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terça-feira, 20 de janeiro de 2015

UM ÍCONE DO CONSERVADORISMO: O PENSAMENTO DO FILÓSOFO E POLÍTICO BRITÂNICO EDMUND BURKE





GERSON NEI LEMOS SCHULZ

Professor de
Filosofia na Rede
Pública Federal no Rio Grande do Sul

TEXTO PUBLICADO ORIGINALMENTE NA REVISTA CONHECIMENTO PRÁTICO
FILOSOFIA - EDIÇÃO N. 51. O título original era: Um Ícone do Conservadorismo. Ele foi alterado, arbitrariamente e sem o meu conhecimento, pelo editor da extinta revista, para Um gênio conservador... Nem de longe eu considero Burke um gênio.
EM:



Você é um conservador?


O Dicionário Brasileiro Globo da língua portuguesa afirma que conservador é o adjetivo que deriva do latim "conservatore" e que é aquilo que: "conserva; que ajuda a conservar; que se opõe a mudanças políticas; sm. Aquele que conserva [...]; aquele que, em política, é pela conservação da situação vigente, opondo-se a inovações que venham modificar a ordem social" (1992, p. 434).

Essa tradição vem desde o início dos Estados modernos, especialmente a partir dos escritos do filósofo Edmund Burke (1729-1797) que foi secretário do Primeiro-Ministro, e líder do partido Whig. O conservadorismo – enquanto filosofia política e corrente de pensamento filosófico – aparece no século XVIII na Inglaterra como uma reação específica à Revolução Francesa que espalhou grande instabilidade política na França e, após, se lavrou pela Europa, perturbando diversos regimes monárquicos cujos reis se preocuparam com o fim dado ao rei Luis XVI, decapitado na guilhotina. De acordo com o historiador gaúcho, Voltaire Schilling (2014), no dia 21 de janeiro de 1793, um dia de inverno, Luís XVI foi levado ao cadafalso para ser decapitado por Charles Henri Sanson, o carrasco oficial da república convencional francesa.

Decapitação do Rei
Luis XVI


A decapitação do rei, após um julgamento levado a cabo por seus opositores, mas não apenas simples opositores e sim, também pessoas de todas as classes sociais unidas por uma vontade comum – a luta contra o regime monárquico despótico, e cujo julgamento foi arquitetado no calor de uma revolução armada que lutava contra a tirania absolutista em toda a Europa – fez estremecer todos os reis do continente cujos conselheiros temiam que o movimento impulsionado pelo grito de liberdade, igualdade e fraternidade para todos, "contaminasse" também cidadãos de outras nações. Para Schilling, "a cabeça cortada e sangrada do rei, erguida na praça pública lotada, foi o aviso que a França revolucionária enviou aos soberanos do velho continente, junto com o grito 'Morte aos tiranos!'" (2014).

Outra possível vertente que incentivou posturas conservadoras na política, especialmente inglesa, foi o período do "Terror", imposto à França revolucionária pelos jacobinos, liderados por Maximilien François Marie Isidore de Robespierre (1758-1794) ou simplesmente Robespierre, advogado e deputado francês. Conforme diz Furet (1978) esse grupo era uma organização política criada no ano de 1789 na França durante o processo da Revolução. Os jacobinos inicialmente adotaram uma postura "moderada" no que diz respeito à Revolução, mas com o passar do tempo, Robespierre determinou posições muito mais radicais às diretrizes do grupo. A maioria das pessoas que compunha os jacobinos era de pequenos comerciantes, profissionais liberais e pessoas pertencentes às classes mais desfavorecidas econômica e politicamente, daí suas diretrizes pregarem premissas dirigidas para essas pessoas como, por exemplo, a eliminação da monarquia na França, a abolição da escravidão em todas as colônias francesas, a educação para todos, a garantia do uso da força bruta contra os opositores da revolução; o fim de todos os privilégios do clero e da nobreza, a ajuda econômica aos mais necessitados, o controle dos preços dos produtos de primeira necessidade. Medidas que agradavam ao povo em geral mais pobre, mas que, por outro lado, desagradava aos girondinos, liderados por Jacques Pierre Brissot (1754-1793) e que era formado por membros da alta burguesia francesa.

Os Girondinos eram um grupo político "moderado" durante a Revolução Francesa e seus integrantes faziam parte da classe que financiou boa parte da revolução, a burguesia antimonarquista. Eram chamados de Girondinos porque derivavam do partido político conhecido como Gironda. Os Girondinos compunham também o chamado "Terceiro Estado", juntamente com os Jacobinos e os Cordeliers.


Robespierre
Opositores ferrenhos dos Jacobinos os Girondinos defenderam, durante o processo da Revolução Francesa, a instalação de uma monarquia constitucional na França após a queda do absolutismo. Assim eram, logicamente, opostos ao radicalismo dos Jacobinos.

Mas os girondinos também usaram a violência para reagir às medidas radicais tomadas pelos Jacobinos durante a fase da "Convenção Nacional". Eles também promoveram perseguições políticas, conspirações e assassinatos de seus opositores. Em contraposição aos Jacobinos, os Girondinos – em termos econômicos e políticos – eram a favor da grande liberdade das atividades econômicas sem a intervenção governamental nessas atividades. Num segundo momento eles se tornaram defensores de um sistema republicano moderado, sendo também favoráveis à exclusão dos mais pobres das eleições por meio da implantação do voto censitário que era baseado na renda dos cidadãos franceses.

Foi entre 1792 e 1794 que os Jacobinos tomaram a frente do processo revolucionário na França. E este período se denomina "Terror" em função dos assassinatos de opositores políticos, principalmente de monarquistas e Girondinos. Robespierre, principal líder dos jacobinos, era defensor da violência como forma de garantir a continuidade da Revolução e um de seus principais objetivos era garantir a transformação da França em uma república baseada nos princípios da igualdade e da virtude com forte apelo social. Seu projeto, porém, não foi a cabo visto que em 1794 o próprio Robespierre foi preso por seus inimigos e executado na guilhotina.

A Queda da Bastilha
Além dessa "revolução marcante", especificamente Edmund Burke, também viveu em um mundo que passava por outras revoltas. Ele teve a oportunidade de vivenciar indiretamente quatro revoluções – a Americana (que levou a formação dos Estados Unidos da América em 1776), a revolta dos Bengalis (na Índia), as revoltas dos católicos irlandeses e a Revolução Francesa. Além disso, em seu próprio território, Burke (que era líder dos Whigs, o grupo que, na ocasião, era considerado 'pró-esquerda' por ser progressista e contrário a intervenção do Rei na Política) enfrentava os Tories.

Mas o que seria um conservador? E se Burke era partícipe de um grupo considerado progressista, o que o leva a ser conhecido como autor conservador e de "direita"?

Em filosofia política o conservadorismo, de forma geral, aposta nas diretrizes opostas as dos Jacobinos em termos políticos e sociais. Assim, para Abbagnano (2007), para um conservador, a sociedade e suas instituições são o resultado de um processo de crescimento cumulativo ao longo do tempo onde a ordem social vigente é mero produto dessa interação entre as instituições, os costumes, os hábitos, a Lei e as forças sociais impessoais que regem os períodos sociais. Dessa forma, não se pode tolerar uma revolução que, para os conservadores como Burke, se trata de um momento de rompimento com as estruturas já estabelecidas e "maduras" de determinada sociedade que não são ações arbitrárias, mas culturais, fruto de discussões amplas, das leis e da tradição.

Em uma revolução há vários grupos e pessoas, inclusive agindo por meio da violência, lutando para transtornar arbitrariamente toda a organização social pré-existente, isso, para Burke, é errado e imoral, porque favorece a arbitrariedade e, ademais, é um equívoco porque as revoluções sempre se propõem modelos para todos os povos, algo impossível na visão do filósofo porque os povos são diferentes devido a sua cultura e costumes.

Immanuel Kant
Na Filosofia clássica se têm alguns exemplos de autores famosos considerados "conservadores" como o próprio Edmund Burke, George Hegel e Immanuel Kant. O pensamento desses autores endossa a tradição das instituições políticas, econômicas, sociais que – para eles – tem por essência defender a ordem social, consequentemente, manter as classes sociais dentro de fronteiras bem distintas e propagar que o Estado deve, de alguma forma, ser preponderante sobre o indivíduo por ser aquele não uma manifestação qualquer, mas a solidificação de toda a vontade soberana de um povo e de suas tradições.

O conservadorismo político, de forma geral, não aceita a intervenção do Estado na economia, pois pensa que a economia deve, também enquanto instituição social, se mover por si mesma de acordo com os agentes que nela operam. Em suma, o Estado não representaria, na visão conservadora, indivíduos, mas grupos; ele seria a síntese de outras instituições, por isso Burke simpatizava com a parte do programa do partido que propalava o liberalismo econômico.

