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domingo, 9 de novembro de 2014

POR UMA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO AMAZÔNICA



GERSON NEI LEMOS SCHULZ*



Artigo publicado originalmente no livro: 
SCHULZ, Gerson N. L. (Org.). 
Educação na Amazônia
São Leopoldo: Oikos, 2010. (P. 11-23).



O primeiro capítulo desta coletânea é um diálogo (pesquisa bibliográfica) entre algumas propostas da filosofia européia e algumas perspectivas culturais possíveis da região amazônica. O método de investigação é o método dialético e a abordagem é crítica. O mote de pesquisa do trabalho é: em que medida os indígenas da região norte do Brasil podem solidificar sua identidade cultural com a contribuição da visão de mundo (filosofia) pós-moderna? Sendo assim, o objetivo principal é conflitar para compreender as relações filosofia/ciência e mito. Secundariamente, levantam-se questionamentos sobre a possibilidade da existência de uma visão de mundo tipicamente amazônica, principalmente a partir da compreensão de mundo dos povos indígenas da região. As principais conclusões foram: as abordagens propostas pelo contexto do mundo pós-moderno acolhem, de modo geral, os povos da Amazônia e suas concepções de mundo (filosofia) por sua própria perspectiva de negação da razão unívoca e evolucionista. O mito, fruto do pensamento indígena pode ser considerado filosofia e garantir a existência de uma educação com forte identidade amazônica, o que implica também que a forma de organização indígena sem a presença da sociedade-Estado pode garantir a preservação efetiva das superfícies florestais na região norte do Brasil.

1 Esclarecendo alguns conceitos

O texto parte de uma pergunta: Existe uma filosofia da educação tipicamente Amazônica? Em outras palavras, "o que significa falar em uma filosofia amazônica?"

Em primeiro plano, é importante definir melhor o termo filosofia e filosofia da educação. Por filosofia, toma-se aqui a seguinte definição

[...] a filosofia não é, de modo algum, uma simples abstração independente da vida. Ela é, ao contrário, a própria manifestação da vida humana e a sua mais alta expressão. Por vezes, através de uma simples atividade prática, outras vezes no fundo de uma metafísica profunda e existencial, mas sempre dentro de uma atividade humana, física ou espiritual, há filosofia [...] (BASBAUM, 1978, p. 21) 

Percebe-se, nesta perspectiva, que a filosofia é tomada pelo autor como uma prática humana, então ela não é algo "morto", mas dinâmico. Não é um conhecimento engessado, mas ativo e serve para criar valores e dirigir condutas. "A filosofia se manifesta ao ser humano como uma forma de entendimento que tanto propicia a compreensão de sua existência, em termos de significado, como lhe oferece um direcionamento para sua ação, um rumo para seguir" (LUCKESI, 1994, p. 23). Se ela não for um rumo a seguir, pelo menos é algo que permite ao homem lutar por ele. Ela estabelece uma organização de mundo que possibilita, consequentemente uma organização de valores, continua Luckesi (Op. Cit.).

Já a filosofia da educação se preocupa com o "[...] educando, quem é, o que deve ser, qual seu papel no mundo; o educador, quem é, qual seu papel no mundo; a sociedade, o que é, o que pretende; qual deve ser a finalidade da ação pedagógica." (LUCKESI, Op. cit., p. 32). Há, aí, íntima relação entre filosofia e educação. O autor também afirma que os filósofos sempre se preocuparam com que suas filosofias (cosmovisão) sejam divulgadas por meio da educação. Pode-se inferir então que não há sentido uma filosofia que não seja discutida entre o grupo que a adota ou propõe, que não seja o resultado de uma coletividade, não seja difundida entre estes mesmos membros que a produziram e se é proposta de um grupo (que é histórico) é também ela, reflexão humana, produção histórica.

Fica claro, pois, que o pensamento humano, seus direcionamentos, seus valores, mudam. Assim, nenhuma proposta deve ser engessada, amarrada e dona da verdade absoluta. Infelizmente, não foram estes os exemplos que as colônias dos países europeus receberam ao longo dos séculos. Por mais de quinhentos anos, África e América tem se "violentado" intelectualmente para servir e concordar com o pensamento europeu preconceituoso. E a forma de pensar européia universalizante, que descambou nos totalitarismos da era colonial e em duas grandes guerras mundiais, oprimiu também a colônia Brasil que não é uma nação formada por pessoas iguais (social e culturalmente falando). Em suma, essa discussão tem por finalidade refletir, tentando banir a hipocrisia ou discursos ressentidos, a existência, ainda hoje, de uma visão de mundo amazônica.

1.1 Modernidade ou Pós-modernidade?

Não se trata aqui de desprezar a filosofia européia nem sua contribuição para o pensamento Ocidental. A crítica referida acima é no sentido de refletir se só é possível fazer-se filosofia na Europa e se se tem que aceitar apenas o que vem dela e acreditar que porque deu certo por lá dará aqui também.

Por ora, tenta-se pensar como, dentro da classificação de modernidade ou pós-modernidade, melhor se enquadraria uma filosofia da educação amazônica. Univocamente, para fins deste trabalho, afirma-se que a filosofia da educação além de delimitar uma postura social também delimita no educador uma postura pessoal. "Mais do que possibilitar um conhecimento teórico sobre a educação, tal estudo forma em nós, educadores, uma postura que permeia toda a prática pedagógica. E essa postura nos induz a uma atitude de reflexão radical diante dos problemas educacionais [...] (GADOTTI, 2005, p. 15-17).

A partir das considerações de Luckesi (1994) e Gadotti (2005), infere-se que, atualmente, a filosofia da educação não pretende ser "doutrina", como queriam a educação em geral racionalista ou romântica (ambas moralistas) eurocêntricas dos séculos XVII, XVIII e XIX. Para justificar tal afirmativa, basta lembrar que os Jesuítas educaram a América luso-espanhola submissa ao pensamento tomista. Por sua vez, o Marques de Pombal, ao expulsar os Jesuítas, substituiu a educação religiosa por uma educação laica com valores iluministas (racionalistas). O mesmo deu-se no século XIX com o Positivismo de Comte. Já hoje, se se adotar uma concepção pós-moderna de educação, teria sentido discutir-se o local e, no máximo, o regional, não a totalidade, a universalidade.

Na sua ânsia de ordem e controle, a perspectiva social moderna busca elaborar teorias e explicações que sejam as mais abrangentes possíveis, que reúnam num único sistema a compreensão total da estrutura e do funcionamento do universo e do mundo social. [...] o pensamento moderno é [..] adepto das "grandes narrativas", das "narrativas mestras". As "grandes narrativas" são a expressão da vontade de domínio e controle dos modernos. [...]. (SILVA, 2005, p. 112)

Para Silva (2005), a pós-modernidade rejeita incontestavelmente a modernidade, principalmente no que tange à questão da ordem e da imposição de padrões. Mas é preciso lembrar: ainda que neste trabalho esteja-se abordando a realidade por meio da perspectiva pós-moderna, não se quer dizer que ela esteja consolidada ou que a discussão acabou, apenas se deseja, aqui, brevemente, refletir se a cultura que existe hoje regionalmente na Amazônia se identifica com a modernidade ou pós-modernidade. Ainda na definição de Silva (Idem), é possível dizer que

O pós-modernismo não apenas tolera, mas privilegia a mistura, o hibridismo e a mestiçagem – de culturas, de estilos, de modos de vida. O pós-modernismo prefere o local e o contingente ao universal e ao abstrato. O pós-modernismo inclina-se para a incerteza e a dúvida, desconfiando profundamente da certeza e das afirmações categóricas. [...] O pós-modernismo rejeita distinções categóricas e absolutas como a que o modernismo faz entre "alta" e "baixa" cultura. (Id., Ibid., p. 114)

Antes de seguir a discussão, é preciso esclarecer que Silva (2005) não distingue entre pós-modernismo e pós-modernidade, ao passo que, para Eagleton (1998, p. 7), pós-modernismo é:

[...] um estilo de cultura que reflete um pouco essa mudança memorável por meio de uma arte superficial, descentrada, infundada, auto-reflexiva, divertida, caudatária, eclética e pluralista que obscurece as fronteiras entre a cultura 'elitista' e a cultura 'popular'. Bem como entre a arte e a experiência cotidiana.

