preços das matérias primas, o salário (em média) que terei que pagar a cada empregado participante do processo de produção, os meios de produção, seu desgaste natural e as matérias de produção auxiliares, preço das instalações, aluguéis e outros.

O outro fator é o capital variável que é a parte do capital usada pelo empresário para pagar os salários. O que Marx fez foi calcular o custo de produção e subtraí-lo do preço final do produto. Ele percebeu que ambos não eram iguais, pois havia um valor que aparecera como que por "mágica" sobre o produto. A esse produto, ele chamou "mais-valia". Porém, se na prática o empresário que quer montar uma fábrica de sapatos fizer o cálculo e, supomos que o cálculo apresente o resultado positivo de lucro como $ 20,00 dinheiros e eu somar a isso os $ 50,00 dinheiros, eu terei $ 80,00 dinheiros. O que Marx questiona é o surgimento dos $ 20,00 dinheiros e ele afirma que esse "plus" é força de trabalho não paga pelo capitalista e que é produzida pelo trabalhador. Isso na prática não é verdade porque nem sempre se terá $ 20,00 dinheiros para pagar o trabalho do assalariado, isso vai depender de uma série de condições independentes da vontade do capitalista como intempéries, custos de transporte, armazenamento; no caso dos sapatos, a moda, as tendências e etc. Outra variável que eu acrescento é o fato que todo empreendedor sabe, que por meses ou anos uma empresa costuma não dar lucro e, muitas vezes, o empreendedor tem que recorrer a empréstimos para cobrir até mesmo custos de produção ou salários. De certa forma, a mais-valia pode ocorrer, mas ela não é uma regra como Marx postulou, ela é algo que pode ou não ocorrer dentro do sistema capitalista.

Outro argumento que pode rebater a crítica marxiana à exploração capitalista quanto à mais-valia (considerando que Marx afirmou que o aumento da riqueza se dava em relação à exploração dos trabalhadores) é o fato empírico de que, nos dias atuais, se percebe que as empresas que mais têm lucro no mercado não são aquelas que dispõem de grande montante de empregados (cuja força de trabalho, supostamente, geraria mais-valia para o capitalista), mas, sim, as que dispõem de poucos empregados.

Ora, se são as empresas que dispõem de poucos empregados são as que mais dão lucro, não tem sentido, hoje, o argumento de Marx porque se demonstra aí que o capital gerado não advém de uma suposta exploração do trabalho do operário, o lucro tem, isto sim, outra fonte.

Nessa perspectiva, está certo, em parte, Böhm-Bawerk quando diz que "os socialistas desejam que os trabalhadores recebam mais do que trabalharam" e "mais do que receberiam se fossem empresários".

Eu divagava – sozinho ali no balcão – sobre esse assunto quando percebi que o garçom servia, apressado, uma bebida amarela em pequenos copos de vidro. Percebi que em todas as mesas estava presente aquela bebida, que cada vez mais ela era pedida. Fiquei curioso. Vendo-o apressado servindo, perguntei o que era aquilo. Ele me disse que era "batidinha", uma mistura de água, cachaça, suco de maracujá e açúcar. Eu disse: "ah...". Foi ali que percebi também que, esteja Marx errado ou não, os trabalhadores (especialmente aqueles que 'pegam no pesado') precisam se "drogar", bebendo álcool para aguentar o serviço a que estão submetidos todos os dias. Mas também pensei que os ricos também se drogam, só que com drogas mais caras como uísque doze anos e outras coisas... O fato é que nem o socialismo como conhecemos e nem o capitalismo nos fizeram felizes. Mas a pergunta que fica é: "o que nos faria felizes?"

Diante daquelas mãos calejadas dos trabalhadores. Dos rostos cansados. Da situação miserável de pobreza, espera por dias melhores e mais felizes e rotina monótona que assola nossas vidas medíocres, penso que naquele dia os operários no bar da Apiacás com a João Ramalho materializavam diante deste professor que vos escreve a situação prática que condiz com a frase predileta de um velho amigo meu que dizia: "só bebendo".


Referências

CARCANHOLO, Reinaldo. Sobre a Ilusória Origem da Mais-valia. In: Revista Crítica Marxista. São Paulo: v.16, p.76-95, 2003.

MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro 1, v. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.


segunda-feira, 30 de março de 2015

A FILOSOFIA NO COTIDIANO: O BRASIL E OS PROTESTOS DE MARÇO DE 2015


OPINIÃO POLÍTICA


Gerson N. L. Schulz

Filósofo



Muitos pensam que a Filosofia é apenas coisa de acadêmicos. Coisa de "liberais", de "políticos", de "esquerdistas" e até de "comunistas", apenas. Mas não! Por isso o objetivo deste artigo é mostrar como a Filosofia está presente no cotidiano, no dia-a-dia das pessoas desde a fila do ônibus quando alguém discute sobre os capítulos de sua novela preferida até a sua situação com a família ou a prestação da casa.

Assim a Filosofia é, ouso dizer, a arte da conversação. Da dialética, em termos mais filosóficos. Da discussão de ideias e, mais que isso, a busca da veracidade dos fundamentos de tais ideias (as que estão presentes em uma discussão). É por isso que se pode falar em Filosofia Política, Filosofia da Economia, Filosofia da Educação, Filosofia da Ciência, Filosofia da Matemática, Filosofia do Direito e etc.

Um exemplo do uso da Filosofia no cotidiano são as discussões sobre as paralisações do mês de março deste ano. Instalou-se uma "crise"! Pararam os caminhoneiros reivindicando melhores condições de trabalho, melhorias no preço do combustível e etc. No dia quinze de março houve também um protesto espalhado pelo país cujos cartazes e faixas reclamavam contra a corrupção generalizada nas esferas pública e privada. Alguns pediam a saída da presidente recém-eleita.

Mas as faixas eram díspares, confusas e o movimento não teve o resultado esperado. A "crise" continua e o governo eleito tem pela frente a difícil tarefa de fazer um ajuste fiscal e combater a corrupção em meio a acusações contra os partidos no poder, contra membros do governo e contra membros também da oposição! Por isso é que a crise continua... e continuará devido também às medidas impopulares que este "ajuste" acarretará.