Edmund Burke e o conservadorismo

Edmund Burke nasceu em 12 de janeiro de 1729 em Dublin na Irlanda e faleceu em 9 de julho de 1797 em Beaconsfield na Inglaterra. Este autor do campo da Filosofia Política foi um parlamentar e pensador político do século XVIII que desempenhou importante papel nos principais temas políticos por cerca de 30 anos depois de 1765. Burke era irlandês, o pai era advogado protestante e sua mãe uma católica praticante. Burke ingressou no Trinity College, em Dublin, em 1744 e foi para Londres no ano de 1750. Em 1757 ele se casou com Jane Burke Nugent, a filha de um médico católico irlandês.

Edmund Burke

A carreira política do filósofo iniciou-se no ano de 1765, quando se tornou secretário particular do marquês de Rockingham. Desde o início, Burke se envolveu na controvérsia constitucional na Grã-Bretanha sob o governo do rei James III, que na época estava tentando estabelecer um poder mais incisivo para a coroa e, por isso, enfrentava descontentamentos severos por parte dos colonos britânicos nos territórios de além-mar, especialmente na colônia norte-americana da Grã-Bretanha. Burke se preocupou com estes temas em sua filosofia política dando razão a algumas alegações dos colonos americanos que se negavam a pagar impostos para a Inglaterra cuja criação e cobrança não tinham chance de debater e impedir no Parlamento Britânico por não terem lá representação concreta, e os americanos alegavam tal direito porque embora colonos, eram ingleses também.

O autor discorreu longamente sobre o tema no panfleto "Thoughts on the Cause of the Present Discontents" de 1770, no qual argumenta que, embora as ações de James tivessem bases legais porque não estavam contra a Constituição, elas foram infelizes porque iam contra o espírito liberal britânico. Nesse mesmo panfleto Burke elabora uma nova definição de partido político: "[...] o Partido é um grupo de homens unidos para a promoção, pelo seu esforço conjunto, do interesse nacional com base em algum princípio com o qual todos concordam" (BURKE. 1982b, p. 29).



A principal polêmica que afligia os políticos e a monarquia britânica naquele ano era a questão do tratamento dispensado às Colônias de ultramar. O filósofo argumentou a respeito que o governo britânico tinha agido de forma imprudente e até mesmo pouco consistente para dirimir os problemas. Na concepção de Burke, a forma de a Grã-Bretanha tratar a questão colonial era estritamente legal, porém não moral.

Para Burke, os britânicos precisavam oferecer mais respeito e consideração pelas reivindicações dos colonos da América do Norte. O autor chamou a isso de "razão legislativa" em dois de seus discursos parlamentares sobre o assunto, um chamado "On American Taxation", de 1774; e o outro de "On Moving His Resolutions for Conciliation With America", de 1775 (BURKE, 1982b). Mesmo assim, a política imperial britânica seguiu não sabendo resolver os problemas com suas colônias.

As ideias de Edmund Burke

As ideias de Edmund Burke estão espalhadas em discursos no Parlamento Inglês, cartas e em alguns opúsculos. Em termos políticos uma de suas obras mais conhecidas é: "Reflexões sobre a revolução na França e sobre o comportamento de certas comunidades em Londres relativo a esse acontecimento" de 1790. Traduzido no Brasil em duas versões: "Reflexões Sobre a Revolução na França", traduzido por Francisco Eduardo Alves e publicado pela editora Topbooks e "Reflexões sobre a Revolução em França" [1790], editora da UnB.

Para entender as "Reflexões sobre a Revolução em França" é imprescindível compreender um pouco da vida política e algumas das razões que o levaram a escrever o livro. Burke, particularmente, mantinha certa "aversão" ao exercício do chamado "poder arbitrário". Assim, o objetivo da obra é, antes de tudo, criticar os defensores ingleses da Revolução Francesa, entre os quais estava o pastor dissidente da Igreja Anglicana, Richard Price (1723-1791), defensor da liberdade de pensamento e do ideal de governo do "povo pelo povo".

Parlamento Britânico

As Reflexões são apresentadas inicialmente como resposta a um sermão de 4 de novembro de 1789, feito pelo pregador por ocasião da comemoração do centenário da Revolução Inglesa, no qual Price exaltava a luta dos revolucionários franceses. Essa obra também estabelece o rompimento político e ideológico com os Whigs. Burke, avesso à arbitrariedade no exercício do poder, considerou o que acontecia na França como a encarnação daquele. Preocupado também com o que poderia acontecer na Inglaterra após a chegada das notícias sobre a Revolução na França, o filósofo tenta, no livro, mostrar os malefícios que algo semelhante traria a seu país, pois ele sabia que na Inglaterra havia muitos simpatizantes da Revolução Francesa. É por isso que essa obra de Burke é um marco histórico, pois ele é o primeiro filósofo que se propõe analisar o processo revolucionário da França e por isso é tido como o "pai" do conservadorismo.

Burke era também um cristão conservador e é por isso que ele projeta suas crenças igualmente na política. Suas obras são, antes de tudo, a reação de um cristão conservador à política revolucionária que se espalhava pelo mundo. Ele acreditava que a monarquia deveria existir (e que de fato existia) devido também ao poder divino. Para ele, a religião pode ser considerada a base da sociedade civil e a fonte de todo bem e de toda felicidade dos homens (BURKE 1982a, p. 112-113). Ele advoga que o homem é, por natureza, um animal religioso; o ateísmo não só é contra a razão, mas é contrário aos nossos instintos mais elementares (Idem). "A religião é não só a fonte de nossa glória e do nosso orgulho, isto é, é a fonte da glória e do orgulho dos ingleses, mas é também fonte de grande civilização entre nós e de muitas outras nações" (BURCKE, 1982a; 2004).

Assim, qualquer mudança sem discussão, sem levar em conta a cultura de determinado povo, e, especialmente, a vontade de grupos (e na visão de Burke a vontade de um grupo está acima da vontade dos indivíduos particulares que o compõem) é imoral porque busca o poder pelo poder como satisfação não da política ou da vontade da maioria, mas está cooptado pela vontade de líderes "vaidosos".

Burke via na manutenção de instituições já consagradas como a família, o Estado, a Igreja, os costumes – a garantia de continuidade da sociedade e de sua harmonia. O autor não era radicalmente contra "mudanças", mas defendia que elas acontecessem em escalas que deveriam ser amplamente discutidas por grupos e confrontadas no Parlamento. É por isso que ele critica veementemente o Estado revolucionário. A Revolução, segundo ele, era uma prática contra as esferas legitimadas pela autoridade e pela vontade dos grupos em prol da vontade particular, e por isso ilegítima, de poucas pessoas que se autoafirmavam como portadoras da verdade.

Burke não admite mudanças na sociedade?

Para Burke, partindo da ideia que cada sociedade é diferente porque tem culturas e leis diferentes, qualquer proposta de revolução realizada por um determinado povo não pode servir de modelo para todos os outros. Além disso, Burke considera que não se pode partir da premissa que a política seja feita apenas com a razão e por entes que têm a razão a plenos poderes, o homem é também formado por sentimentos. O autor leva em consideração o fato que na política nem sempre as decisões são racionais, mas elas estão ligadas às necedades diretas dos indivíduos em determinado período histórico, porém Burke não admite, com isso, que então a história seja a grande determinante da vida dos indivíduos, o que ele admite é que a história está ligada à natureza e que, portanto o que acontece com a vida humana e as suas instituições, é "natural" e não deve ser questionado, muito menos por revolucionários que tentam estabelecer uma "contraordem" social e, por isso – por ser um "transtorno" das convenções estabelecidas ao longo do tempo – é que são antinaturais.

Se os princípios da Revolução estão inscritos em algum lugar, certamente, este lugar será o estatuto chamado Declaração de Direitos. Nesta declaração cheia de sabedoria, moderação e prudência, elaborada por grandes juristas e grandes estadistas, e não por mornos e inexperientes entusiastas, não há nenhuma palavra, nenhuma alusão que se relacione a um direito geral de escolher nossos próprios governantes, de depô-los por indignidade e de estabelecer um governo para nós mesmos (BURKE, 1982a, p. 57).

Com tal postura, pode-se inferir porque Burke é considerado um político aristocrático e conservador. Em política ele defendia a monarquia e a autoridade do Rei, porém o Rei reina, mas não governa porque é limitado pelos poderes do Parlamento.