Para Eagleton (1998), parece ficar claro que pós-modernidade é um período histórico. Aqui, é interessante notar que ele discorda da divisão atual da ciência histórica que chama o mesmo espaço de tempo que a ciência filosófica classifica de pós-modernidade como idade Contemporânea. Aqui, concorda-se com a postura assumida por Eagleton (1998), devido à existência dos dois termos. Então, pode-se afirmar que a cultura amazônica é pós-modernista por sua diversidade e não negação, mas inexistência de metanarrativas científico-filosóficas no que tange aos povos da floresta?

Para Colom (2004, p. 71 et. seq), a pós-modernidade tem ainda outros fatores que lhe garantem identidade, tais como a tecnologia, o surgimento da informática, o fim da história (que a partir de agora fica guardada em "imensos computadores", e, principalmente o relativismo dos valores éticos). Para ele, Descartes (2005) e Kant (2001), se entendidos como representantes da modernidade, perdem seu brilho, pois a pós-modernidade abre espaço para o relativo. Desaparece a totalidade. Nem a ciência, nem a filosofia têm espaço nesse novo tempo, pois nada mais precisa ser absoluto. Não há mais sentido em a moral ser universal se o regional desponta como fundamental.

Colom cita a perspectiva nietzschiana quando afirma a "morte de Deus". Para Colom, essa morte representa também a morte da filosofia, da ciência, da religião, enfim, uma libertação de conceitos metafísicos aos quais, para ele, a modernidade estava atrelada. Se antes, na modernidade, a moral era a da razão universalista kantiana do imperativo categórico, a ciência (como entendia o Iluminismo) viria para salvar a humanidade e garantir o futuro, e a religião a salvação pós-morte do homem, agora o relativismo possibilita não existir nem mesmo um futuro, pois importa o presente. O homem, diz Colom (2004, p. 73), agora está sozinho e precisa confiar nele mesmo. Desaparece o sujeito, desaparece o pensamento, porque não há mais fundamentos. O homem só pode tornar-se relativo porque está imerso na relatividade. Ele compara o homem novo de Nietzsche (1999) ao homem de hoje que precisa se livrar das falácias da razão e do discurso. Dar novo sentido às coisas mesmas, sem a metafísica.

Aqui, discorda-se de Colom (2004), pois quanto a eliminar a metafísica nem Kant (2001) nem Nietzsche (1999) conseguiram cumprir tal missão. Basta lembrar que mesmo o realismo científico mais radical entende que tudo o que o homem conhece não passa de representação da realidade e mesmo a Física representa a natureza por meio da matemática. Representar uma coisa não é dizer a coisa mesma.

Já a ciência[1] perde seu valor, segundo Colom (2004), devido a estar baseada na natureza que aceita outras explicações para seu modo de ser como o mito, o funcionalismo, ou o artístico. Então ciência e mito não estão mais em oposição como na modernidade. A ciência também perde seu grau de neutralidade à medida que se escancara que ela é dirigida para os interesses do homem. Tais argumentos responderiam à pergunta sobre a cultura amazônica ser pós-modernista de forma positiva.

E ele ainda vai mais longe, apontando que a sociedade (que é sistema) analisa a estrutura social acarretando, entre outras coisas, o fim da consciência do passado. Sendo assim, acaba o humanismo moderno. Agora, para estudar a natureza e a sociedade, é preciso dissociá-la do homem que está contaminado pelo subjetivismo devido à axiologia. Observa-se, aqui, outro argumento que apela para metafísica nas idéias de Colom.

As constatações de Colom estão na discussão do mundo acadêmico atual na Europa. De fato, é mais fácil para os povos urbanos brasileiros compreender a Europa quando se manifesta sobre desenvolvimento, pois grandes estados como São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul (industrializados) tentam alcançar os mesmos níveis de produção de alguns países europeus.

A análise de Colom é contundente, mas não deixa de ser reducionista à medida que despreza, por exemplo, a filosofia e a ciência em geral. E por que a filosofia não pode procurar a anti-totalidade? Por que a valorização do mito, necessariamente, desprestigia a ciência? É absurdo pensar que as ciências empírico-formais ou humanas não ofereçam única explicação possível para a realidade? Na pós-modernidade, mito e senso-comum também têm seu valor re-prestigiado. "[...] a ciência pós-moderna sabe que nenhuma forma de conhecimento é, em si mesma, racional; só a configuração de todas elas é racional. Tenta, pois, dialogar com outras formas de conhecimento deixando-se penetrar por elas." (SANTOS, 2003). Não se pode criar nova forma de fazer ciência que seja relativa? E relativa a quê? Pode-se perguntar. Resposta provisória: à história. Mas a história acabou, diz Colom. Por quê? Certamente, não porque a memória da humanidade esteja guardada em grandes computadores ou em livros, pois ainda há a história do cotidiano, das relações pessoais e interpessoais, dos quase sete bilhões de universos particulares que perambulam sobre a terra.

Caso Colom esteja certo e o humanismo moderno morreu, ainda assim não significa a morte da ciência Filosofia e nem das demais, pois elas também têm condição de se repensarem dialeticamente, porque, se todo pensamento humano é filosofia, logo, a pós-modernidade (com o fim do humanismo, como ele afirma), também é uma filosofia (visão de mundo).

A Modernidade, paradoxalmente, como prometia a independência da humanidade em todos os sentidos (técnico, econômico, social) em relação à natureza por meio da produção tecnológica que hoje explora o espaço, se de fato acabou-se, fez o homem de hoje, – pós-moderno? – esbarrar, no meio desse caminho "glorioso" de um futuro promissor, em um obstáculo, uma "herança maldita" moderna (prova de que seu conceito de totalidade era ignorante), a saber: as transformações climáticas que estão causando desastres abissais em zonas cada vez maiores do planeta. Não é novidade que as geleiras estão derretendo aceleradamente e, caso derretam, causará grande destruição. Quem pensa que as armas nucleares podem destruir o globo milhares de vezes e que, por isso, superarão a força da natureza está enganado. A natureza não pode ser controlada.

A questão climática passa pelo Brasil, especificamente pela Amazônia. O mundo inteiro está, desde a Eco-92, discutindo o que se pode fazer para não impedir o crescimento econômico e, ao mesmo, tempo não destruir a natureza. Além disso, a Amazônia, especificamente, contém minerais estratégicos como urânio, manganês, ouro, ferro que têm grande valor comercial. Então, é claro que se trata de uma área de grande interesse nacional e internacional.


2 Contextualizando a Amazônia



Amazônia Legal.
Fonte: www.greenpeace.org
Para Aragón (2005), as expressões Amazônia, pan-Amazônia, Amazônia Sul-Americana, Região Amazônica ou grande Amazônia, compreendem diferentes enfoques, discernimentos e representações espaciais. De forma geral, estes termos definem a maior selva tropical úmida do planeta onde também está o maior rio do mundo em extensão e volume de água do planeta, o Amazonas.