Mas a tal "crise" – da forma que está sendo alardeada pela grande mídia brasileira, por seu turno –, me parece um exagero porque a corrupção é algo que faz parte do jogo das grandes empresas e de suas relações com os governos, não há nada de novo nisso! Mesmo na Grécia antiga, por exemplo, o grande administrador Péricles foi acusado – durante seu Governo em Atenas – de peculato, mas mesmo assim ele foi reeleito! A corrupção vem desde o mundo Antigo e os grandes meios de comunicação do Brasil – de forma positivista (porque qualquer telejornal apresenta os 'fatos' como ímpares, sem passado nem futuro) –, como se cada fato dependesse de si mesmo como a uma mônada e fosse atemporal. E a aparente "desconexão" entre as notícias publicadas permite uma interpretação isolada dos acontecimentos que é a forma como a maioria das pessoas vê o que a grande mídia constrói para explorar, visando também o lucro.


É claro que ninguém duvida que a corrupção seja algo nocivo para o coletivo e que deva ser combatida, mas da forma como é construído o discurso na mídia em geral a coisa toda se transforma em algo "espetacular" e esse "combate à corrupção" mais parece uma panaceia. E, como tal, impossível; panaceia que, na prática, tem o efeito de acalmar os ânimos em geral, por algum tempo... o que é outro jogo falacioso porque ao acalmar ânimos, dispersa-se qualquer descontentamento.

A crise existe, claro, mas é de fundo econômico que reflete na política (esfera das decisões humanas que fazem a economia) no círculo do poder. O governo Dilma deu muito "azar"! Primeiro certo despreparo em relação aos efeitos das crises externas; depois a crise hídrica nas hidroelétricas que anulou a "benesse" da diminuição da conta de energia elétrica. Além disso, a corrupção na Petrobrás (que não iniciou neste governo, mas é, ao que se conhece, uma 'tradição' de vários governos) e seus reflexos diretos sobre a figura da presidente. Também o governo Dilma paga agora a conta das "benesses" e malabarismos fiscais do governo de Luis Inácio Lula da Silva, como a redução do IPI e outros. Medidas que agradaram às classes populares porque lhes permitiu comprar mais, mas que agora retrai a economia por causa do "calote" de muitos compradores que não podem pagar suas dívidas.

Por outro lado, as classes sociais mais abastadas (pelo que se viu nas faixas e cartazes de quinze de março) também reclamam das políticas públicas do Governo do Partido dos Trabalhadores, especialmente o "Bolsa Família". Muitos que criticam estas políticas públicas pensam até que elas são de cunho "marxista" ou socialista ou até comunista, mas não são. Uma leitura filosófica pode nos elucidar que elas são de cunho bem liberal e se enquadram dentro de um sistema filosófico que se conhece pelo nome de Positivismo. Mas o que é Positivismo? O que tem que ver com o cotidiano?

Todos os brasileiros já se depararam com a frase mais marcante de tal filosofia: "Ordem e Progresso". Esse é o lema do Positivismo, doutrina fruto do século XIX e que os militares que proclamaram a república em 1889 abraçaram com ardor e como sinônimo de avanço. Os autores do modelo definitivo de nossa bandeira apenas subtraíram a palavra "amor". Eis o lema completo: "o amor por princípio, a ordem por meio e o progresso por fim". Há uma condição sine qua non aqui. Caso não haja ordem não haverá progresso! Mas pergunte-se: que ordem? De quem? Pergunte-se também: progresso para quem? Para quê? Que tipo de progresso?


Augusto Comte
O Positivismo criado pelo filósofo francês Augusto Comte (1798-1857), crê ilimitadamente no poder da ciência e afirma que todo conhecimento que não utiliza o método científico para chegar à verdade, é crendice. Assim, não merecem título de conhecimento os saberes populares ("chazinhos" medicinais, lendas) nem o conhecimento religioso que não deve ser chamado de conhecimento, visto que não parte da razão, mas da fé.

Estruturalmente o positivismo compara a sociedade a um organismo vivo. Isto é, como no corpo humano os órgãos têm uma função específica e – do bom funcionamento de todos depende a harmonia do sistema –, da mesma forma na sociedade a ordem em todos os setores mantém a coesão da mesma. Assim é possível comparar o distúrbio estomacal de alguém que bebeu demais a um setor da sociedade que está em greve, por exemplo. Tal qual o mau funcionamento dos órgãos no corpo humano causa um tremendo mal-estar geral, a greve dos transportes coletivos, dos lixeiros, dos hospitais causa mal-estar social. O "remédio", nesse caso, é um governo forte. Caso o "órgão social" não melhore, resta ser tratado ou até extirpado.

Socialmente, o Estado Positivista acentua a diferenciação entre os estamentos (grupos). Acredita-se assim que há, necessariamente, um grupo de pessoas que "nasce" para mandar (exercer o poder) e outro que "nasce" para obedecer, e esse é formado pela maioria do povo que, não sendo "capaz" – como seus líderes ou patrões –, nem "inteligentes", não deve discutir as decisões destes. Consequência direta disso é a submissão, a riqueza nas mãos de poucos e a pobreza nas mãos de muitos. – Lula só se elegeu quando fez acordos com o Partido Liberal e com empresários. Associou-se assim o projeto político do PT (diferente daquele de sua fundação) com os interesses das classes dirigentes do país, os grandes empresários e setores empresariais. Atitude também positivista uma vez que para ganhar confiança não só das classes que se dizia representar (os trabalhadores), também queria a simpatia das outras classes para estabelecer um governo da "harmonia"!



No Positivismo em geral é preciso que se formem grupos sociais estanques como militares, cientistas, políticos, catadores de lixo, professores e outros. Como se entende que cada grupo é importante para a sociedade assim como os órgãos para o corpo, cria-se uma moral que diz, grosso modo, que: "o estômago nunca chegará a cérebro". Sendo assim dificulta-se a mobilidade social, uma vez que os positivistas entendem que todos os grupos sociais são necessários. É claro que o trabalho dos lixeiros é importantíssimo, mas alardear que seus filhos devem ser sempre lixeiros, que não devem estudar e daí que o governo não tem obrigação de construir escolas para atendê-los é algo não só antidemocrático como imoral e esse era o pensamento de muitos positivistas no século XIX e ainda é no século XXI no Brasil.