Ao analisar a "Assembleia" estabelecida na França pós-revolucionária ele critica abertamente o que chama de "abolição das ordens", pois sem a ordem social não há nada que a possa frear o exercício do poder (BURKE, 1982a; 2004).

[...] a França tivera a possibilidade de aproveitar o exemplo britânico, de ter: uma Constituição livre, uma monarquia poderosa, um exército disciplinado, um clero reformado e venerado, uma nobreza menos orgulhosa, mas mais digna, capaz de lhes ensinar a virtude e não de abafá-la, uma burguesia liberal imitando esta nobreza e oferecendo-lhes recrutas, um povo, enfim, protegido, satisfeito, laborioso e obediente, habituado a procurar e a apreciar a felicidade (BURKE, 1982a, p. 72).

A Grã-Bretanha, para ele, se tratava do modelo a ser seguido e a França, em sua visão, tomara o "caminho errado" porque: "os franceses possuíam todas estas vantagens em seus antigos Estados [...], mas preferiram agir como se nunca tivessem sido moldados em uma sociedade civil, como se pudessem tudo refazer a partir do nada" (ibid., p. 71).

Por fim, para Burke o que garantiria a liberdade de um povo é a existência de um Rei e de um Parlamento. Ele abominava, assim, o argumento sobre a existência de "direitos inatos". Para ele a liberdade deveria ser conquistada e a classe que mais tinha, naturalmente, conquistado a liberdade (e a merecia) era a aristocracia, para ele era essa classe que garantiria a ordem social. É por aí também que ele aproveita para criticar o ceticismo racionalista do cientificismo francês adotado pelos revolucionários do continente que, segundo ele, traria mais dúvidas (ao questionar as autoridades e seu poder) do que certezas – e as certezas segundo ele – são imprescindíveis para um bom governo e para a manutenção da ordem.

Para Burke a herança é uma manifestação da natureza e se a manutenção da aristocracia se dá por herança, sua extinção pode ser vista como uma usurpação. Assim, a exclusão do povo da vida política e a submissão ao rei e à aristocracia são sentimentos naturais e muito antigos ligados aos ancestrais que devem ser preservados. Para o autor, o que não é natural é a indignação dos revolucionários e a igualdade que poderia subverter a ordem das coisas acabando com um hábito criado naturalmente pela história. Portanto, as transformações, mesmo que lentas, são naturais e a declaração dos direitos do homem, a supressão da nobreza, a nacionalização dos bens eclesiásticos e todas as demais alterações trazidas pela Revolução Francesa demonstram a pressa e a desconfiança dos políticos franceses quanto à marcha da natureza. Ou seja, Burke alega que questionar a ordem estabelecida pelos ancestrais, pela cultura, pelos costumes é antinatural e levará o Estado à ruína o que, consequentemente, levará, também, a civilização e o homem à destruição. Eis os motivos que fizeram Edmund Burke se tornar um filósofo conservador.

REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

FERNANDES, Francisco et al. Dicionário Brasileiro Globo. São Paulo: Globo, 1992.

FURET, François. Penser la Révolution française. Paris: Gallimard, 1978.

BURKE, Edmund. Reflections on The Revolution In France And On The Proceedings In Certain Societies In London Relative to that Event In a Letter Intended To Have Been Sent To a Gentleman In Paris. 1790. Disponível em:< http://portalconservador.com/edmund-burke>, 2004. Acesso em: 25 de agosto de 2014, 12:45:43.

______. Reflexões sobre a Revolução em França [1790]. Brasília: Ed. UnB, 1982a.

______. Thoughts In The Cause Of The Present Discontents (1770). In: CHARLOT, Jean. Os Partidos Políticos. Brasília: UnB, 1982b.

SCHILLING, VOLTAIRE. A revolução é salva. Disponível em: <http://educaterra.terra.com.br/voltaire/mundo/rev_francesa_dois4.htm>. Acessado em: 04 de agosto de 2014, às 15:09:45.




quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

FREUD E A EDUCAÇÃO



Prof. Gerson Nei Lemos Schulz






Como é de domínio público, Sigmund Freud (1856-1939) foi o criador da Psicanálise. Apesar de não ter se dedicado especificamente ao campo da escolarização (GADOTTI, 2005), ele deu significativa contribuição para este ao descrever o fenômeno da "transferência".

Freud conceitua a transferência ao afirmar que: "transferências são reedições, reduções das reações e fantasias que, durante o avanço da análise, costumam despertar-se e tornar-se conscientes, mas com a característica de substituir uma pessoa anterior pela pessoa do médico" (FREUD, 1969a, p. 109-19). O autor descobre que no consultório, em alguns casos, havia a transferência de relações dos pacientes com outras pessoas que não o analista. Ocorria uma situação que era como se o terapeuta, naquele momento da sessão psicanalítica, se tornasse o "objeto", a pessoa com quem o analisando tivesse, originalmente, estabelecido a relação de conflito ou de amorosidade anterior ao tratamento.

Freud descobre que as atitudes emocionais – fundamentais para o futuro comportamento do indivíduo em sociedade –, são definidas desde a primeira infância a partir do relacionamento da criança com suas figuras parentais (FREUD, 1996e). É nesse momento que se estabelece "a qualidade e a natureza das relações da criança com as pessoas do seu próprio sexo e do sexo oposto. Todas as pessoas que vem a conhecer mais tarde tornam-se figuras substitutas desses primeiros objetos de seus sentimentos" (FREUD, 1969b, p. 248). Logo, sob o ponto de vista da psicanálise freudiana, a transferência exibe o tipo de laço social que se construiu no ambiente familiar da criança.

Freud também fez descobertas quanto ao desenvolvimento mental – dentro do processo de fetalização humano – e o dividiu em cinco fases: 1) a fase oral (de 0 a 1 ou 2 anos) em que a boca predomina, especialmente quando a criança está sugando o leite materno que para ela é um prazer, onde a mãe é o objeto do prazer, onde é prazeroso "comer" a mãe, o corpo da mãe, onde a língua é um estímulo para conhecer o mundo. 2) A fase anal (dos 2 aos 4 anos) em que a criança, na descoberta do seu próprio corpo (suas possibilidades e limites) experimenta a sensação de "trancar", manipular as excreções como as fezes e a urina. 3) A fase fálica (de 3 a 5 anos) em que a criança aprende a se tocar, descobrindo os centros erógenos, os órgãos genitais, os centros de prazer, descobrindo uma de suas possibilidades na futura vida adulta. 4) O período de latência (de 6 aos 10 anos) em que a sexualidade fica "latente", ela não desaparece, mas não é um momento de tanto interesse pela mesma. 5) E, finalmente, a fase genital (de 12 aos 18 anos), em que o indivíduo descobre sua expressão sexual, suas capacidades reprodutoras, sua possibilidade de ter prazer sexual com a autoerotização (masturbação) ou com a descoberta do sexo propriamente dito (FREUD, 1996e; 1996c).

Em termos sexuais, a psicanálise também parte de dois pontos de vista: o "complexo de Édipo" e a "Castração". O "Complexo de Édipo" se dá depois do desmame, em que o menino sente atração libidinal pelos membros do sexo oposto da própria família, geralmente a mãe – rivalizando com o pai – e a menina sente, da mesma forma – tal atração, mas pelo pai, sendo a mãe sua 'rival'. O medo da Castração surge devido ao medo de ser reprimido por sentir esse desejo pela mãe ou pelo pai (incesto). Freud teoriza que o medo da "Castração" é importante para amenizar e equilibrar o desejo libidinal da fase edipiana, mas é aí nesse momento, também, que podem ser originar a maioria das neuroses da idade adulta porque, em algumas pessoas, ocorre a "fixação" (FREUD, 1996b) em alguma dessas fases (o que pode se tornar patológico), por exemplo, indivíduos com fixação na fase anal podem ter a tendência à esquizofrenia. Mas para tal é preciso ter em mente que, de acordo com a teoria psicanalítica, não somos seres apenas racionais, vivemos também sob a égide dos instintos e sentimentos e somos seres que agem de acordo com seus próprios interesses. Nesse sentido é possível inferir das obras da psicanálise que somos egoístas e, mesmo sendo altruístas ao ajudar ao próximo, ainda assim fazemos isso porque, de certa forma fazer tal ação nos dá prazer e prazer é o princípio básico que nos move (FREUD, 1996a). Então, a partir daí ousamos dizer que somos "todos um pouco neuróticos", uma vez que sempre teremos algum desejo que não conseguiremos satisfazer e teremos de reprimi-lo. E essa repressão aflorará em algum outro momento de nossas ações e interferirá nas nossas escolhas conscientes e muitas vezes causarão desconforto. Assim Freud (1996d) assinala que todas as relações são permeadas por energias psíquicas que vem de uma região obscura e inacessível de nosso encéfalo, da região inconsciente ou subconsciente já que na visão da psicanálise o psiquismo humano está dividido em três estruturas básicas: o Id (do latim isto) subconsciente, fonte das pulsões, o Ego (do latim, eu), parte central da personalidade, responsável pelo pensamento consciente, lógico e racional, e o Superego (acima do eu), constituído pela moralidade e pela autocensura (FREUD, 1996d).