2.1 A Amazônia e o indígena

Amazônida ou amazônico? Índio ou indígena?
O termo "amazônida", de acordo com Ferreira (2004, meio eletrônico), refere-se a "todo aquele que nasceu na Amazônia"; já amazônico "refere-se a tudo aquilo que, independente de ser objeto ou pessoa, pertence à Amazônia". Sendo assim, para efeitos técnicos nesse artigo, adotou-se a palavra amazônida para a discussão sobre a cultura. Geograficamente, a região amazônica é formada pelos estados do Amapá, Pará, Tocantins, Roraima, Amazonas, Acre e Rondônia, sendo esta a maior cobertura florestal do planeta.

Quanto ao termo índio, de acordo com (HECK; PREZIA, 1998, p. 12), o termo índio é um vocábulo equivocado e colonialista, pois remota ao tempo da colonização do Brasil pelos portugueses quinhentistas.
Atualmente os antropólogos afirmam que ser indígena não é uma questão biológica, racial, pois esses critérios são superados. Ser indígena é uma questão cultural que diz respeito às ligações históricas com o passado. [...] indígenas são todos aqueles que se consideram distintos da sociedade nacional, por apresentarem uma ligação histórica com as sociedades pré-colombianas [...] (Idem).

Sendo assim, concorda-se aqui com o abandono do termo "índio" porque este denota algo pejorativo (preguiçoso, hostil), termo criado pelos colonizadores que queriam submeter o indígena a trabalhos forçados quando é impossível isso para a maioria dos grupos.


2.2 Os grupos indígenas no Amapá e no Pará



Mapa do estado do Pará.
De acordo com Gallois e Grupioni (2003), os grupos indígenas da região do Amapá e norte do Pará são: Gallibi Marworno, Palikur, Karipuna, Galibi do Oiapoque, Wajãpi, Aparai, Wyana, Tiriyó, Katxuyana e Zo'é, os quais estão distribuídos em aproximadamente 118 tribos no Amapá e no Pará.

Para as autoras, essas tribos têm uma cosmologia em comum. A crença que compartilham sobre a criação do mundo é de que no início o mundo era espacial e temporalmente indiferenciado.

No começo dos tempos não havia separação entre o plano terrestre e o plano celeste, nem entre os diferentes domínios e espécies do universo. Como explicam os Wajãpi: 'tudo era como a gente', ou seja, a origem de todos os seres é humana, não animal. A separação ocorre no processo de surgimento da humanidade como aponta a tradição oral desse povo, também pode ser entendida como uma 'especiação', ou separação entre 'espécies' de seres. Sendo as etapas que se sucedem após essa separação também recorrentes nas tradições míticas de outros povos da região (GALLOIS e GRUPIONI, 2003, p. 67).

Para esses povos, a origem do mundo está associada à criação do espaço e do tempo. Antes disso, havia a indiferenciação das camadas do universo e a imutabilidade. A mitologia da criação consiste em um herói mítico chamado Janejar ou Kuyuri que no início estava só no mundo e criou a mulher para conceber como esposa. Esse é o pai "primordial" de toda a humanidade, que, segundo a crença, era imperfeita, daí justificar-se que o universo seja destruído e reconstruído permanentemente para que a humanidade chegue à perfeição. Os motivos mais comuns para que o universo seja destruído e reconstruído diversas vezes pode se dá porque a Terra está povoada em excesso, por causa dos conflitos entre os homens ou por falta de um comportamento descente destes.


Outra crença comum é a de que todos os seres que hoje são inanimados já foram animados um dia. Nesse momento que se perde no tempo, todos os seres do mundo viviam num mundo relacional. Homens e animais viviam juntos. Mas os homens eram criadores, portanto, havia ações que os animais não sabiam fazer. Conta a lenda, que um dia, um animal quis provar aos homens que sabia tanto quanto eles e resolveu construir uma casa para dar uma festa, mas a casa fora mal construída e desabou. O animal construtor e os demais animais acharam que o fato de os homens não os terem avisado do perigo de desabamento foi um ato de traição e por isso se refugiaram na floresta, vivendo longe dos homens. Os seres inanimados também já foram humanos, mas desistiram de sê-lo por algum motivo (Ibid., p. 70).

Outro detalhe que chama a atenção é a forma de se organizar socialmente. Para começar, os diferentes povos da região têm calendários dos quais se utilizam para a agricultura e ao qual são agregadas festas religiosas e ritos de passagem da infância para a adolescência e desta para a vida adulta. Um costume em particular pode ser destacado em que, ao contrário da sociedade Ocidental, entre essas tribos geralmente é o marido quem vai morar perto da casa dos sogros. Quanto aos chefes de tribo estes não esperam obediência de seus "subordinados" como espera um chefe político "branco" ou um rei, pois o chefe é, no máximo, considerado o fundador da aldeia, mas sua administração depende de seus atos agradarem a coletividade da tribo. As alianças políticas jamais são construídas à força, mas pela colaboração entre todos. O chefe tem plena consciência de que não subsiste sem a ajuda de todos os membros da comunidade, porque a comunidade não subsiste sem cada um.

Apesar da existência das famílias, todas as aldeias dispõem de espaços que são usados coletivamente como cozinhas e salas especiais para certos rituais religiosos ou sociais. De acordo com Silva: "uma das maneiras pelos quais especialistas costumam conceber os mitos inclui sua definição como narrativas orais". (2004, p. 323-4). Assim, ele contém a história originária de determinado povo, é seu mito fundante. Como qualquer outro povo (gregos e romanos, norte-americanos, alemães, ingleses e os brasileiros) tem seu mito fundante, os povos indígenas também os têm. Por outro lado, para a mesma autora, o mito (no singular) expressa uma linguagem, uma maneira especial de ver o mundo, categorias, conceitos.

A partir disso, percebem-se duas coisas: que uma das características marcantes da concepção mitológica de mundo é o exercício da dialética, pois um indígena mais velho ao contar uma história para um público permite que o público interfira na história, de tal forma o mito nunca é um discurso pronto. Ao contrário, é sempre polissêmico. E, por outro lado, só tem sentido se contado na língua materna (indígena) da mesma forma que alguém que leia grego antigo entenderá muito mais amplamente o universo de Homero em sua Odisséia. O outro ponto a destacar é que, de forma positivista, o Ocidente sempre tende a classificar as culturas como superiores e inferiores. Um erro que a pós-modernidade tenta corrigir, pois nada garante a superioridade de uma cultura sobre outra. Por fim, cabe destacar a noção de tempo que o mito mostra, um "tempo" cíclico de destruição e construção semelhante à noção de tempo do Oriente.


2.3 O indígena e a natureza


Outra categoria de difícil compreensão para o Ocidente é a relação dos povos indígenas com a natureza. Assim como não existe indígena sem sua gente, não existe também indígena sem sua terra, ou sua casa, pois é na terra, na aldeia, na comunidade, que está sua história. No universo indígena, a própria casa faz parte do ser da pessoa indígena. É na terra onde está fincada sua aldeia, que está seu sustento, sua religiosidade, seus mortos que, mesmo mortos, em várias comunidades, ainda fazem parte do cotidiano das pessoas. Além disso, os indígenas, apesar de muitas vezes migrarem e fundarem novas aldeias, uma vez que as terras de suas antigas aglomerações se esgotam para a agricultura ou a caça e a pesca, diminuem: eles têm um modo todo especial de demarcar onde será a nova comunidade. Isso significa que há toda uma "leitura" da realidade (natureza) para demarcar a nova "casa". Outro fato interessante é que em sua organização tem-se claramente a noção do limite de espaço. A maioria das comunidades não tolera mais que trezentos indivíduos em uma aldeia, quando há excedente de pessoas, se funda outra comunidade.