Um caso para análise, o Programa "Bolsa Família", por exemplo. Este permite a uma pessoa pobre sair da pobreza? Não! Talvez, como alardeiam os defensores desta política pública, tenha diminuído a miséria de várias famílias brasileiras, mas não as fará sair da pobreza. Ao se tomar a filosofia positivista para analisar este programa, percebe-se que ele se enquadra nesta filosofia porque permite (ainda que longe do desejado pela economia) fazer girar a "roda do consumo". Quando alguém recebe este dinheiro e o utiliza para comprar mercadorias, faz girar a roda do sistema econômico capitalista. Essas compras trazem aumento da produção industrial, comercial, arrecadação de impostos para o governo e (conforme a ideia original) lucro para os capitalistas alojados e em conluio com o modelo de Estado burguês e conservador que é o Brasil atualmente. Nada tem de socialista e muito menos de comunista este programa. Na prática ele é positivista! O mesmo ocorre com programas estudantis. Eles (contrariamente ao pensamento de imobilidade social original do Positivismo, mas não sem escapar totalmente deste projeto) permitem que pessoas sem formação cheguem à universidade e se formem, mas isso também tem seu mérito capitalista, pois alguém que seja um engenheiro, médico, professor é importante na medida em que seja capaz de desempenhar um papel social e proporcionar o "progresso" dentro da sociedade. Além disso, é daí que sai a filosofia da meritocracia moderna. Ela é um tipo de filosofia que exalta a hierarquia e a legitima e, com isso, embasa todo o sistema burocrático dos governos contemporâneos. O que seria do exército se não houvesse a hierarquia? Como se manteria o poder dos superiores militares? O que seria do poder governamental sem a obediência civil?

Diminuto grupo de pessoas pede "intervenção militar"
no Brasil.
Local: Cidade de Pelotas - RS
Créditos da foto: Professor Eliézer Oliveira.
Outro caso para análise são as formas de protesto que se tem visto no mês de março de 2015. Estranhamente também são positivistas! É o caso do movimento dos caminhoneiros que, ao paralisar as rodovias, podem ser comparados dentro do positivismo a um "órgão que está com problemas" dentro do corpo humano, vamos compará-los ao fígado. Caso o fígado diminua as suas funções, todo o organismo sofre. Surge a esteatose, por exemplo. Depois as toxinas vão se acumulando por toda parte. O que faz o cérebro? Ele ordena que certas enzimas limpem tudo o que está causando mal. E foi isso que o governo federal fez ao atender algumas reivindicações dos caminhoneiros (embora não tenha acatado todas) para que o órgão com "defeito" dentro da estrutura social voltasse a funcionar harmonicamente. Com as estradas liberadas, tudo voltou à "normalidade", inclusive os ânimos de boa parte daqueles que protestavam. Tanto é assim que no dia quinze de março de 2015 não se viu qualquer estrada bloqueada, pois os interesses dos caminhoneiros já haviam sido atendidos, embora muitas das faixas que se viam nos protestos destes profissionais também pedissem a saída da presidente. Fica clara uma fragmentação entre os estamentos dos caminhoneiros e do restante da população, criou-se, devido a esta fragmentação, uma espécie de discurso da "raiva" pelas pessoas em geral em relação ao movimento dos transportadores de cargas!

Dentro de uma "filosofia marxista" ou de alguma forma de organização com base nas ideias socialistas, as coisas não se dariam assim. Todos os "estamentos" sociais se uniriam para formar uma "consciência de classe". Caminhoneiros se uniriam aos professores (de forma sólida e contínua e não acidental como houve no estado do Paraná) que também protestam, que se uniriam aos trabalhadores da segurança pública que também protestam, e estes se uniriam a outros trabalhadores em geral. Mas o que acontece não é isso, o que acontece é exatamente o que menciona o Positivismo, a desunião de classes e a formação de estamentos, grupos com interesses isolados. Permanece, assim, a visão individualista – travestida nos protestos – de visão coletivista. Aqueles que protestam (da forma como protestam) não chegam jamais a aprofundar a busca pela verdade e pela origem dos problemas sociais (papel que os filósofos sempre atribuíram à Filosofia desde o mundo Antigo). As pessoas que saem às ruas com faixas e cartazes ficam no superficial, no senso-comum. Não filosofam, não discutem ou debatem as ideias. São uma massa amorfa porque não tem "consciência" do que querem realmente! Qual é a causa que advogam, afinal? Combater a corrupção! Sim, mas importa dizer como, e isso elas não sabem! – Longe estamos do maio de 1968!

Outra ironia dos protestos (embora sejam casos isolados) são os pedidos pela volta do regime Militar. É uma contradição performativa isso, pois é pedir para acabar com o regime (democrático) que lhes permite protestar livremente já que uma ditadura é um estado de exceção! Daí decorre outra contradição, a ideia de que se deve "fechar" o Congresso defendendo que este é a fonte da corrupção! Esse comportamento é bastante positivista e, como tal, superficial, pois equivaleria a enviar enzimas e anticorpos contra o órgão com problemas e não contra o que está acarretando o mal-estar no corpo. O correto, em se tratando do fígado de nosso exemplo, seria mudar a alimentação! (No caso do Congresso, mudar os políticos!)


Por fim, este texto, como todo texto, é um ponto de vista, um discurso, porém por onde ando nas ruas ou nas salas de aula ouço um ou outro afirmar que se deve "fechar" o Congresso, "que era melhor na época da ditadura militar" sem perceber que a causa de muitos de nossos problemas é de fundo econômico, da falta de um projeto social mais amplo e até cultural e, por isso, não tenha dúvidas ao ouvir tais palavras: "eis mais um positivista, provavelmente, sem o saber...!"

HERMENÊUTICA DA MORTE



Gerson N. Lemos Schulz
Filósofo



O cenário de um velório me gerou esta reflexão sobre a morte. Ali, observando os túmulos (alguns abandonados outros imponentes) no cemitério, imóveis, cercados por flores murchas, secas, mortas... o choro, a tristeza da perda, o cheiro fúnebre das velas me penetrando as narinas... pensei no lugar que a morte ocupa no cotidiano e o espaço que damos a ela. Muitos a temem, mas ninguém pode afirmar absolutamente o que ela é. Para a ciência trata-se do fim das atividades de um organismo vivo. O fim das atividades cerebrais, já que o cérebro é responsável pelo comando das ações do organismo.

Mas ao contrário do que se pensa, não vejo a morte como experiência teológica. A vejo como experiência estética. Empiricamente, ninguém provou ainda que o homem possua uma alma imortal que sobreviva, e ainda mantendo sua identidade (pensamentos, lembranças, etc.). Muito menos determinou que haja um "lugar" para esta alma após a morte. Isso é, ainda, teologia. A estética é a parte da Filosofia que estuda os conceitos de beleza, belo, puro e seus contrários e se fundamenta num sentimento resultante de um conjunto de sensações internas ou orgânicas caracterizadas pelo bem ou mal-estar, tratando-se de um fundamento cenestésico. Você pode perguntar-me: "mas o que tem de belo no ato de morrer?" Respondo: depende do ponto de vista. E, ademais, não pode haver a "estética do feio"? Quando alguém afirma que algo é "feio" é porque tem algum juízo estético, o que nos permite pensar que o feio é também estético, porém, apenas, não se encaixa nos parâmetros estéticos de quem classifica algo como feio. E quanto ao "depende do ponto de vista" em considerar-se a morte passível de alguma beleza, é possível dizer que ela é bela no sentido do uso que a ela é possível dar. Por exemplo, o herói que morre para salvar outrem, sua morte (em si é 'feia'), mas no uso é "bela" quando alguém diz que o ato foi de um altruísta, heroico, exemplar! Assim, em termos filosóficos, me parece que a morte é uma experiência do corpo tal como a dor ou o prazer; e é a última, por sinal. De fato, morte é dor e é aí que ela se torna também estética.