Para evitar as neuroses, especialmente, e a partir dos pressupostos acima e nossas leituras da obra de Freud ousamos pensar uma prática educativa sem o uso da violência, respeitando os alunos, pensar a relação entre a psicanálise e a educação.

A psicanálise nos mostra que a relação pedagógica não se resume ao planejamento, ao método de ensino, nem ao conhecimento da capacidade intelectual dos alunos. Os preceitos psicanalíticos tentam desvendar "o mundo oculto e subjetivo" que existe em cada um dos agentes educativos, pois admite que cada um deles sofre as pressões causadas por seus desejos reprimidos.


Sobre a "teoria da transferência" o próprio Freud (1969b) afirma que, da mesma forma que ocorre com o paciente no consultório, um aluno ou aluna é capaz de "transferir", na vivência com o professor – para este – simpatias e antipatias que, provavelmente, não existam na relação ou ainda antes mesmo de se estabelecer qualquer relação com o professor além da visual durante uma aula. Um exemplo típico é quando um aluno vê, conversa ou apenas assiste a uma aula de determinado professor na escola ou na faculdade e internamente não simpatiza com o mesmo, sem nunca tê-lo visto antes na vida.

Para Freud o aluno está propício a despertar pelo professor uma série de sentimentos (e vice-versa): amor e ódio ou censura e respeito. Há forte tendência do educando em ver no professor o "pai" e na professora a "mãe" ou os irmãos e as irmãs e tentar estabelecer com estes(as) as mesmas relações (conflituosa ou não conflituosa).


Longe da possibilidade de escolha do professor, este é alvo do que Freud chama de "herança sentimental". Isso se caracteriza pelo fato de os alunos "interpretarem" as características dos professores e construírem uma "interpretação" que pode ser ilusória.

Freud também discutiu a respeito da repressão sexual no âmbito escolar. O pai da psicanálise via no mundo adulto muitos desajustes provenientes de conflitos e frustrações que provinham da infância, especialmente os fenômenos ligados à sexualidade infantil. Para ele, a psicanálise não apresentava "dificuldade" em explicar sentimentos contraditórios que os seres humanos sentem, inclusive a psicanálise freudiana chama este fenômeno de "ambivalência". Em função dela temos a capacidade de amar e odiar, respeitar e criticar ao mesmo tempo.


Assim Freud constrói uma "imagem" do processo educativo que, podemos afirmar, é a intenção coletiva de modelar os jovens de acordo com os mais velhos. Ela é o "agente transmissor do princípio da realidade" frente ao princípio do prazer.

Em termos pedagógicos, pensamos que o professor que se orientar pela teoria psicanalítica em sala de aula não se preocupará apenas em ministrar um tipo de aula que transmita conteúdos, mas também em observar as reações dele e dos alunos sobre o conteúdo abordado, sobre as práticas pedagógicas, sobre a avaliação por ele praticada, pela interação entre os alunos e ele e entre os próprios alunos entre si. Ao agir assim, ele poderá interpretar para entender o que há por trás dessas reações, ou seja, descobrir que desejos estão sendo reprimidos e liberados pelos alunos e por ele enquanto professor, e um método para isso é valorizar a liberdade de expressão na sala de aula.


Um docente que se guie pela psicanálise sabe que o conhecimento é permeado pelo desejo. Sabe que a assimilação de um dado tipo de conhecimento não possui somente o aspecto intelectual, possui também o aspecto emocional que é, em grande parte inconsciente. Isso explicaria porque alguns alunos gostam mais de determinada disciplina ou conteúdos do que outros. Porque um aluno ou outro gosta mais de um professor que de outro. A origem dessas situações é desconhecida até hoje, inclusive pela neurociência, que ainda trabalha com o conceito de "inconsciente" freudiano para teorizar sobre tal fato.

Por outro lado, o leitor pode estar se perguntando: "então se eu, como professor, quiser tomar por base a psicanálise em sala de aula terei que agir como um psicanalista da turma? A resposta é "não". Por isso é preciso ter cuidado para que entendamos bem o que Freud e sua psicanálise sugerem em relação ao professor e a educação. A ideia não é que o docente seja o psicanalista de seus alunos, e sim que ele seja uma pessoa atenta para o fato de que ensinar não depende somente de conhecimentos teórico-metodológicos ou de uma boa erudição professoral. O que a teoria freudiana faz é mostrar ao educador que existem limitações nos processos pedagógicos para que ele possa impor menos o autoritarismo das teorias pedagógicas, menos seu próprio autoritarismo, suas concepções de mundo como se fossem as únicas e também seus preconceitos; construindo, assim, uma relação com os alunos de compreensão, de aceitação de concepções contrárias as suas e até de comportamentos desde que se restrinjam (estes comportamentos) ao limite do tolerável (que não cause a desintegração do grupo), por exemplo: o que fazer com um aluno violento? Certamente não "tolerá-lo" desta forma, mas procurar saber se a origem desse comportamento se deve à resistência dele em relação ao processo pedagógico, às avaliações, ao grupo, à pessoa do professor ou se ela tem outra causa como a relação familiar, por exemplo.

Para concluir, o professor que partir desses princípios pedagógicos terá que levar em consideração diversas variáveis (e muitas delas latentes ou com origem desconhecida) que interferem no processo de aprendizado dos alunos ou em seus comportamentos em sala de aula, no trato com outros colegas e com o próprio professor. Esse professor terá que ter também liberdade para criar outros métodos, outras perspectivas de ensino que levem em consideração que o sucesso ou o fracasso de alguém na vida escolar tem sua causa mais nas relações interpessoais do que em metodologias de ensino ou materiais didáticos. É claro que essa atitude docente teria pouco efeito prático se em uma turma escolar, apenas um professor agisse assim. Pensamos que uma experiência dessa magnitude teria que ser praticada por toda uma escola ou por toda uma rede de ensino, mas daí talvez surja outro ponto a ser trabalhado, a perspectiva dos conflitos interpessoais, especialmente em crianças e adolescentes que, em sua maior parte não diferenciam as origens desses conflitos (às vezes nem percebem que estão em conflito consigo ou com outras pessoas) porque tais conflitos podem também ter origem fora da escola, na família. Provavelmente um trabalho cujos resultados não fossem contraproducentes ou pedantes teria que, de alguma forma, envolver também as famílias no ambiente pedagógico, não como auxiliares – o processo de escolarização ainda cabe ao professor – mas como agentes de apoio a crises que – às vezes – estão além do poder de resolução da escola e dos agentes públicos em geral.


Referências:


FREUD, Sigmund. Além do Princípio do Prazer [1920]. In: Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996a.

______. Conferência XVIII: fixação em traumas – o inconsciente [1916]. In: Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. XVI. Rio de Janeiro: Imago, 1996b.

______. A dissecção da personalidade psíquica [1933]. In: Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. XVII. Rio de Janeiro: Imago, 1996c.

______. O eu e o isso. In: Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1996d.

______ A Organização Genital Infantil. In: Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1996e.

______. Pós-escrito do caso Dora. In: Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1969a.

______. Algumas reflexões sobre a psicologia do escolar. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XIII. Rio de Janeiro: Imago, 1969b.

GADOTTI, Moacir. História das ideias pedagógicas. São Paulo: Ática, 2005.

domingo, 21 de dezembro de 2014

MAURÍCIO TRAGTENBERG: ANARQUISMO PEDAGÓGICO E PEDAGOGIA LIBERTÁRIA





PROF. GERSON NEI LEMOS SCHULZ
(CO-AUTOR E ORIENTADOR)

ACADÊMICAS DE PEDAGOGIA

ADRIANA REGINA DE OLIVEIRA MENDES
MARIA HELOISA CORREA MACHADO
MIRELE DA SILVA DUARTE
VANIA MARA DA COSTA BORGES

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE
FURG





Este artigo trata da Pedagogia Libertária proposta pelo pensador anarquista Maurício Tragtenberg (1929-1998), nascido em Erexim, neto de imigrantes judeus que se instalaram no interior do Rio Grande do Sul. Nessa cidade Tragtenberg começou seus estudos e, posteriormente, foi para um grupo escolar em Porto Alegre. Naquela cidade ele conta, em suas memórias (1999), que não foi além da 3° série do primário. Seus problemas com a escola formal começaram ainda no primeiro ano quando foi reprovado nas aulas de canto. Na década de 1940, ao ficar órfão de pai, foi com a mãe para São Paulo onde cresceu e, na idade adulta, começou a trabalhar e se filiou ao Partido Comunista Brasileiro de onde foi obrigado a se desligar mais tarde vindo a dirigir assim o recém-formado Partido Socialista Revolucionário. Maurício Tragtenberg se fez conhecer nos meios acadêmicos como autodidata e como "socialista libertário".