Indígenas da aldeia Waiãpi - Amapá.
Foto: arquivo pessoal da profa. da rede pública
do estado do Amapá
Ronsângela Carvalho Nascimento.


Como afirma Junqueira (2002, p. 79), "privar o índio de sua terra é condená-lo à extinção". E, para Balée (1993, p. 386), "os índios, nunca contribuem para o aumento da poluição na atmosfera."

As sociedades indígenas amazônicas [...] não possuem [...] uma política explícita de conservação, nem associações voluntárias devotadas à preservação da biodiversidade, talvez pela simples razão que suas atividades econômicas nunca as tornaram necessárias. Elas nunca tiveram um Estado. As sociedades-Estado, com suas altas densidades populacionais, elevados índices de consumo energético e tecnologias capazes de transformar os habitat em qualquer parte do planeta sãos as únicas responsáveis pela emergente justificadamente alarmante tendência a grandes depleções bióticas, e não a espécie humana per se. Há ainda esperança; mas talvez apenas enquanto aquelas sociedades não estatais como aquela dos índios amazônicos continuem existir (Idem).

Habitação típica da aldeia Palicur - Amapá.
Foto: arquivo pessoal da profa. da rede pública
do estado do Amapá
Ronsângela Carvalho Nascimento.



Essa passagem pode justificar a atitude dos grupos de defesa da natureza no Ocidente que partem de uma cosmovisão inclusiva e de uma relação de respeito à natureza e não mais de exploração como promulgava a Revolução Industrial. Ainda pensa-se que, quando um indígena não acumula bens nem tem a propriedade privada da terra, isso significa que ele não é trabalhador. Somente quem já teve contato com um povo indígena sabe que a maior parte do dia eles dedicam ao trabalho de subsistência. E isso inclui o trabalho na lavoura, os ritos religiosos, as atividades coletivas de socialização da caça e da pesca. O fabrico de bebidas e remédios. Outro ponto importante a destacar é a ausência de propriedade privada, postura completamente oposta ao capitalismo globalizado. Há ausência total de consumismo. Pode-se ainda acrescentar que na cosmovisão indígena, originalmente, não há prostituição e, apesar da existência de homossexualismo, ninguém é desprezado ou sofre preconceito por isso. O indígena sabe que a vida em comunidade torna-se impossível quando uns têm "tudo" e outros vivem na miséria, outro argumento que mostra que na vida indígena a natureza é mesmo "mãe" e o que ela produz serve para o homem ter uma vida feliz.

Por fim, quem afirma que os indígenas não produziram filosofia, educação, ciência? Os homens descendentes dos colonizadores europeus. Será impossível gerar conhecimento sem fragmentá-lo? Parece que não. Sem querer afirmar que os indígenas estejam numa "idade Média", o medievo europeu cristão subordinava as verdades epistemológicas (ciências empírico-formais quase inexistentes, filosofia) ao mito judaico-cristão. Ainda hoje, a sociedade Ocidental, mesmo com o decréscimo de fiéis nas igrejas, diz-se cristã frente a um Oriente islamizado. Quer dizer, a religião, mesmo sendo criticada por filósofos e sociólogos, na "hora do aperto" serve para identificar (dar identidade) ao Ocidente. Quem é o Ocidente para se afirmar "melhor" que outros povos? Seria a tecnologia critério para isso? Ou a capacidade de destruição em massa? Ou, agora no século XXI, o critério mais primordial, a preservação da natureza? Se for, quem a preserva e quem a entende mais? A sociedade-Estado urbana, ou as sociedades sem Estado, da floresta?

Provisoriamente, pode-se afirmar que as principais conclusões a que se chega  são: 1) Em se considerando a sociedade ocidental dentro de uma perspectiva pós-moderna, a Amazônia com seu contexto regional, local, multicultural, mas, ao mesmo tempo, globalizada pode ser "classificada" como uma manifestação deste tipo de pensamento. 2) É imprescindível que se tenha um respeito aos povos da floresta com suas manifestações culturais, que, ainda, em grande parte, são desconhecidas. Ritos de passagem, forma de organização social, religiosa e etc. Que direito tem o homem "civilizado" de impor suas crenças religiosas ou científicas a estes povos? É esse o mesmo erro que os colonizadores cometeram. Isso é bem diferente de oferecer a medicina (remédios, procedimentos médicos e etc.), pode-se oferecer, mas não se pode obrigar, esse é o princípio básico da dialética. 3) Na atualidade, faz-se mister citar a questão ambiental. Os dados são alarmantes: chuva de granizo em plena floresta (Oiapoque, 2007), tornados no sul do Brasil (2009), inundações na Ásia (2009), derretimento rápido de geleiras (2009).

Os modernos foram ingênuos ao pensar que a natureza se regeneraria pura e simplesmente sem consequências drásticas para os humanos. É certo que a natureza parece seguir um "curso" lógico de estágios. Onde hoje há grandes desertos, um dia houve florestas exuberantes e o homem não estava lá para destruir, mas hoje o homem está e contribui enormemente para isso. Onde está a razão redentora iluminista? A ciência "moderna" trouxe "felicidade" para todos? Por que não se salva a humanidade por meio da compreensão do mito? Poesia? Por que não se "juntam" os cacos do que sobrou do homem moderno no que se chama pós-modernidade? Não se nega aqui o valor da ciência, mas será correto valorizar apenas uma capacidade humana e desvalorizar outras? Somente o tempo poderá confirmar quem está com a razão.


REFERÊNCIAS

ARAGÓN, Luis E. Até onde vai a Amazônia e qual é sua população? In: ARAGÓN, Luis E. (Org). Populações da Pan-Amazônia. Belém: Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, 2005.
BASBAUM, Leôncio. Sociologia do materialismo. 3. ed. São Paulo: Símbolo, 1978.
BALÉE, Willian. Biodiversidade e os Índios Amazônicos. In: CASTRO, Eduardo Viveiros de; CUNHA, Manuela Carneiro da. (Orgs.). Amazônia Etnologia e História Indígena. São Paulo: USP/Fapesp, 1993. (P. 385-393)
COLOM, Antonio J. A (Des) Construção do Conhecimento Pedagógico: novas perspectivas para a educação. Porto Alegre: Artmed, 2004.
DESCARTES, René. Discurso do Método. Porto Alegre: L&PM, 2005.
EAGLETON, Terry. As Ilusões do Pós-modernismo. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1998.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Eletrônico. 3. ed. Curitiba: Positivo, 2004.
GADOTTI, Moacir. História das Idéias Pedagógicas. 8. ed. São Paulo: Ática, 2005.
GALLOIS, Dominique Tilkin; GRUPIONI, Denise Fajardo. Povos Indígenas no Amapá e Norte do Pará: quem são, onde estão, quantos são, como vivem e o que pensam? São Paulo: Iepé, 2003.
HECK, Egon; PREZIA, Benedito. Povos Indígenas: Terra é Vida. São Paulo: Atual, 1998.
JUNQUEIRA, Carmem. Antropologia Indígena: introdução. São Paulo: Educ, 2002.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. 5. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001.
LUCKESI, Antonio Carlos. Filosofia da Educação. São Paulo: Cortez, 1994.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. São Paulo: Martin Claret, 1999.
SANTOS, Boaventura de Souza. Um Discurso sobre as Ciências. São Paulo, Cortez, 2003.
SILVA, Aracy Lopes da; Grupioni, Luís Donisete Benzi. A Temática Indígena na Escola: novos subsídios para professores de 1° e 2° graus. 4. e.d. São Paulo/Brasília: Global/MEC, 2004.
SILVA, Tomas Tadeu da. Documentos de indentidade: uma introdução às teorias do currículo. 2. ed. Autêntica: 2005.