Quando alguém morre num acidente automobilístico, nos milésimos de segundo finais de consciência, a dor do impacto se faz presente e é possível sentir a morte. O excesso de dor faz nosso cérebro "desligar" momentaneamente caso outros órgãos viscerais não tenham sido atingidos, ou para sempre, caso o corpo tenha sido irremediavelmente destruído. É o fim do eu.

Buda afirmou que tudo é dor. Mas talvez nem tudo. A vida também é prazer, e dor e prazer se relacionam com beleza e feiura, portanto: estética. E não é por acaso que castigo infrinja dor (é caminho para a morte), e recompensa incentive prazer, lembre uma "vida boa", uma vida bela. Igualmente, não se deve confundir prazer sempre com sexo. Ler, escrever, falar, comer, trabalhar, pensar e até rezar podem ser prazer para uns e outros.


Os conteúdos da vida são experiências estéticas: nascer, aprender, sentir dor ou alegria, saudade, raiva, tristeza, chorar, morrer. Nessa perspectiva, a morte não é passagem, qualquer ponte para outro lugar, nenhuma entrada para outro mundo. Ela faz parte da vida, é um ato concreto e também a última experiência do corpo.


Enfim, a morte é apenas a completude de um caminho iniciado na fecundação, sendo o fim de uma linha e não de um círculo em que se chega ao mesmo lugar de partida. A morte também é a experiência mais cruel, mais aterradora. Aquela que causa a dor permanente pela perda de alguém que jamais voltará. Quem fica é obrigado a viver "a" e "na" ausência do outro, além de ver prenunciado seu próprio fim. 

De outro ponto de vista, essa ideia pode levar à reflexão (a uma pedagogia da morte). Ajudar a pensar sobre o sentido do 'que se está fazendo', do 'que se vive' e transtornar a ótica da vida tal qual a cultura nos ensina, a dar uma segunda chance aos outros e a si mesmo sem que seja por causa do medo com que as religiões ameaçam àqueles que não perdoam. E por que não - quem sabe - fazer nascer uma nova ética. A ética daqueles que sabem viver e conviver sob a perspectiva da morte, nosso maior tabu.

segunda-feira, 9 de março de 2015

ANÁLISE FILOSÓFICA DO FILME: "TROPA DE ELITE 2"



Gerson Nei Lemos Schulz
Professor de Filosofia
na Rede Pública Federal do Brasil

"Este artigo contem spoilers"



Ator Wagner Moura
(Tenente-coronel Nascimento)
Zazem Produções e Globo Filmes, 2010.
"Tropa de Elite 2", produção brasileira de 2010 da "Zazem Produções" e da "Globo Filmes", dirigido por José Padilha, com Wagner Moura (Tenente-coronel Nascimento), André Ramiro (Capitão Matias), Milhem Cortaz (Tenente-coronel Fábio), Irandhir Santos (Deputado Fraga), Seu Jorge (presidiário Beirada), Sandro Rocha (o miliciano Major Rocha), André Mattos (Deputado Fortunato) e Tainá Müller (repórter Clara) além de outros personagens, é um filme que mostra as atividades de um tipo de braço armado (ou paramilitar) conhecida nos morros cariocas como "milícias".


O filme argumenta que a origem de parte da violência é a corrupção instalada não só no dia a dia das pessoas, mas nas esferas do Estado onde a força policial é dividida entre os policiais honestos e os corruptos – estes últimos a serviço ou associados da classe política corrupta – tanto no Executivo quanto no Legislativo. O filme de Padilha mostra a cultura da promiscuidade político-partidária quando aponta que vários são os políticos que se beneficiam do dinheiro das drogas e oriundo de outros serviços controlados pela milícia na periferia carioca como a venda de sinais de internet e TV a cabo piratas, distribuição de gás, água e outras mercadorias dentro das favelas com ágio ou impostos – inexistentes legalmente – que financiam as atividades da milícia. Também são cobradas (como faz há anos a Máfia italiana) mensalidades por "proteção" aos comerciantes.


A "milícia" é formada basicamente por policiais da ativa que, descontentes com seus salários e com as condições de trabalho (armas defasadas, viaturas decadentes e sobrecarga de trabalho), usam seu poder de "braço armado" do Estado (porque são agentes legalmente autorizados a usar sua arma e tem o poder de polícia) para praticar crimes contra o cidadão.



O ator Sandro Rocha
(Major Rocha), miliciano.
Porém, essa "milícia" mostrada no filme de Padilha tem um "modus operandi" bem diferente das quadrilhas clássicas de traficantes mostradas no primeiro filme. A "milícia" – como se comenta no "Programa Alerj Debate", exibido em 12/4/12 com a participação do Deputado carioca Marcelo Freixo, o ator Wagner Moura e o cineasta José Padilha: "em dez anos, conseguiu algo que os traficantes não conseguiram, conquistar o poder político. A milícia hoje financia políticos a cargos de vereadores e deputados estaduais ou federais."


"Tropa" mostra mais, explicita o círculo vicioso da relação entre a miséria, a esperteza (onde desde o pobre que quer assistir TV a cabo por um preço muito mais baixo, ao policial que quer ganhar dinheiro por fora, ao político que quer se perpetuar no poder ou ascender de cargo) e a dinâmica da prática da conivência de uns grupos com os outros por interesses comuns. Essa é a lógica onde todos querem sair na vantagem, perdendo-se, assim, os valores da ética tradicional. A violência e a política se unem onde a violência (não só simbólica, mas física mesmo) é praticada cotidianamente e vai se banalizando.


A política e os políticos fracassam (ou é proposital?) quando agentes do Estado não se responsabilizam pela execução eficiente das políticas públicas cujo dinheiro do Governo Federal na maioria das vezes é enviado, porém, em parte é desviado pelos caminhos da burocracia no pagamento de propinas ou nos superfaturamentos em estados ou prefeituras.