De forma geral, podemos dizer que suas influências teóricas vêm de autores como Marx, Bakunin, Kropotkin, Malatesta e Lobrot (GADOTTI, 2005, p. 261). Tragtenberg, dentre os pensadores com influencia marxista/anarquista da contemporaneidade, destaca-se por se preocupar com a escola, instituição a qual fez críticas por seu modelo pedagógico burocrático, críticas essas sob inspiração de Max Weber (1864-1920), chegando à teoria da pedagogia libertária também de inspiração foucaultiana (Michel Foucault, 1926-1984); traçando as relações primárias de poder entre professores, alunos, funcionários, direção e orientadores que seriam uma reprodução das relações de poder e submissão na sociedade, ideia esta mesclada com as teorias da escola reprodutivista de Pierre Bourdieu (1930-2002).


Tragtenberg dizia que a prática de ensino reduzia-se à vigilância e a escola burocrática seria uma forma de controle da população escolar onde o aluno seria apenas um receptor submisso de conhecimentos e o professor seria o dominador. A burocracia, segundo ele, perverte as relações humanas, causando conformismo e alienação (outra ideia que não é dele, mas de Karl Marx, 1818-1883), assim ele mostra uma nova possibilidade, a de luta por meio da organização das classes sociais submissas, com a participação do trabalhador em geral na vida política e em especial do trabalhador em educação, visando uma reeducação dos mesmos.


Tragtenberg discutiu sobre as várias faces de dominação existentes na escola, desde a simples disposição da mobília atentando para o detalhe que o professor sempre fica(va) acima dos ouvintes em seu "púlpito" ou tablado e os dóceis e submissos alunos em suas carteiras dispostas umas atrás das outras, assemelhando-se a sala de aula a uma linha de montagem. Tragtenberg denuncia o mecanismo em que o professor "julga" o aluno nos conselhos de classe que equipara a um grande tribunal de "presos" ou "criminosos" em que o aluno é julgado pela nota que lhe atribuem e, como resultado de tal julgamento, às vezes recebe uma pena severa que pode lhe trazer reflexos para o resto da vida profissional e pessoal, ou este mesmo processo pode, antes da vida adulta, levá-lo à exclusão da escola, instituição esta que serve ao sistema capitalista em geral, segundo ele.

O filósofo comparava a escola aos presídios (assim como também Foucault) afirmando que a prática da "disciplinação" é uma herança do sistema carcerário, especialmente porque a vigilância permanente e os registros sobre os alunos (notas, presenças, observações, boletins, históricos e etc.), bem como o uso de uniformes-modelo classifica rigorosamente os indivíduos.

Para superar tudo isso ele propugnava a "Pedagogia Libertária" que almejava desenvolver o processo de aprendizagem por meio da "autogestão" dando à comunidade escolar (e ao local em que o indivíduo se desenvolve que pode ser o bairro, o trabalho e etc.) o poder de gerir todo o processo ali decorrente.

O objetivo central era que cada indivíduo alcançasse sua autonomia e se tornasse um "ser digno" apesar de viver em um meio social materialista em que tudo e todos têm um "preço". Para ele o homem não pode ser tratado como mercadoria, pois tem sua dignidade. Por isso ele era contra premiações ou punições valorizadas na sociedade contemporânea e a favor da solidariedade fundamentada na abolição da competição e na crítica a todas as normas autoritárias.

Por fim, após esse breve corolário, entendemos que Tragtenberg advoga que somente desse modo ocorrerá a democratização da escola e que esta democratização virá depois que houver a desvinculação entre poder e saber. Momento em que professores, alunos e funcionários formarão uma só comunidade democrática e "libertária". Porém, analisamos que o desafio maior é desvincular a escola (seja ela qual for, até mesmo a universidade) da ideia de mercado de trabalho, de atribuição de notas, de punições ou louvores a alunos e hoje também aos professores e funcionários, e ainda assim "transtornar" a atual relação de poder que possa existir entre docentes e discentes – em outra perspectiva – como o professor não exercerá "poder" (o poder do saber) sobre o discente se o discente ainda não está de posse do saber docente? Não acreditamos que o docente tudo saiba, mas é coerente afirmar que o discente que se candidata à escola pretende, nela, "adquirir" conhecimentos que não tem condição de aprender sozinho. Que outra forma ou formas de indicar quantitativamente o aproveitamento de um aluno em determinado curso, senão por meio de notas ou conceitos? Apesar de Tragtenberg demonstrar que as provas só provam que o aluno é capaz de repetir o conteúdo que sabe "de cor", que outra forma de "separar" quem "sabe" de quem "não sabe"? (E admitimos que separar já é classificar esse alguém, mas lembramos com Pedro Demo – 2002 – que não avaliar alguém também já é avaliar!) Que outra forma de "valorizar" o aluno que frequentou um curso regularmente em descrédito daquele que não frequentou? É sabido que nem todo aluno que frequenta integralmente um curso qualquer tem melhor aproveitamento do que outro que frequentou metade do mesmo curso, mas ainda assim essa questão não é satisfatoriamente respondida na teoria da educação libertária de Tragtenberg e por isso é pesquisa em aberto.


Referências:

DEMO, Pedro. Mitologia da Avaliação. São Paulo: Autores Associados, 2002.

GADOTTI, Moacir. História das Ideias Pedagógicas. São Paulo: Ática, 2005.

TRAGTENBERG, Maurício. Memórias de um Autodidata no Brasil. São Paulo: Escuta, 1999.

domingo, 9 de novembro de 2014

POR UMA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO AMAZÔNICA



GERSON NEI LEMOS SCHULZ*



Artigo publicado originalmente no livro: 
SCHULZ, Gerson N. L. (Org.). 
Educação na Amazônia
São Leopoldo: Oikos, 2010. (P. 11-23).



O primeiro capítulo desta coletânea é um diálogo (pesquisa bibliográfica) entre algumas propostas da filosofia européia e algumas perspectivas culturais possíveis da região amazônica. O método de investigação é o método dialético e a abordagem é crítica. O mote de pesquisa do trabalho é: em que medida os indígenas da região norte do Brasil podem solidificar sua identidade cultural com a contribuição da visão de mundo (filosofia) pós-moderna? Sendo assim, o objetivo principal é conflitar para compreender as relações filosofia/ciência e mito. Secundariamente, levantam-se questionamentos sobre a possibilidade da existência de uma visão de mundo tipicamente amazônica, principalmente a partir da compreensão de mundo dos povos indígenas da região. As principais conclusões foram: as abordagens propostas pelo contexto do mundo pós-moderno acolhem, de modo geral, os povos da Amazônia e suas concepções de mundo (filosofia) por sua própria perspectiva de negação da razão unívoca e evolucionista. O mito, fruto do pensamento indígena pode ser considerado filosofia e garantir a existência de uma educação com forte identidade amazônica, o que implica também que a forma de organização indígena sem a presença da sociedade-Estado pode garantir a preservação efetiva das superfícies florestais na região norte do Brasil.

1 Esclarecendo alguns conceitos

O texto parte de uma pergunta: Existe uma filosofia da educação tipicamente Amazônica? Em outras palavras, "o que significa falar em uma filosofia amazônica?"

Em primeiro plano, é importante definir melhor o termo filosofia e filosofia da educação. Por filosofia, toma-se aqui a seguinte definição

[...] a filosofia não é, de modo algum, uma simples abstração independente da vida. Ela é, ao contrário, a própria manifestação da vida humana e a sua mais alta expressão. Por vezes, através de uma simples atividade prática, outras vezes no fundo de uma metafísica profunda e existencial, mas sempre dentro de uma atividade humana, física ou espiritual, há filosofia [...] (BASBAUM, 1978, p. 21) 

Percebe-se, nesta perspectiva, que a filosofia é tomada pelo autor como uma prática humana, então ela não é algo "morto", mas dinâmico. Não é um conhecimento engessado, mas ativo e serve para criar valores e dirigir condutas. "A filosofia se manifesta ao ser humano como uma forma de entendimento que tanto propicia a compreensão de sua existência, em termos de significado, como lhe oferece um direcionamento para sua ação, um rumo para seguir" (LUCKESI, 1994, p. 23). Se ela não for um rumo a seguir, pelo menos é algo que permite ao homem lutar por ele. Ela estabelece uma organização de mundo que possibilita, consequentemente uma organização de valores, continua Luckesi (Op. Cit.).