* Professor na Universidade do Estado do Amapá – UEAP. É graduado em filosofia pela Universidade Católica de Pelotas/RS e Mestre em Ciências da Educação pela Universidade Federal de Pelotas/RS. E-mail: filosofodocotidiano@gmail.com
[1] O autor não deixa claro se se refere apenas às ciências empírico-formais.

sábado, 20 de setembro de 2014

NA PÓS-MODERNIDADE MEU "PRÓXIMO" É "NINGUÉM"

Prof. Gerson Schulz



Em termos de tempo histórico, posso afirmar que a Modernidade, filosoficamente falando, nasce com Descartes (1596-1650) que dá os pressupostos do método científico. Ele, fascinado pelo funcionamento do relógio mecânico – invento à sua época uma novidade – tenta, levando ao máximo as idéias platônicas de separação entre corpo e alma e afirmando que somente esta pode chegar às verdades eternas, estabelecer um caminho seguro para o conhecimento absoluto.

René Descartes
Apesar de vários filósofos modernos penderem ao ateísmo, o cristianismo não desapareceu no mundo moderno. Por volta de 1517 houve a Reforma Protestante organizada especialmente por Lutero (1483-1546) na Alemanha. Com ela, rompeu-se com o catolicismo romano e surgiu uma versão "liberal" do cristianismo com menor poder aos sacerdotes, menos importância para a instituição igreja e mais destaque para a subjetividade, pois no protestantismo não se precisava tanto do padre para interpretar as escrituras, elas eram "debatidas" nos cultos entre as pessoas, discutidas, avaliadas sobre o que de interessante as passagens dos textos bíblicos podiam apresentar para o crente em sua vida cotidiana e o que tais práticas implicavam para cada indivíduo escatologicamente.

Saiba mais sobre o mundo moderno clicando aqui:

https://www.youtube.com/watch?v=dUmyg4fJqaY

https://www.youtube.com/watch?v=LPJOk4f-vHA


Na modernidade também se acreditava no poder das grandes metanarrativas. Positivismo, cristianismo, socialismo, razão, a objetividade da ciência, a racionalidade da filosofia. Essas crenças ofereciam respostas racionais para grandes questões da humanidade, norteavam a vida das sociedades política, econômica e materialmente.

Em termos de economia, pensava-se que o capitalismo (que defendia a legitimidade da propriedade privada) traria a todos (desde que fossem suficientemente competentes para trabalhar e poupar, e inteligentes para investir) as benesses do mundo desenvolvido: os caros confortos tecnológicos como a energia elétrica, os transportes a vapor (mais rápidos que os cavalos), o carro particular a gasolina, as viagens de avião, sem falar no prazer de ter dinheiro pelo prazer de tê-lo. Mas isso era uma ilusão. E era uma ilusão porque se todos tivessem acesso a essas coisas, elas faltariam! Seria impossível manter o abastecimento de gasolina, de energia. Caso todos tivessem carros, ninguém sairia de sua casa porque não haveria combustível nem ruas suficientes para tal.

Por outro lado, surgiu a metanarrativa do socialismo e do comunismo denunciando que o capitalismo era um ato de exploração de poucos sobre muitos. Que na lógica capitalista poucas pessoas tinham as reais condições de enriquecer, e mais, diziam essas metanarrativas que aqueles que eram ricos tinham roubado de outros tantos o dinheiro que acumulavam. Entre outras coisas os socialismos e comunismos diziam que se os trabalhadores tomassem "consciência" de sua situação de explorados, eles perceberiam que tomar o poder (mesmo pela violência) seria a única saída para se "libertar" da exploração dos patrões – proprietários da grande indústria e comércio.


Karl Marx



Então o Estado, na visão de Karl Marx (1818-1883), que era controlado pela classe dominante – chamada por ele de burguesia – passaria ao controle do proletariado organizado. Eliminar-se-iam todas as classes sociais. As riquezas geradas pelas atividades humanas seriam distribuídas entre todos de acordo com seu trabalho e necessidade, com prioridade aos mais pobres.

Marx postulou (e acertou) sobre as crises cíclicas do modelo capitalista. E em 1914 houve uma grave crise não só econômica, mas também humana, a Primeira Guerra Mundial. Várias nações europeias entraram em conflito por motivos político-econômicos. Finda em 1918, restou à Europa se reconstruir com a ajuda de um país que era ex-colônia da outrora superpotência mundial – Inglaterra –, os Estados Unidos da América.

Desenho alusivo a Lênin
Em 1917, na Rússia czarista, estoura uma guerra civil liderada por Vladimir Ilyitch Uliánov – Lênin (1870-1924). Ele propugna implantar o socialismo marxista na Rússia. Abolir as classes sociais, dividir as riquezas, estatizar todos os meios de produção como as terras, as fábricas e grandes empresas de comércio. De fato, a revolução ocorre e surge a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS – que dura perto de setenta anos e se espalha pelo Leste europeu e por países satélites fora da Europa. Assim como o capitalismo gera suas crises econômicas e, em função delas, humanas como desemprego, baixos salários, fome para alguns e morte para outros, o sistema soviético não conseguiu cumprir suas promessas. A experiência russa faliu em 1991 pelo excesso de burocracia, pelo excesso de folha de pagamento, pela má gestão dos recursos públicos, pela falta de liberdade de expressão individual imposta pelo regime ditatorial soviético e em todos os países que implantaram o socialismo, cujos governos não aceitavam críticas ao sistema e que prendeu e exilou vários cidadãos por fazê-las ou fuzilou outros tantos sob o pouco claro título de "inimigos do povo". Também faliu devido à impossibilidade de concorrer tecnologicamente com o Ocidente, fato que sempre causou escassez de bens de consumo na União Soviética como papel, metais, louças e comidas e bebidas.

Também não se cumpriu na União Soviética a promessa socialista (nem na China, no Camboja, no Vietnã, na Coréia do Norte ou em Cuba) de mudar – dentro de determinado espaço de tempo – para o comunismo que seria, segundo Marx, o fim do Estado, o fim total das classes sociais, estágio da economia plenamente planificada.

Marx afirmava que o capitalismo faliria porque os trabalhadores se dariam conta que eram explorados, mas Marx errou e o capitalismo permaneceu. Ele também afirmava que o socialismo aconteceria na nação mais desenvolvida do planeta, aí ele também errou. A revolução se deu na Rússia czarista que vivia o feudalismo, nem havia ainda desenvolvido fábricas e comércio suficientes para se anunciar grande capitalista.

Adolf Hitler
Em 1929 deu-se outra crise capitalista, a quebra da Bolsa de Valores de New York que levou à falência muitos capitalistas e foi uma das causas da Segunda Guerra Mundial que se iniciou em 1939 e findou em 1945. Embora vários historiadores como Eric Hobsbawm (1917-2012) tenham descrito com precisão as diferenças entre as ideologias das nações em guerra (nazismo, fascismo, socialismo) não se pode dizer que essa guerra não tivesse a economia como pano de fundo, pois a Alemanha nazista (cujo regime se baseava na raça das pessoas) era capitalista e buscava se desenvolver tanto mais que as outras nações capitalistas como a Inglaterra, a França ou os Estados Unidos da América. A Itália fascista (regime ditatorial) também era capitalista tanto quanto os demais. E mesmo a União Soviética (socialista) não hesitou em entrar em acordo com a Alemanha de Adolf Hitler (1889-1945) para ocupar a Polônia e dividi-la ao meio com as forças nazistas, exercendo assim nada mais que a típica prática capitalista de expansão de territórios que nem se pode dizer "invenção do capitalismo", pois esta já era comum desde o mundo antigo greco-romano que não era capitalista.