Outra perspectiva mostrada no filme aponta que a "grande corrupção" nasce da "pequena corrupção", pois quando alguém que mora na favela compra o sinal de internet ou da TV a cabo pirata e paga pelo "serviço" aos milicianos que o vendem está financiando diretamente a compra de armas necessária para os criminosos para exercer suas atividades que são, na própria dinâmica dessas organizações, violentas e que acarretam a eliminação de pessoas que são contra essas atividades ou nas trocas de tiros com as forças armadas oficiais. O resultado são assassinatos, sequestros, estupros, exploração de toda ordem das pessoas com menor poder aquisitivo, porém são essas mesmas pessoas exploradas que mantêm o sistema do crime na mesma lógica do consumidor de drogas que, ao comprar do traficante, sustenta o tráfico.


A "grande corrupção" se alimenta da "pequena corrupção" e vice-versa quando o Estado paga mal seus policiais, quando alguns cidadãos compactuam (por 'n' motivos) com o tráfico ou com a milícia e obstruem a justiça ao hostilizar policiais ainda sérios que querem investigar tais crimes praticados pelos milicianos. Nas favelas cariocas – mostra o filme – o crime compensa, sim. O crime alimenta o tráfico de armas, a violência, as mortes de inocentes. Há lá uma justiça paralela que julga, cria penas (inclusive a de morte) e as executa a margem da Lei oficial e, por enquanto, livremente com a pouca eficácia das Unidades de Polícia Pacificadora – UPPs, que não conseguiram acabar com o tráfico ou atividades de milicianos.


Assim como no primeiro filme também não é esquecida a "pequena corrupção" praticada, como dito acima, pelo cidadão consumidor de drogas que financia o tráfico e nem o tema do tráfico de armas, movimento que se inicia nas fronteiras do Brasil com países como Paraguay, Bolívia, Peru, Colômbia e Venezuela.

O Cantor "Seu Jorge" (Beirada) e
Irandhir Santos (Deputado Fraga)

Padilha mostra também os resultados da corrupção praticada pelo cidadão eleitor que vende seu voto para pessoas que sabe que são criminosas. Mas o filme não aponta apenas (maniqueisticamente) o bom e o mau. Mostra também o oportunismo de arautos que usam causas sociais em benefício político próprio (como a causa dos "direitos humanos") defendida pelo personagem "Fraga" que se elege deputado em nome dessa causa apesar de – no exercício do mandato – ter tido papel importante no combate à corrupção, mas que apesar disso, consegue uma cadeira (na ficção) na Câmara Federal dos Deputados.


André Mattos (Deputado Fortunato),
chefe das milícias cariocas.
Ao término do filme há aquela sensação de impotência frente a uma realidade distorcida pela corrupção. E essa corrupção é cotidiana, ocorre nas menores coisas como na venda de votos (será que quem vende seu voto se pergunta de onde vem o dinheiro do pagamento?). – Pode ser o dinheiro que compraria a merenda para escola de seu filho; do curativo do posto de saúde da comunidade ou não?


Para concluir, várias são as perguntas que se pode induzir nas entrelinhas dos diálogos do filme como: "Por que os corruptos são eleitos?" "Por que as pessoas toleram a corrupção no Brasil?" "Quais são as causas mais diretas da corrupção?" "Essa estrutura de poder que se instaurou – e que perpassa toda a sociedade brasileira – deve ser mantida, é a mais saudável?" A corrupção não é um mau brasileiro, apenas; é mundial e existe há séculos, porém aqui parece ser sábia a definição de Thomas Hobbes quando ele diz, na obra "Leviatã" que: "o homem é o lobo do homem". Ao aplicar essa máxima à forma como a realidade é mostrada no filme "Tropa de Elite", pode-se facilmente perceber que, em uma sociedade em que todos querem se "dar bem" a qualquer custo, não levará muito tempo para que todos estejam contra todos!


Com "Tropa 2" é difícil sair do cinema sem a crença de que o que está expresso na letra do "Rap das Armas", de "Cidinho" e "Doca", seja verdadeiro, por enquanto...!
Parapapapapapapapapa
Paparapaparapapara clack bum
Parapapapapapapapapa
Morro do Dendê é ruim de invadir
Nois, com os Alemão, vamo se divertir
Porque no Dendê eu vô dizer como é que é
Lá não tem mole nem pra DRE
Pra subir aqui no morro até a BOPE treme
Não tem mole pro exército, civil nem pra PM
Eu dou o maior conceito para os amigos meus
Mas Morro Do Dendê também é terra de Deus
Fé em Deus, DJ
Vamo lá
[...] Vem um de AR-15 e outro de 12 na mão
Vem mais dois de pistola e outro com 2-oitão
Um vai de URU na frente, escoltando o camburão
Tem mais dois na retaguarda, mas tão de Glock na mão
Amigos que eu não esqueço, nem deixo pra depois
Lá vem dois irmãozinhos de 762
Dando tiro pro alto só pra fazer teste
De INA-Ingratek, Pisto-UZI ou de Winchester
É que eles são bandido ruim, e ninguém trabalha
De AK-47 e na outra mão a metralha
Esse rap é maneiro, eu digo pra vocês
Quem é aqueles cara de M-16
A vizinhança dessa massa já diz que não aguenta
Nas entradas da favela já tem .50
E se tu toma um pá, será que você grita
Seja de .50 ou então de .30
Mas se for Alemão eu não deixo pra amanhã
Acabo com o safado dou-lhe um tiro de Pazã
Porque esses Alemão são tudo safado
Vem de garrucha velha dá dois tiro e sai voado
E se não for de revolver eu quebro na porrada
E finalizo o rap detonando de granada
Parapapapapapapapapa, valeu
Paparapaparapapara clack bum [...]

REFERÊNCIAS

ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – ALERJ. ALERJ DEBATE. Com: Marcelo Freixo, o ator Wagner Moura e o cineasta José Padilha. ALERJ: Rio de Janeiro, 12/4/12. Disponível em:< https://www.youtube.com/watch?v=YEyyiwmqJw8>. Acessado em: 09/03/2015, 5:00:00.

MC Júnior; MC Leonardo. Rap das Armas. Formato(s) Airplay. Gênero Funk Carioca. Rio de Janeiro: Columbia (gravadora), 1995.

HOBBES, Thomas. Leviatã – ou Matéria, Forma e Poder De Uma República Eclesiástica e Civil. São Paulo: Martin Claret, 2001.


quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

ESCOLA "LIVRE" FRIEDRICH NIETZSCHE





GERSON NEI LEMOS SCHULZ

FILÓSOFO

PROFESSOR DA REDE PÚBLICA
FEDERAL DO BRASIL

Texto publicado originalmente em:

COLEÇÃO GUIAS DE FILOSOFIA:
NIETZSCHE. ESCALA: 
SÃO PAULO, 2011, p. 22-30. V. III.