Já a filosofia da educação se preocupa com o "[...] educando, quem é, o que deve ser, qual seu papel no mundo; o educador, quem é, qual seu papel no mundo; a sociedade, o que é, o que pretende; qual deve ser a finalidade da ação pedagógica." (LUCKESI, Op. cit., p. 32). Há, aí, íntima relação entre filosofia e educação. O autor também afirma que os filósofos sempre se preocuparam com que suas filosofias (cosmovisão) sejam divulgadas por meio da educação. Pode-se inferir então que não há sentido uma filosofia que não seja discutida entre o grupo que a adota ou propõe, que não seja o resultado de uma coletividade, não seja difundida entre estes mesmos membros que a produziram e se é proposta de um grupo (que é histórico) é também ela, reflexão humana, produção histórica.

Fica claro, pois, que o pensamento humano, seus direcionamentos, seus valores, mudam. Assim, nenhuma proposta deve ser engessada, amarrada e dona da verdade absoluta. Infelizmente, não foram estes os exemplos que as colônias dos países europeus receberam ao longo dos séculos. Por mais de quinhentos anos, África e América tem se "violentado" intelectualmente para servir e concordar com o pensamento europeu preconceituoso. E a forma de pensar européia universalizante, que descambou nos totalitarismos da era colonial e em duas grandes guerras mundiais, oprimiu também a colônia Brasil que não é uma nação formada por pessoas iguais (social e culturalmente falando). Em suma, essa discussão tem por finalidade refletir, tentando banir a hipocrisia ou discursos ressentidos, a existência, ainda hoje, de uma visão de mundo amazônica.

1.1 Modernidade ou Pós-modernidade?

Não se trata aqui de desprezar a filosofia européia nem sua contribuição para o pensamento Ocidental. A crítica referida acima é no sentido de refletir se só é possível fazer-se filosofia na Europa e se se tem que aceitar apenas o que vem dela e acreditar que porque deu certo por lá dará aqui também.

Por ora, tenta-se pensar como, dentro da classificação de modernidade ou pós-modernidade, melhor se enquadraria uma filosofia da educação amazônica. Univocamente, para fins deste trabalho, afirma-se que a filosofia da educação além de delimitar uma postura social também delimita no educador uma postura pessoal. "Mais do que possibilitar um conhecimento teórico sobre a educação, tal estudo forma em nós, educadores, uma postura que permeia toda a prática pedagógica. E essa postura nos induz a uma atitude de reflexão radical diante dos problemas educacionais [...] (GADOTTI, 2005, p. 15-17).

A partir das considerações de Luckesi (1994) e Gadotti (2005), infere-se que, atualmente, a filosofia da educação não pretende ser "doutrina", como queriam a educação em geral racionalista ou romântica (ambas moralistas) eurocêntricas dos séculos XVII, XVIII e XIX. Para justificar tal afirmativa, basta lembrar que os Jesuítas educaram a América luso-espanhola submissa ao pensamento tomista. Por sua vez, o Marques de Pombal, ao expulsar os Jesuítas, substituiu a educação religiosa por uma educação laica com valores iluministas (racionalistas). O mesmo deu-se no século XIX com o Positivismo de Comte. Já hoje, se se adotar uma concepção pós-moderna de educação, teria sentido discutir-se o local e, no máximo, o regional, não a totalidade, a universalidade.

Na sua ânsia de ordem e controle, a perspectiva social moderna busca elaborar teorias e explicações que sejam as mais abrangentes possíveis, que reúnam num único sistema a compreensão total da estrutura e do funcionamento do universo e do mundo social. [...] o pensamento moderno é [..] adepto das "grandes narrativas", das "narrativas mestras". As "grandes narrativas" são a expressão da vontade de domínio e controle dos modernos. [...]. (SILVA, 2005, p. 112)

Para Silva (2005), a pós-modernidade rejeita incontestavelmente a modernidade, principalmente no que tange à questão da ordem e da imposição de padrões. Mas é preciso lembrar: ainda que neste trabalho esteja-se abordando a realidade por meio da perspectiva pós-moderna, não se quer dizer que ela esteja consolidada ou que a discussão acabou, apenas se deseja, aqui, brevemente, refletir se a cultura que existe hoje regionalmente na Amazônia se identifica com a modernidade ou pós-modernidade. Ainda na definição de Silva (Idem), é possível dizer que

O pós-modernismo não apenas tolera, mas privilegia a mistura, o hibridismo e a mestiçagem – de culturas, de estilos, de modos de vida. O pós-modernismo prefere o local e o contingente ao universal e ao abstrato. O pós-modernismo inclina-se para a incerteza e a dúvida, desconfiando profundamente da certeza e das afirmações categóricas. [...] O pós-modernismo rejeita distinções categóricas e absolutas como a que o modernismo faz entre "alta" e "baixa" cultura. (Id., Ibid., p. 114)

Antes de seguir a discussão, é preciso esclarecer que Silva (2005) não distingue entre pós-modernismo e pós-modernidade, ao passo que, para Eagleton (1998, p. 7), pós-modernismo é:

[...] um estilo de cultura que reflete um pouco essa mudança memorável por meio de uma arte superficial, descentrada, infundada, auto-reflexiva, divertida, caudatária, eclética e pluralista que obscurece as fronteiras entre a cultura 'elitista' e a cultura 'popular'. Bem como entre a arte e a experiência cotidiana.

Para Eagleton (1998), parece ficar claro que pós-modernidade é um período histórico. Aqui, é interessante notar que ele discorda da divisão atual da ciência histórica que chama o mesmo espaço de tempo que a ciência filosófica classifica de pós-modernidade como idade Contemporânea. Aqui, concorda-se com a postura assumida por Eagleton (1998), devido à existência dos dois termos. Então, pode-se afirmar que a cultura amazônica é pós-modernista por sua diversidade e não negação, mas inexistência de metanarrativas científico-filosóficas no que tange aos povos da floresta?

Para Colom (2004, p. 71 et. seq), a pós-modernidade tem ainda outros fatores que lhe garantem identidade, tais como a tecnologia, o surgimento da informática, o fim da história (que a partir de agora fica guardada em "imensos computadores", e, principalmente o relativismo dos valores éticos). Para ele, Descartes (2005) e Kant (2001), se entendidos como representantes da modernidade, perdem seu brilho, pois a pós-modernidade abre espaço para o relativo. Desaparece a totalidade. Nem a ciência, nem a filosofia têm espaço nesse novo tempo, pois nada mais precisa ser absoluto. Não há mais sentido em a moral ser universal se o regional desponta como fundamental.

Colom cita a perspectiva nietzschiana quando afirma a "morte de Deus". Para Colom, essa morte representa também a morte da filosofia, da ciência, da religião, enfim, uma libertação de conceitos metafísicos aos quais, para ele, a modernidade estava atrelada. Se antes, na modernidade, a moral era a da razão universalista kantiana do imperativo categórico, a ciência (como entendia o Iluminismo) viria para salvar a humanidade e garantir o futuro, e a religião a salvação pós-morte do homem, agora o relativismo possibilita não existir nem mesmo um futuro, pois importa o presente. O homem, diz Colom (2004, p. 73), agora está sozinho e precisa confiar nele mesmo. Desaparece o sujeito, desaparece o pensamento, porque não há mais fundamentos. O homem só pode tornar-se relativo porque está imerso na relatividade. Ele compara o homem novo de Nietzsche (1999) ao homem de hoje que precisa se livrar das falácias da razão e do discurso. Dar novo sentido às coisas mesmas, sem a metafísica.

Aqui, discorda-se de Colom (2004), pois quanto a eliminar a metafísica nem Kant (2001) nem Nietzsche (1999) conseguiram cumprir tal missão. Basta lembrar que mesmo o realismo científico mais radical entende que tudo o que o homem conhece não passa de representação da realidade e mesmo a Física representa a natureza por meio da matemática. Representar uma coisa não é dizer a coisa mesma.

Já a ciência[1] perde seu valor, segundo Colom (2004), devido a estar baseada na natureza que aceita outras explicações para seu modo de ser como o mito, o funcionalismo, ou o artístico. Então ciência e mito não estão mais em oposição como na modernidade. A ciência também perde seu grau de neutralidade à medida que se escancara que ela é dirigida para os interesses do homem. Tais argumentos responderiam à pergunta sobre a cultura amazônica ser pós-modernista de forma positiva.