A União Soviética não apresentou novidades em termos políticos quanto as suas relações exteriores, pois financiou "revoluções" mundo afora se jogando em uma disputa (bem comum ao pré-capitalismo) para assegurar territórios satélites.

Bandeira da antiga União Soviética

Finda a Segunda Guerra – com a deflagração de duas bombas atômicas sobre o Japão – surgiram na filosofia autores como David Harvey (1935), Jean-Francoise Lyotard (1924-1998), Eric Hobsbawm e outros que passaram a defender a tese que diz que a Modernidade tinha falido junto com suas guerras justamente porque não conseguira cumprir suas promessas de autonomia, de consciência humana, de justiça para todos, igualdade e fraternidade entre os homens. Mas não só o capitalismo havia falhado, também as promessas socialistas falharam, pois se sabia a cada dia entre 1945 e 1970 as atrocidades cometidas pelas ditaduras socialistas.

Deflagração da bomba atômica


A crítica socialista de falta de igualdade econômica nos países capitalistas era rebatida pelos exemplos das democracias modernas como Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha Ocidental (do pós-guerra), Itália, França e pela produção de riquezas nesses países que contrastava com a pobreza dos países socialistas, incluindo a União Soviética. A falta de liberdade nos países sob o socialismo culminou com a construção – em 1961 – do Muro de Berlim para impedir a fuga para o lado ocidental de cidadãos que viviam no lado oriental – socialista.

A esse período de bipolaridade entre países capitalistas e comunistas, suas guerras ideológicas, de exploração econômica ampliada pelas potências do Globo, chamou-se "guerra fria", algo novo em relação à Modernidade, por isso este é um dos argumentos que alega que a guerra entre dois grandes blocos econômicos não é mais "coisa" dos modernos, então já é outro período, é a Pós-modernidade. 

O período pós-moderno se distingue dos outros porque é a era da bomba atômica e da possibilidade da guerra nuclear em que poucos países – os que têm a bomba atômica – podem aniquilar-se e destruir todo o resto da população mundial. A pós-modernidade é o período em que as ideologias modernas entram em crise. O capitalismo – cujas promessas se sabe não se cumpriram – é desacreditado, mas também o socialismo é desacreditado por não ter cumprido suas promessas. O mundo desacredita da força da política diante de qualquer mudança social e deixa um antigo critério moderno guiar boa parte de suas ações, o jogo econômico dos mercados. Os governos não se preocupam com outra coisa a não ser em garantir a liberdade dos mercados apostando que, assim, garantirão a dinâmica social do emprego para a maioria, do pagamento de salários e o "moto perpétuo" do sistema de compra e venda de mercadorias. Com o fim da União Soviética e vários de seus países satélites, todos os países são, agora, capitalistas. Mesmo China ou Cuba – que na teoria são socialistas – na prática são capitalistas, vendendo e comprando dos países capitalistas e produzindo riquezas a expensas de trabalho semi-escravo em seus territórios praticamente inacessíveis às instituições internacionais como a Organização das Nações Unidas.

Na Pós-modernidade são deixadas de lado ideias como "igualdade", "justiça social", "distribuição de riquezas para os mais pobres" (ao menos pelos governos e a maior parte da população mundial dos países desenvolvidos) e se admite que o único parâmetro de prosperidade, riqueza e felicidade é o capitalismo e suas benesses. O ato de ter dinheiro é extremamente importante para a maioria das pessoas não só para comprar mercadorias e serviços, mas para trabalhar em atividades menos insalubres e por menos tempo, para gozar mais tempo de ócio possível. Ser consumista se torna parte do conjunto de felicidade geral da maioria das pessoas.

Um pós-moderno não se preocupa com o dia de amanhã (grosso modo) como fazia um moderno que pensava na aposentadoria. O pós-moderno sabe que dificilmente se aposentará porque a expectativa de vida aumentou, porque hoje a idade além dos sessenta anos é muito produtiva ainda. A Pós-modernidade não quer saber de verdades eternas – como queriam Platão (427-347 A.C), Aristóteles (384-322 A.C), Agostinho (354-430), Tomás de Aquino (1225-1274), Descartes. Nem se existe ou não uma "alma imortal" em nosso corpo que sobreviva a morte. O que realmente importa é agora. O deus de Israel foi compactado ao âmbito da fé e perece diante da razão, desconstruído por Feuerbach (1804-1872), Marx, Nietzsche (1844-1900), Freud (1856-1939). Restam apenas sombras dele que se dilui nas várias seitas cristãs que se difundem por aí.

Zygmunt Bauman


As bases culturais do Ocidente: religião judaico-cristã e filosofia grega se dissolvem rapidamente. A massa de desempregados atira-se cada vez mais a qualquer subemprego para sobreviver não mais se preocupando com o suposto conceito de "luta de classes". – Quem tem 'consciência' de classe hoje em dia? Quem, precisando de comida para os filhos, vai recusar emprego por mais miserável que seja o salário?

A velha moral ocidental (antigamente assegurada sob as barbas do deus hebreu e do medo que os fiéis em geral tinham das autoridades da igreja) reduziu-se a guetos de mentes geralmente religiosas que pensam que escatologicamente somente eles serão salvos. A ética é reinventada por cada um a seu bel prazer e necessidade. A sociedade virou uma miscelânea de idéias anarquistas, capitalistas, socialistas, comunitaristas, alternativas (New Age), fanáticas religiosas e fascistas. Alguém pode se declarar comunista e cristão ao mesmo tempo sem ver qualquer incoerência nisso como viam os modernos. Uma jovem de classe média alta pode vestir-se tranquilamente com jeans rasgado de marca cara e isso nada tem que ver com as causas do movimento punk inglês dos anos sessenta que usava tais roupas rasgadas para protestar contra as fábricas insalubres em que seus pais trabalhavam e os baixos salários pagos por elas.

Todos os discursos querem se validar diante da opinião pública e o critério para isso é sua aprovação popular nas mídias, nas redes sociais. A imprensa e suas ideias se mantêm no ar ou no papel do jornal graças ao poder dos grandes grupos econômicos que as sustentam até que as interesse. A verdade é o que se quer, o que seja útil. Um comentarista de telejornal pode mudar de discurso no minuto seguinte se o que ele disse não agradou aos patrocinadores ou ao grande público e as pessoas pouco acharão isso estranho!

A grande indústria virou mega fábrica de conglomerados. A prestação de serviços é a "onda" do momento e em seu entorno se apinham as massas dos "fora da moda" tentando receber alguma atenção da mídia. O capitalismo turbinado ('ultrasselvagem') está tão encravado nas mentes dos cidadãos que até mesmo suas relações pessoais (sexuais, afetivas) baseiam-se em suas relações comerciais (há pessoas que se acham felizes apenas se seu número de parceiros sexuais for tanto quanto sua conta bancária).

Immanuel Kant
O liberalismo clássico trouxe uma noção moderna de liberdade "o homem como autor de seu próprio destino". Immanuel Kant (1724-1804) legitimou com a subjetividade esta liberdade. Ele afirmou: "Age de tal forma que tua ação possa ser norma universal."  Mas na Pós-modernidade qualquer coisa pode ser norma universal desde que satisfaça a vontade do indivíduo. ...Ah, matar não pode!... Mas os crimes passionais e tiroteios em escolas têm aumentado, e os linchamentos no Brasil também, além dos casos de jovens incendiando índios e mendigos para se divertir, e isso segue sob os olhos da incapacidade da Justiça brasileira, então matar, na prática...