Como seria uma escola baseada
no modelo didático-pedagógico da
filosofia de Friedrich Nietzsche?


A Escola



Imagine uma escola que não fosse nem privada e nem pertencesse ao Estado. Uma escola que não reproduzisse o conhecimento preocupada com o mercado de trabalho ou com as coisas práticas do mundo. Uma escola que se preocupasse em formar um modelo de homem, qual? Fazer desabrochar nas pessoas aquilo que elas são, trazer a tona suas propensões naturais (seus dons). Imagine uma escola em que se ensinasse grego e latim, se ensinasse a cultura aos moldes da Grécia pré-socrática. Um lugar em que se fomentasse nas crianças e adolescentes um espírito de criação do indivíduo no sentido de buscar aquilo que cada um tem dentro de si enquanto ser humano tendo, para isso, acesso às bases originais da cultura Ocidental para, a partir delas, perguntar-se: "Como cheguei a ser o que sou?" "Por que estou neste mundo?" "Qual papel me cabe na sociedade em que vivo?" "Qual minha responsabilidade frente ao meu país?"

Uma escola em que não se valorize o individualismo meramente consumista de hoje em dia do ser igual ao ter (como diz Fromm em Ter ou Ser?), mas onde os jovens fossem levados a se perceber enquanto seres que são responsáveis pela construção do mundo a sua volta a partir da análise e da percepção das contradições da cultura (Bildung) na qual estão imersos desde que nasceram. Em que as frases motivadoras às crianças de jovens fossem: "Não há nenhum Deus para salvar você". "Deixar os outros pensarem por você é covardia". "O único responsável por você é você mesmo". "Inevitavelmente você morrerá, mas e aí... o que fará com a vida enquanto a tem?" Assim, provavelmente, seria a escola fundada por Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900).


O Professor


Janz (1987, p. 199) nos diz que por meio dos relatos de alguns ex-alunos Nietzsche costumava dar aulas ouvindo atentamente cada um de seus alunos. Ele também relata que Nietzsche não era um professor que impunha suas idéias aos alunos, mas procurava fazer nascer neles o interesse pelo assunto tratado, desenvolver o respeito pelas grandes figuras do passado, pelos grandes problemas da existência humana e pela seriedade no pensar.


Neukamp (2008, p. 48 et seq.) descreve o professor Nietzsche, citando relatos de Ludwig W. Kelterborn onde afirma que os alunos, de forma geral, "achavam o jovem professor amável e educado em todas as ocasiões, alguém que quando lançava uma pergunta aos alunos fazia questão que estes respondessem de acordo com aquilo que pensavam e jamais com informações memorizadas em livros". Quer dizer, por aí se tem uma pista do que Nietzsche pensava que deveria ser o papel do professor, valorizar a autonomia dos alunos, que não deve ser confundida com liberdade, pois o mesmo Neukamp (Idid, p. 50) alerta que ele exigia disciplina, e no programa que propôs às autoridades prussianas no século XIX estavam entre as leituras obrigatórias 1) A obra de Homero; 2) Três obras dos poetas trágicos; 3) Fragmentos escolhidos de Platão; 4) Tucídides; 5) Heródoto e Xenofonte; 6) Discurso de Lísias ou Demóstenes. Isso sugere o currículo das aulas de Filosofia, ao menos proposto por Nietzsche.


Cada Estudante deve Eleger seu Modelo de Homem


Nietzsche exigia do filósofo coerência entre vida e obras, e para ele os jovens deveriam escolher um mestre para servir de inspiração pessoal na vida dentre os vultos da história. Nessa época um exemplo de gênio – para Nietzsche – era Arthur Schopenhauer (1788-1860). De acordo com Danelon (2003), Nietzsche via em Schopenhauer o modelo de homem e de gênio porque foi o único a renegar o Ocidente com seu pessimismo em O Mundo como Vontade e Representação de 1819, servindo de exemplo para toda a humanidade que deveria elevar-se acima da cultura Ocidental (para Nietzsche contaminada pelo utilitarismo capitalista que transformava tudo em dinheiro – como queria o Positivismo de Comte, 1798/1857).


Schopenhauer
Por isso Nietzsche se encanta com Schopenhauer quando toma em mãos sua obra que despertou nele uma profunda admiração pelas idéias contrárias aos modismos culturais da época que Nietzsche chamava de "cultura filistéia". A cultura filistéia, citada por Marton (1983), foi descrita por Nietzsche numa carta a Carl von Gesdorff na noite de 11 de abril de 1869, onde, em síntese, ele diz que está indo trabalhar na "instituição universitária", descrita por ele como um ambiente pesado, cheio de obrigações e onde é vendido o conhecimento, o que o transformará – conclui entristecido – num 'filisteu da cultura', isto é, num homem especializado. Para Scarlet Marton os filisteus da cultura são:

[...] aqueles que, estritos cumpridores das leis e dedicados executores dos deveres, execravam a liberdade gozada pelos estudantes. O 'filisteu' era uma personagem de bom senso, inculta em questões de arte e crédula na ordem natural das coisas. Usava o mesmo raciocínio para abordar as riquezas mundanas e as riquezas culturais [...] Os filisteus da cultura além de não serem cultos, têm a ilusão de sê-lo. Incapazes de criar, limitam-se a imitar ou consumir. Fizeram da cultura algo venal, puseram-na à venda, submeteram-na às leis que regem as relações comerciais 'quem e quantos consomem' é a questão fundamental a ser respondida. (MARTON, 1983, p.32)

É por isso que no livro Ecce Homo Nietzsche declara que a sua tarefa enquanto filósofo é educar e derrubar ídolos: "Eu não construo novos ídolos, os velhos que aprendam o que significa ter pés de barro. Derrubar ídolos (minha palavra para 'ideais') – isto sim é meu ofício." (NIETZSCHE, 1995, § 2). Era isso também que ele desejava de seus alunos.


A Transvaloração da Cultura por meio da Educação


As idéias apresentadas em Sobre o Futuro de Nossos Estabelecimentos de Ensino (Sobre el Porvenir de Nuestras Escolas, 2000; que se trata de uma palestra onde Nietzsche narra uma longa conversa com um amigo, um filósofo e um acompanhante de 1872) é a metade do caminho para se compreender o Nietzsche filósofo e professor. Ali ele aprofunda o que entende por cultura e educação e o que entende por pensamento crítico.