E ele ainda vai mais longe, apontando que a sociedade (que é sistema) analisa a estrutura social acarretando, entre outras coisas, o fim da consciência do passado. Sendo assim, acaba o humanismo moderno. Agora, para estudar a natureza e a sociedade, é preciso dissociá-la do homem que está contaminado pelo subjetivismo devido à axiologia. Observa-se, aqui, outro argumento que apela para metafísica nas idéias de Colom.

As constatações de Colom estão na discussão do mundo acadêmico atual na Europa. De fato, é mais fácil para os povos urbanos brasileiros compreender a Europa quando se manifesta sobre desenvolvimento, pois grandes estados como São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul (industrializados) tentam alcançar os mesmos níveis de produção de alguns países europeus.

A análise de Colom é contundente, mas não deixa de ser reducionista à medida que despreza, por exemplo, a filosofia e a ciência em geral. E por que a filosofia não pode procurar a anti-totalidade? Por que a valorização do mito, necessariamente, desprestigia a ciência? É absurdo pensar que as ciências empírico-formais ou humanas não ofereçam única explicação possível para a realidade? Na pós-modernidade, mito e senso-comum também têm seu valor re-prestigiado. "[...] a ciência pós-moderna sabe que nenhuma forma de conhecimento é, em si mesma, racional; só a configuração de todas elas é racional. Tenta, pois, dialogar com outras formas de conhecimento deixando-se penetrar por elas." (SANTOS, 2003). Não se pode criar nova forma de fazer ciência que seja relativa? E relativa a quê? Pode-se perguntar. Resposta provisória: à história. Mas a história acabou, diz Colom. Por quê? Certamente, não porque a memória da humanidade esteja guardada em grandes computadores ou em livros, pois ainda há a história do cotidiano, das relações pessoais e interpessoais, dos quase sete bilhões de universos particulares que perambulam sobre a terra.

Caso Colom esteja certo e o humanismo moderno morreu, ainda assim não significa a morte da ciência Filosofia e nem das demais, pois elas também têm condição de se repensarem dialeticamente, porque, se todo pensamento humano é filosofia, logo, a pós-modernidade (com o fim do humanismo, como ele afirma), também é uma filosofia (visão de mundo).

A Modernidade, paradoxalmente, como prometia a independência da humanidade em todos os sentidos (técnico, econômico, social) em relação à natureza por meio da produção tecnológica que hoje explora o espaço, se de fato acabou-se, fez o homem de hoje, – pós-moderno? – esbarrar, no meio desse caminho "glorioso" de um futuro promissor, em um obstáculo, uma "herança maldita" moderna (prova de que seu conceito de totalidade era ignorante), a saber: as transformações climáticas que estão causando desastres abissais em zonas cada vez maiores do planeta. Não é novidade que as geleiras estão derretendo aceleradamente e, caso derretam, causará grande destruição. Quem pensa que as armas nucleares podem destruir o globo milhares de vezes e que, por isso, superarão a força da natureza está enganado. A natureza não pode ser controlada.

A questão climática passa pelo Brasil, especificamente pela Amazônia. O mundo inteiro está, desde a Eco-92, discutindo o que se pode fazer para não impedir o crescimento econômico e, ao mesmo, tempo não destruir a natureza. Além disso, a Amazônia, especificamente, contém minerais estratégicos como urânio, manganês, ouro, ferro que têm grande valor comercial. Então, é claro que se trata de uma área de grande interesse nacional e internacional.


2 Contextualizando a Amazônia



Amazônia Legal.
Fonte: www.greenpeace.org
Para Aragón (2005), as expressões Amazônia, pan-Amazônia, Amazônia Sul-Americana, Região Amazônica ou grande Amazônia, compreendem diferentes enfoques, discernimentos e representações espaciais. De forma geral, estes termos definem a maior selva tropical úmida do planeta onde também está o maior rio do mundo em extensão e volume de água do planeta, o Amazonas.

2.1 A Amazônia e o indígena

Amazônida ou amazônico? Índio ou indígena?
O termo "amazônida", de acordo com Ferreira (2004, meio eletrônico), refere-se a "todo aquele que nasceu na Amazônia"; já amazônico "refere-se a tudo aquilo que, independente de ser objeto ou pessoa, pertence à Amazônia". Sendo assim, para efeitos técnicos nesse artigo, adotou-se a palavra amazônida para a discussão sobre a cultura. Geograficamente, a região amazônica é formada pelos estados do Amapá, Pará, Tocantins, Roraima, Amazonas, Acre e Rondônia, sendo esta a maior cobertura florestal do planeta.

Quanto ao termo índio, de acordo com (HECK; PREZIA, 1998, p. 12), o termo índio é um vocábulo equivocado e colonialista, pois remota ao tempo da colonização do Brasil pelos portugueses quinhentistas.
Atualmente os antropólogos afirmam que ser indígena não é uma questão biológica, racial, pois esses critérios são superados. Ser indígena é uma questão cultural que diz respeito às ligações históricas com o passado. [...] indígenas são todos aqueles que se consideram distintos da sociedade nacional, por apresentarem uma ligação histórica com as sociedades pré-colombianas [...] (Idem).

Sendo assim, concorda-se aqui com o abandono do termo "índio" porque este denota algo pejorativo (preguiçoso, hostil), termo criado pelos colonizadores que queriam submeter o indígena a trabalhos forçados quando é impossível isso para a maioria dos grupos.


2.2 Os grupos indígenas no Amapá e no Pará



Mapa do estado do Pará.
De acordo com Gallois e Grupioni (2003), os grupos indígenas da região do Amapá e norte do Pará são: Gallibi Marworno, Palikur, Karipuna, Galibi do Oiapoque, Wajãpi, Aparai, Wyana, Tiriyó, Katxuyana e Zo'é, os quais estão distribuídos em aproximadamente 118 tribos no Amapá e no Pará.

Para as autoras, essas tribos têm uma cosmologia em comum. A crença que compartilham sobre a criação do mundo é de que no início o mundo era espacial e temporalmente indiferenciado.

No começo dos tempos não havia separação entre o plano terrestre e o plano celeste, nem entre os diferentes domínios e espécies do universo. Como explicam os Wajãpi: 'tudo era como a gente', ou seja, a origem de todos os seres é humana, não animal. A separação ocorre no processo de surgimento da humanidade como aponta a tradição oral desse povo, também pode ser entendida como uma 'especiação', ou separação entre 'espécies' de seres. Sendo as etapas que se sucedem após essa separação também recorrentes nas tradições míticas de outros povos da região (GALLOIS e GRUPIONI, 2003, p. 67).

Para esses povos, a origem do mundo está associada à criação do espaço e do tempo. Antes disso, havia a indiferenciação das camadas do universo e a imutabilidade. A mitologia da criação consiste em um herói mítico chamado Janejar ou Kuyuri que no início estava só no mundo e criou a mulher para conceber como esposa. Esse é o pai "primordial" de toda a humanidade, que, segundo a crença, era imperfeita, daí justificar-se que o universo seja destruído e reconstruído permanentemente para que a humanidade chegue à perfeição. Os motivos mais comuns para que o universo seja destruído e reconstruído diversas vezes pode se dá porque a Terra está povoada em excesso, por causa dos conflitos entre os homens ou por falta de um comportamento descente destes.


Outra crença comum é a de que todos os seres que hoje são inanimados já foram animados um dia. Nesse momento que se perde no tempo, todos os seres do mundo viviam num mundo relacional. Homens e animais viviam juntos. Mas os homens eram criadores, portanto, havia ações que os animais não sabiam fazer. Conta a lenda, que um dia, um animal quis provar aos homens que sabia tanto quanto eles e resolveu construir uma casa para dar uma festa, mas a casa fora mal construída e desabou. O animal construtor e os demais animais acharam que o fato de os homens não os terem avisado do perigo de desabamento foi um ato de traição e por isso se refugiaram na floresta, vivendo longe dos homens. Os seres inanimados também já foram humanos, mas desistiram de sê-lo por algum motivo (Ibid., p. 70).

Outro detalhe que chama a atenção é a forma de se organizar socialmente. Para começar, os diferentes povos da região têm calendários dos quais se utilizam para a agricultura e ao qual são agregadas festas religiosas e ritos de passagem da infância para a adolescência e desta para a vida adulta. Um costume em particular pode ser destacado em que, ao contrário da sociedade Ocidental, entre essas tribos geralmente é o marido quem vai morar perto da casa dos sogros. Quanto aos chefes de tribo estes não esperam obediência de seus "subordinados" como espera um chefe político "branco" ou um rei, pois o chefe é, no máximo, considerado o fundador da aldeia, mas sua administração depende de seus atos agradarem a coletividade da tribo. As alianças políticas jamais são construídas à força, mas pela colaboração entre todos. O chefe tem plena consciência de que não subsiste sem a ajuda de todos os membros da comunidade, porque a comunidade não subsiste sem cada um.