Na Pós-modernidade o homem e a mulher "politizados" se diluíram. Estão passivos em frente às notícias "enlatadas" da TV. Às ações unilaterais de governos que não os consultam. À pseudodemocracia que está bem longe do alcance real da população porque só referenda o que as aristocracias desejam, fundando o governo plutocrático. Mas também nenhuma pessoa que viva na miséria quer o fim do capitalismo. E não quer porque o capitalismo faz algo que o socialismo não pode fazer, manter o sonho de enriquecer sempre aceso. No mundo socialista não se pode enriquecer, no capitalismo sabe-se que a maioria nunca enriquecerá, porém, na prática todos estão concorrendo e mesmo aquele que nada tem, pode jogar na loteria e, de repente, ficar milionário.

Alguns grandes conglomerados capitalistas podem decidir os destinos de alguns milhões de pessoas visto que suas receitas superam em muito a de vários países pobres. Vários são os políticos que ajoelham o Estado ao mercado de capitais. Acabou-se com o Welfire State pensando que financiar os mercados traria mais felicidade para a civilização, o preço é que hoje o Estado faz parte do mercado. As massas de miseráveis estão excluídas do emprego (e hoje não são mais reserva de mercado, são excluídas mesmo) porque não interessa dar emprego para eles já que a tecnologia suplanta, inevitavelmente, os empregos. Há máquinas que trabalham vinte e quatro horas. Mas se enganam aquelas pessoas do "clubinho socialista de fim de semana" que acreditam que o desemprego estrutural neoliberal é por acaso, não é. É preciso, para os capitalistas, que haja gente miserável, quem se submeteria aos trabalhos mais insalubres quando os capitalistas precisam? É preciso até mesmo para aqueles que se dizem "socialistas" ou "comunistas" que os miseráveis continuem a existir, pois quem cataria o lixo que todos nós produzimos? Quem varreria nossas ruas? Quem limparia nossos esgotos? A resposta são eles, aqueles que diferentemente de nós não têm acesso a um computador para ler este texto, a uma sala de aula de universidade. São os miseráveis que limpam a lata de lixo no quarto do hospital de quem pode pagar pelo plano de saúde. Os miseráveis são importantes para o mercado, pois as demandas deles (porque tem baixo poder aquisitivo) não compram o que as pessoas mais abastadas podem comprar, mas movimenta o mercado de usados e semi-novos que nós descartamos. Até os miseráveis, ao gosto de Auguste Comte (1798-1857), têm seu lugar neste mundo.

Hoje (se comparada ao passado) a liberdade existe, mas continua não sendo para todos; pois só podem tê-la os que têm condições de comprá-la; ela também é um produto? Daqueles como a Coca-Cola da qual ninguém precisa para viver e é extremamente doce e cujo consumo pode causar obesidade, mas que graças à propaganda que faz parecer indispensável, muitos não vivem sem?




Na Pós-modernidade os heróis são não mais aqueles que conseguem "aniquilar o sistema", são os que conseguem enriquecer com ele, estes são os exemplos a seguir. Na modernidade, para um socialista ou comunista, o herói era aquele que lutava pela revolução social – algo que não passava de uma utopia romântica. E para o liberal "burguês" o herói era aquele que garantia a propriedade privada, que demonstrava a importância quase sagrada (senão sagrada para ele) da propriedade privada. Agora quem é o herói? Não importa o que ele pregue, importa o número de seguidores dele no twiter, no Facebook, o número de livros ou músicas que consegue vender ou o número da audiência nos programas de TV aonde é convidado a dar entrevistas. Diz Zygmunt Bauman (1925) em "Amor Líquido" que hoje se pode medir o sucesso de uma pessoa pelo número de presentes ao seu enterro e eu acrescento: também pelo número de câmeras de emissoras de mídia ali presentes.

Em meio a tudo isso ainda posso perguntar: "quem é meu próximo?"

Disse Jesus: "Certo homem descia de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos dos salteadores que, depois de o despojarem e encherem de pancadas, o abandonaram, deixando-o meio morto. Por coincidência, descia por aquele caminho um sacerdote que, ao vê-lo, passou ao largo. Do mesmo modo, também um levita passou por aquele lugar e, ao vê-lo, passou adiante. Mas um samaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dele e, vendo-o, encheu-se de compaixão... Qual destes três parece ter sido o próximo daquele homem que caiu nas mãos dos salteadores?" Respondeu: "O que usou de misericórdia para com ele". Jesus retorquiu: "Vai e faz tu também o mesmo" (LUCAS, 10, 29-37).



Paul Ricoeur
Essa passagem é literariamente tão curiosa que já suscitou comentários de autores famosos como Paul Ricoeur (1913-2005). Não se pode negar que para muitos ela ainda tem algum sentido (talvez para os cristãos 'de coração' que realmente praticam o cristianismo). Mas para o mundo pós-moderno essa passagem não faz nenhum sentido! Hoje ninguém se vê obrigado a ajudar o "próximo". Não ajudar não é a exceção, é a regra. E um cristão ou outro praticante de outra religião qualquer não pode condenar o mundo por isso, pois ser religioso é a exceção hoje.

A Pós-modernidade não está interessada no "depois" desta vida! Pensa que é melhor ignorá-lo porque dele nada se pode saber. Então, com isso, já não faz mais efeito a lógica religiosa que oferece alguma recompensa para os "bons" e um castigo eterno para os "maus". Penso que ainda não se noticiou ser ridículo alguém ajudar outrem, mas o ato de ajudar não é mais um ato moral obrigatório e universal hoje. Na Pós-modernidade a obrigação moral, por princípio de cada um, é consigo mesmo e é compreensível que alguém passe ao largo de alguém quase morto e se vá sem ajudá-lo.

Na era da violência – embora o mundo antigo oferecesse muito mais perigos que este –, na era dos assaltos, sequestros relâmpagos, assassinatos por encomenda, latrocínios por motivos torpes, acidentes de carros cometidos por pessoas embriagadas, estupros (às vezes cometidos por familiares das vítimas), ataques contra cidadãos pacatos cometidos por homens ou mulheres drogados, espancamentos contra as pessoas apenas porque elas têm pensamento diferente de determinado grupo, se vestem de determinada forma, assumem em público que são homossexuais ou torcem pelo time de futebol que não agrada a certas outras pessoas, ainda há espírito para ajudar alguém?

Quem é meu próximo hoje? – Na Pós-modernidade é "ninguém"? E seria ninguém para a segurança do próprio cidadão que se sente inseguro diante das ameaças reais que o afligem advindas pelas mão do "próximo". O "próximo" pode ser um assaltante, um assassino. Quem vai separar dois alunos brigões na escola que lutam com facas? Este não é o papel do professor. Quem vai se arriscar a separar uma briga de rua? Que policial vai se empenhar em investigar a morte de um cidadão que era um assassino? Quem vai se preocupar com o viciado? Por que alguém que vive em uma casa razoável, que usa um carro razoável para ir para um emprego razoável vai se preocupar com o próximo?
 
Por outro lado, há, sim, os "comunistas" (filiados ou não a algum clube político-partidário) "de plantão" que estão sempre prontos a acusar o capitalismo pelas mazelas do mundo mas será que sem perceber que seus líderes já perceberam que é mais inteligente para eles (os líderes) e para o socialismo/comunismo, que o capitalismo exista da mesma forma que era para a URSS, porque da mesma forma que se fazia naquela, podem hoje estes líderes justificar sua existência (e de seus partidos) com a causa "do povo"? A pergunta é: que povo? A quem essas pessoas realmente representam, senão a seus interesses de lutar por uma "revolução", seja como vanguarda (e a vanguarda sempre "sabe tudo" e se dá o direito de guiar os outros a quem supõe nada saber, como ovelhas) ou implantar no lugar do capitalismo outro, mas de Estado, em que eles (revolucionários) sempre serão os beneficiados! Mas isso pode não dar certo ou demorar muito tempo, então não pensam eles: "não, fazer tudo isso é muito caro e rende muitas mortes!" "É melhor" "culpar o capitalismo pelas mortes que há" (e eles gostam de culpá-lo por todas as mortes, mesmo as naturais) e continuar justificando a existência do partido de cunho "socialista" porque há "miseráveis" e "pessoas oprimidas" pelo sistema que podem ser manipuladas.