Sua primeira idéia é que a o homem novo (Übermensch) é aquele que é capaz de violar de qualquer forma as crenças que se tornaram a tradição. A respeito da violação das crenças, diz Nietzsche:

– Essa 'malignidade' é reencontrada em todo professor do novo, em todo pregador de novas coisas, a mesma ‘malignidade’ que desacredita o conquistador, ainda que se manifeste mais sutilmente e não mobilize imediatamente o músculo – o que faz, por outro lado, que desacredite com menos força! O novo, de qualquer forma, é o mal, pois é o que quer conquistar, derrubar os limites, destruir as antigas crenças; só o velho é o bem! Os homens de bem de todos os tempos são aqueles que plantam profundamente velhas idéias a fim de fazê-las frutificar, esses são os cultivadores do espírito. Mas todo terreno acaba por se esgotar, é preciso que o arado do mal o revolva. (NIETZSCHE, 1976, p. 41)

Quem é o professor do novo? Para ele é o filósofo, mas não no sentido absoluto. Nietzsche quis dizer que todos os profissionais deveriam pensar como filósofos até se tornarem um, pois, de acordo com a teoria do gênio de Nietzsche, este não é predestinado a nascer filósofo. Portanto, a transformação da cultura deve começar por quem lida com ela, por professores e alunos. O estudante deve sempre buscar além daquilo que o professor expõe em sala de aula. Somente assim ele poderá percorrer o caminho para se superar a si e ao próprio professor, escapando da mediocridade. No sentido nietzschiano, as atividades corriqueiras realizadas sem reflexão, a cultura do senso-comum, a linguagem jornalística que apenas narra o fato sem crítica própria, a "fofoca".

Nietzsche supõe possível criar um novo projeto de homem realizando uma crítica à modernidade cartesiana que separou natureza e homem em res cogitans e res extensa privilegiando o mecanicismo. Para Nietzsche foi essa idéia de separação mecânica operada no homem (privilegiando as idéias inatas, portanto o intelecto) que fez os indivíduos renegarem outras faculdades humanas como sentimentos e instintos.

Resgatar as faculdades instintivas e sentimentais sem negar a razão é o projeto de Nietzsche. Por isso ele propõe a transvaloração dos valores da lógica platônica/aristotélica, da moral cristã (moral das massas que se deixam guiar louca e cegamente por um líder, o messias, na esperança de ganhar o mundo do além) e o rompimento epistemológico com a ciência de sua época (que para ele era a 'gaia ciência'). Logo, ele afirma que o Universo e os fatos – como queria o Positivismo – não têm sentido e, por isso mesmo, estão condicionados ao seu tempo e aos olhos de quem os lê, e não à eternidade, não sendo verdades absolutas.

Nietzsche também propõe transvalorar a organização sócio-cultural e política de seu tempo, assim é possível afirmar que ele não concordava com o modo de produção industrial capitalista como afirma no aforismo 21 de A Gaia Ciência (1976). Nietzsche também não é a favor da democracia quando a considera uma decadência no sentido de que ela adula o Estado (Prussiano) que pensava em si e não na cultura. Também não era a favor do autoritarismo, visto que detestava as políticas de massa porque, para ele, elas diluem o indivíduo. Também não se fez simpático ao socialismo nem ao anarquismo, como se observa nos aforismos 34 e 473 das obras: Crepúsculo dos Ídolos (1999) e Humano, demasiado humano (2005), respectivamente.

Por fim, não se pode afirmar que ele fosse um liberal quando ressalta que

[...] a mais forte espécie de homem que houve até agora, as comunidades aristocráticas ao modo de Roma e Veneza, entendiam liberdade exatamente no sentido que eu entendo a palavra liberdade: como algo que se tem e não se tem, que se quer, e que se conquista [...]'.(NIETZSCHE, 1974, p. 349).

Assim se constata que Nietzsche apoiava um governo de aristocratas (o governo dos melhores), mas um governo formado por homens "geniais" (que se destacassem por sua inteligência) e não porque pertencessem à classe mais abastada. A dificuldade aí é saber quais seriam os critérios para se saber quem são os mais aptos!

Em relação à educação ele afirma:

[...] procede geralmente desta maneira: tentar determinar no indivíduo, com o engodo de inúmeras vantagens, maneira de pensar e agir que, tornada finalmente hábito, instinto, paixão, dominará nele e sobre ele, contra seus interesses supremos, mas em benefício de todos. Quantas vezes não observei que se o trabalho devotado, o zelo cego atribuem a riqueza, as honras fazem, por outro lado, com que os órgãos percam a sensibilidade que lhe permitiria fruir essa riqueza [...] Quantas vezes não constatei que esse remédio radical contra o aborrecimento e as paixões amolece os sentidos e torna o espírito rebelde a toda nova excitação (a mais laboriosa das épocas, a nossa, não sabe o que fazer de seu trabalho e de seu dinheiro, a não ser cada vez mais trabalho e mais dinheiro; [...] Adiante, deveremos ter 'netos'... A educação logra sucesso, qualquer virtude individual se torna utilidade pública e desvantagem privada tendo em vista o fim supremo do indivíduo; consegue apenas um enfraquecimento do espírito e dos sentidos [...],'Deves procurar teu proveito pessoal mesmo à custa dos demais', apregoam portanto com o mesmo fôlego, o 'tu deves' e o 'tu não deves'. (NIETZSCHE, 1976, p. 55-56)



A partir dessa citação, pode-se ter uma idéia do que Nietzsche pensa que deveria ser a educação. O oposto do que ele descreve. Isto é, uma forma de pensamento crítico (uma reflexão) sobre a cultura dada, ou seja, construída antes do indivíduo nascer e transmitida a ele pelas instituições civis ou religiosas. Inclui-se ai os maiores valores estabelecidos: "deus" e o "bem" que, para Nietzsche, foram construções humanas e não divinas. Logo, o modelo de educação apregoado pelo filósofo é humanista e deve permitir que o indivíduo libere seus instintos, suas habilidades, talentos (SCHULZ, 2007, p. 19).

Os fatos não devem ser ensinados ao aprendiz da forma como o Positivismo ensinava (tecnicista/mecânica/repetitiva), mas deve, isto sim, apresentar como e onde o indivíduo poderá utilizar aquele conhecimento adquirido em sua vida pública e privada.

Portanto, a educação, em última instância, deve ser estética, permitindo ao homem desenvolver a criatividade sobre o fato. Só assim poderá se revelar algum gênio e, então, para Nietzsche, o homem escapará do niilismo, do sem sentido e da mediocridade causados pela vida maquinal, automática que o modo de vida proposto pela Modernidade trouxe. Esta é sua idéia filosófica do dizer "não" para a cultura Ocidental.