Apesar da existência das famílias, todas as aldeias dispõem de espaços que são usados coletivamente como cozinhas e salas especiais para certos rituais religiosos ou sociais. De acordo com Silva: "uma das maneiras pelos quais especialistas costumam conceber os mitos inclui sua definição como narrativas orais". (2004, p. 323-4). Assim, ele contém a história originária de determinado povo, é seu mito fundante. Como qualquer outro povo (gregos e romanos, norte-americanos, alemães, ingleses e os brasileiros) tem seu mito fundante, os povos indígenas também os têm. Por outro lado, para a mesma autora, o mito (no singular) expressa uma linguagem, uma maneira especial de ver o mundo, categorias, conceitos.

A partir disso, percebem-se duas coisas: que uma das características marcantes da concepção mitológica de mundo é o exercício da dialética, pois um indígena mais velho ao contar uma história para um público permite que o público interfira na história, de tal forma o mito nunca é um discurso pronto. Ao contrário, é sempre polissêmico. E, por outro lado, só tem sentido se contado na língua materna (indígena) da mesma forma que alguém que leia grego antigo entenderá muito mais amplamente o universo de Homero em sua Odisséia. O outro ponto a destacar é que, de forma positivista, o Ocidente sempre tende a classificar as culturas como superiores e inferiores. Um erro que a pós-modernidade tenta corrigir, pois nada garante a superioridade de uma cultura sobre outra. Por fim, cabe destacar a noção de tempo que o mito mostra, um "tempo" cíclico de destruição e construção semelhante à noção de tempo do Oriente.


2.3 O indígena e a natureza


Outra categoria de difícil compreensão para o Ocidente é a relação dos povos indígenas com a natureza. Assim como não existe indígena sem sua gente, não existe também indígena sem sua terra, ou sua casa, pois é na terra, na aldeia, na comunidade, que está sua história. No universo indígena, a própria casa faz parte do ser da pessoa indígena. É na terra onde está fincada sua aldeia, que está seu sustento, sua religiosidade, seus mortos que, mesmo mortos, em várias comunidades, ainda fazem parte do cotidiano das pessoas. Além disso, os indígenas, apesar de muitas vezes migrarem e fundarem novas aldeias, uma vez que as terras de suas antigas aglomerações se esgotam para a agricultura ou a caça e a pesca, diminuem: eles têm um modo todo especial de demarcar onde será a nova comunidade. Isso significa que há toda uma "leitura" da realidade (natureza) para demarcar a nova "casa". Outro fato interessante é que em sua organização tem-se claramente a noção do limite de espaço. A maioria das comunidades não tolera mais que trezentos indivíduos em uma aldeia, quando há excedente de pessoas, se funda outra comunidade.

Indígenas da aldeia Waiãpi - Amapá.
Foto: arquivo pessoal da profa. da rede pública
do estado do Amapá
Ronsângela Carvalho Nascimento.


Como afirma Junqueira (2002, p. 79), "privar o índio de sua terra é condená-lo à extinção". E, para Balée (1993, p. 386), "os índios, nunca contribuem para o aumento da poluição na atmosfera."

As sociedades indígenas amazônicas [...] não possuem [...] uma política explícita de conservação, nem associações voluntárias devotadas à preservação da biodiversidade, talvez pela simples razão que suas atividades econômicas nunca as tornaram necessárias. Elas nunca tiveram um Estado. As sociedades-Estado, com suas altas densidades populacionais, elevados índices de consumo energético e tecnologias capazes de transformar os habitat em qualquer parte do planeta sãos as únicas responsáveis pela emergente justificadamente alarmante tendência a grandes depleções bióticas, e não a espécie humana per se. Há ainda esperança; mas talvez apenas enquanto aquelas sociedades não estatais como aquela dos índios amazônicos continuem existir (Idem).

Habitação típica da aldeia Palicur - Amapá.
Foto: arquivo pessoal da profa. da rede pública
do estado do Amapá
Ronsângela Carvalho Nascimento.



Essa passagem pode justificar a atitude dos grupos de defesa da natureza no Ocidente que partem de uma cosmovisão inclusiva e de uma relação de respeito à natureza e não mais de exploração como promulgava a Revolução Industrial. Ainda pensa-se que, quando um indígena não acumula bens nem tem a propriedade privada da terra, isso significa que ele não é trabalhador. Somente quem já teve contato com um povo indígena sabe que a maior parte do dia eles dedicam ao trabalho de subsistência. E isso inclui o trabalho na lavoura, os ritos religiosos, as atividades coletivas de socialização da caça e da pesca. O fabrico de bebidas e remédios. Outro ponto importante a destacar é a ausência de propriedade privada, postura completamente oposta ao capitalismo globalizado. Há ausência total de consumismo. Pode-se ainda acrescentar que na cosmovisão indígena, originalmente, não há prostituição e, apesar da existência de homossexualismo, ninguém é desprezado ou sofre preconceito por isso. O indígena sabe que a vida em comunidade torna-se impossível quando uns têm "tudo" e outros vivem na miséria, outro argumento que mostra que na vida indígena a natureza é mesmo "mãe" e o que ela produz serve para o homem ter uma vida feliz.

Por fim, quem afirma que os indígenas não produziram filosofia, educação, ciência? Os homens descendentes dos colonizadores europeus. Será impossível gerar conhecimento sem fragmentá-lo? Parece que não. Sem querer afirmar que os indígenas estejam numa "idade Média", o medievo europeu cristão subordinava as verdades epistemológicas (ciências empírico-formais quase inexistentes, filosofia) ao mito judaico-cristão. Ainda hoje, a sociedade Ocidental, mesmo com o decréscimo de fiéis nas igrejas, diz-se cristã frente a um Oriente islamizado. Quer dizer, a religião, mesmo sendo criticada por filósofos e sociólogos, na "hora do aperto" serve para identificar (dar identidade) ao Ocidente. Quem é o Ocidente para se afirmar "melhor" que outros povos? Seria a tecnologia critério para isso? Ou a capacidade de destruição em massa? Ou, agora no século XXI, o critério mais primordial, a preservação da natureza? Se for, quem a preserva e quem a entende mais? A sociedade-Estado urbana, ou as sociedades sem Estado, da floresta?

Provisoriamente, pode-se afirmar que as principais conclusões a que se chega  são: 1) Em se considerando a sociedade ocidental dentro de uma perspectiva pós-moderna, a Amazônia com seu contexto regional, local, multicultural, mas, ao mesmo tempo, globalizada pode ser "classificada" como uma manifestação deste tipo de pensamento. 2) É imprescindível que se tenha um respeito aos povos da floresta com suas manifestações culturais, que, ainda, em grande parte, são desconhecidas. Ritos de passagem, forma de organização social, religiosa e etc. Que direito tem o homem "civilizado" de impor suas crenças religiosas ou científicas a estes povos? É esse o mesmo erro que os colonizadores cometeram. Isso é bem diferente de oferecer a medicina (remédios, procedimentos médicos e etc.), pode-se oferecer, mas não se pode obrigar, esse é o princípio básico da dialética. 3) Na atualidade, faz-se mister citar a questão ambiental. Os dados são alarmantes: chuva de granizo em plena floresta (Oiapoque, 2007), tornados no sul do Brasil (2009), inundações na Ásia (2009), derretimento rápido de geleiras (2009).

Os modernos foram ingênuos ao pensar que a natureza se regeneraria pura e simplesmente sem consequências drásticas para os humanos. É certo que a natureza parece seguir um "curso" lógico de estágios. Onde hoje há grandes desertos, um dia houve florestas exuberantes e o homem não estava lá para destruir, mas hoje o homem está e contribui enormemente para isso. Onde está a razão redentora iluminista? A ciência "moderna" trouxe "felicidade" para todos? Por que não se salva a humanidade por meio da compreensão do mito? Poesia? Por que não se "juntam" os cacos do que sobrou do homem moderno no que se chama pós-modernidade? Não se nega aqui o valor da ciência, mas será correto valorizar apenas uma capacidade humana e desvalorizar outras? Somente o tempo poderá confirmar quem está com a razão.


REFERÊNCIAS

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* Professor na Universidade do Estado do Amapá – UEAP. É graduado em filosofia pela Universidade Católica de Pelotas/RS e Mestre em Ciências da Educação pela Universidade Federal de Pelotas/RS. E-mail: filosofodocotidiano@gmail.com
[1] O autor não deixa claro se se refere apenas às ciências empírico-formais.