[...] Em que medida, também entre nós, capacitar-se para ganhar dinheiro não se converteu em sinônimo de adquirir cultura? Em que medida o ensino profissionalizante e a especialização dos cursos superiores não se fazem em detrimento da formação humanística? Em que medida a massificação e o utilitarismo não se impõem à custa do aprimoramento individual? A estas questões nenhum educador pode furtar-se. Nietzsche combate, com veemência, a difusão inescrupulosa dos ditos bens culturais e os interesses imediatos que ela visa satisfazer. Longe, porém, de defender a cultura formal, que se limita a acumular dados e informações, opõe a erudição à vida, mas não nos deixemos enganar. Isso não revela traço algum de antiacademicismo, e sim a existência de um projeto: fazer dos estabelecimentos de ensino o lugar apropriado para a reflexão, o espírito crítico e a atividade criadora. É preciso, pois, devolver aos estabelecimentos de ensino a vocação que lhes é própria: 'fazer do homem um homem'. (DIAS, Sd., Prefácio)


Nietzsche assinala o equívoco em se pensar que cultura é trabalho árduo, apenas. Para ele a cultura é o aprendizado não utilitarista de tudo o que o ser humano realizou na história sem desvincular-se da vida real. A cultura não é uma erudição, mas um cabedal de conhecimentos vivos que deve ser ensinada de forma tal que os indivíduos possam criar coisas novas sobre as que aprendem. Nietzsche considera a produção da cultura industrializada moda meramente intelectualista, uma farsa. Assim, é tomando esse pressuposto que se pode explorar a possibilidade de construir hoje uma pedagogia crítica do dizer "não" aos modismos, aos intelectualismos, aos capitalistas da cultura e até mesmo às ideologias do Estado que defendem a idéia de que a educação é um serviço, portanto, uma mercadoria.

A partir daí pode-se pensar a idéia de que o verdadeiro estudante, tal qual o verdadeiro mestre, também pode ser autêntico dentro de sua escola sendo um crítico da própria cultura e auxiliando a podá-la de seus desvios utilitaristas patrocinados pelas classes econômicas dirigentes (aristocracia burguesa) que têm interesse em manter essa lógica de utilidade sobre tudo o que é produzido para transformá-la em mercadoria e gerar lucro.

Para Nietzsche o niilismo ante a vida levou boa parcela da humanidade a crer que a história acabou e nada mais pode ser mudado. A idéia de massificação ganha espaço e surge o conceito do padrão (todos devem ser iguais). Mas com isso aparece um "mal-estar" dentro do núcleo da civilização porque as coisas perdem o sentido (niilismo). Não há mais o que inventar, o que fazer. A vida fica autômata (SCHULZ, 2003, p. 137).


E como Nietzsche entende a cultura de seu tempo?

As águas da religião refluem e deixam para trás pântanos ou poças; as nações se separam outra vez com a maior das hostilidades e querem esquartejar-se. As ciências, praticadas sem nenhuma medida e no mais cego laissez faire, estilhaçam-se e dissolvem toda crença firme; as classes cultas e os Estados civilizados são varridos por uma economia monetária grandiosamente desdenhosa. Nunca o mundo foi mais mundo, nunca foi mais pobre em amor e bondade. As classes eruditas não são mais faróis ou asilos, em meio a toda essa intranqüilidade da mundanização; elas mesmas se tornam dia a dia mais intranqüilas, desprovidas de pensamento e de amor. Tudo está a serviço da barbárie que vem vindo, inclusive arte e a ciência de agora. O homem culto degenerou no pior inimigo da cultura, pois quer negar com mentiras a doença geral e é um empecilho para os médicos. (NIETZSCHE, 1974, trechos dos aforismos 4 e 6. p. 81-4)

É por isso que, para ele, a educação deve criticar permanentemente a cultura para que ela não se desvie de seu real papel, formar (Paidéia) o homem novo.


Conclusão


Por fim, diante da crise que Nietzsche percebe que existe na cultura ele concebe a idéia de que o filósofo não deve apenas ser professor, dever ser o "médico da civilização" (em "O livro do Filósofo, Sd). Para Nietzsche é o filósofo que tem o papel preponderante de alertar as demais categorias profissionais (eruditos, médicos, cientistas) para os perigos da extirpação do conhecimento e sua fragmentação em especializações. Para o filósofo alemão não é especializando o homem aos "pedaços" (fragmentos) que ele saberá o todo, como se o todo fosse desprovido de sua própria totalidade, mas unindo o homem com seus vínculos fortes (instinto e paixão) que ele poderá tornar-se filósofo e ter o verdadeiro amor à sabedoria. Transformando conhecimento em sabedoria, só assim se poderá criar uma "nova cultura" que seja a realização plena do indivíduo enquanto Homem.

Referências

DANELON, Márcio. Nietzsche Educador: Uma Leitura de "Schopenhauer como Educador". Unimep. http://www.marabrum.hpg.ig.com.br/artigo15.html, acessado em 15/05/2011.

DIAS, Rosa Maria. Nietzsche Educador. São Paulo: Editora Scipione, S.d.

FROMM, ERICH. Ter ou Ser? São Paulo: Editora LTC, 1987.

JANZ, Kurt Paul. Friedrich Nietzsche: Los diez años de Basileia. (1869-1879). Madrid: Alianca Editorial, 1987.

MARTON, Scarlet. Nietzsche. São Paulo: Brasiliense, 1983.

NEUKAMP, Elenilton. Nietzsche o professor. São Leopoldo: Editora Oikos, 2008.

NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. São Paulo: Hemus, 1976.

______. Humano, demasiado humano. São Paulo: Cia de Bolso, 2005.

_____. Sobre el Porvenir de Nuestras Escolas. Barcelona: Tusquets, 2000.

______. Crepúsculo dos Ídolos. 4. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999.
(Os pensadores)

______. Considerações Extemporâneas. In: Nietzsche. v. XXXII. 1. ed. São Paulo: Abril, 1974. (Os pensadores)

______. Ecce Homo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

______. O último filósofo. In: O livro do Filósofo. Porto: Rés, Sd.

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. São Paulo: Unesp, 2007.

SCHULZ, Gerson N. L. Nietzsche e a educação: uma perspectiva de transvaloração para a pós-modernidade. Pelotas: 2003. Dissertação de Mestrado (Educação)

______. Educação: ser, saber, fazer. Porto Alegre: Editora Alcance, 2007.