Mas a Pós-modernidade nos diz que não é para nos preocuparmos com nada disso! Porque mudar o sistema econômico era projeto dos modernos e eles não conseguiram mudar nada! Então isso não é mais da alçada do cidadão comum. Nem o Estado consegue resolver esses problemas, pela lógica não conseguirão os cidadãos...

É a mesma coisa em relação aos ecologistas que querem um mundo mais verde, mais saudável e geralmente organizam protestos para isso. Os ecologistas gostam de acusar as grandes companhias industriais pelos males do mundo e as culpam porque elas não oferecem produtos mais "verdes", mas são raros os ecologistas que deixam de usar as benesses do mundo capitalista poluidor em seu dia-a-dia. Mas a pergunta não é essa, a pergunta é: "que homem ou mulher no lugar do proprietário multimilionário de qualquer mega companhia industrial ou comercial hoje (mesmo tendo crescido dentro de uma organização ecologista ou socialista/comunista) não faria o que faz o proprietário dessa mega-companhia para mantê-la? É uma pergunta ética que se deve fazer a si mesmo.

Em 2014 pesquisas apontam que a China produziu mais emissões de gás carbônico que E.U.A e União Europeia (U.E) juntos. A China é grande concorrente mundial de mercadorias desses blocos. Surge daí a pergunta: "qual interesse desses blocos em construir uma imagem negativa da China?" "Estão, estes blocos econômicos, preocupados com a ecologia?" "Qual o papel de grupos como Greenpeace em atacar plataformas de petróleo na Rússia?" Na ética da Pós-modernidade a China não precisa se preocupar com essas críticas, ninguém pode proibi-la de emitir esses gases e nem será a pequena multidão de "preocupados" que aparecem em "protestos midiatizados" que irão pressionar seu governo a fazer algo a respeito. E a Rússia não precisa se preocupar com as sanções internacionais por retalhar a Ucrânia porque ela é uma das nações mais poderosas militarmente do globo e, no momento que o dinheiro russo fizer falta aos bancos internacionais a Rússia tem garantido seu lugar ao sol. Mas alguém pode me perguntar: "E como ficam as pessoas, a natureza, já que não temos outro planeta? A reposta pós-moderna (sem culpa alguma porque a culpa a Pós-modernidade abomina) é: "a longo prazo todos estaremos mortos e o que importa hoje é gozar."

Em meio a este cenário, tentar descobrir o "próximo" hoje é bem mais arriscado que na parábola bíblica, pois é um golpe comum uma pessoa fingir ser assaltada e esperar que alguém pare para ajudá-la para, então, assaltar o "próximo". A Pós-modernidade leva para o âmbito pessoal a desconfiança generalizada nas metanarrativas e nas instituições. Há poucos motivos para se confiar no próximo hoje. O "próximo" ao meu lado na poltrona do avião que conversa comigo animadamente sobre sua família, dali a dois minutos pode anunciar o sequestro da aeronave e derrubá-la sobre um arranha-céu qualquer em nome de alguma causa religiosa! Esse mesmo próximo que está ao meu lado no ônibus pode sair dali e assaltar o cobrador para pegar dinheiro e comprar, egoisticamente, sua dose de "crak" e satisfazer seu vício que vê como recreação e não doença ou me fazer de refém diante da polícia sem nenhum remorso, sem qualquer culpa. Culpa? O que é isso hoje?



Culpa pelo quê? Muitos assaltantes de bancos já disseram que não se sentem culpados por assaltar o banco porque eles estão "lutando" para sobreviver com seu talento para assaltar bancos. Muitos cidadãos que mataram outros cidadãos durante um assalto já declararam aos jornais que apenas mataram porque o cidadão assaltado reagiu e eles se defenderam do "ataque" da vítima. Muitos estupradores já afirmaram – com aval de seus advogados – que estupraram uma mulher porque ela vestia uma roupa "irresistível" para a libido deles – nesse caso a vítima virou criminosa?

Então, para finalizar, se hoje estes aí são os "novos valores" quem não ajudar o "próximo" não tem mais motivo algum para sentir-se culpado, pois a culpa também foi abolida e é obsoleta neste cenário. O "próximo" torna-se uma abstração, uma palavra na Lei (que condena por omissão de socorro – outra influência cristã na legislação que se diz 'laica'). O "próximo", descrito nos evangelhos, caducou? Torna-se uma invenção – repudiada pela Pós-modernidade –, que só faz o cidadão de hoje sentir culpa e ninguém quer, hoje, assumir a culpa. Culpa, outra palavra abstrata que se presta para garantir que a religião ainda exista para alguns e que as leis ainda tenham algum suporte ético além do jurídico.

Sem as ameaças da escatologia da religião, sem o sentimento de culpa que brota de dentro do próprio cidadão e que talvez – como brota dele mesmo – este possa extirpá-lo. E lembro que muitos se declaram incapazes de sentir culpa. Sem a ideia corrente que se é obrigado a "salvar" outrem se outrem – ao menos – não possa oferecer algo em troca do salvamento, justificado está o não interesse pelo "próximo", mas o desprezo mesmo por este "próximo" já que se trata de um ente abstrato, deletério, anônimo que não encontra mais espaço no mundo de hoje, cujo ato de "ajudar" "cheira a atraso", puerilidade, ingenuidade de quem ajuda! A Pós-modernidade sonha com isso, com a abolição de todos esses valores modernos – para que tudo seja, de fato, possível! 

A Pós-modernidade não é como a Modernidade que sonhava com a "libertação" dos trabalhadores da "exploração" capitalista. Quem consegue provar que os trabalhadores não exerçam poder de exploração entre eles mesmos e com as pessoas mais ricas? Foucault (1926-1984) já demonstrou que o poder não é privilégio de uma classe, mas de todas. Ele demonstrou que o poder não é exercido por alguém porque este alguém tenha mais ou menos dinheiro, mas o poder se exerce por todos, independente desse alguém ter mais ou menos dinheiro e se exerce de formas bem diferentes, algo que Marx (moderno) não poderia ver.


Michel Foucault


A Pós-modernidade não sonha com um libertador (o messias religioso ou o herói). Ela sonha com um mundo livre de opressão, tanto das ditaduras da direita quanto da esquerda. Com um mundo onde não se seja espancado ou morto por pensar diferente da maioria.

Os jovens do passado acreditavam numa lei simples: causa e efeito. Por exemplo, todo aquele que estuda em faculdade espera ter um emprego melhor do que aquele que não tem estudos. Mas no mundo pós-moderno os jovens sabem que essa lei pode falhar porque este mundo é incerto, instável, assim como ter sucesso na vida não está garantido nem pelo trabalho nem pelo estudo. Na prática, qualquer pessoa pode trabalhar quatro ou cinco anos como panificador, engenheiro ou editor de uma revista e, em uma bela tarde, o dono do estabelecimento pode marcar uma reunião para anunciar que a empresa de panifício, a empresa de engenharia ou a revista faliram porque ela não está mais rendendo o lucro que o proprietário deseja. O que acontecerá com os funcionários e suas famílias dali para frente? (Pensa o proprietário) "não é problema meu!". No mundo pós-moderno problemas como o desemprego são, para o sistema econômico, político ou para o Estado, somente uma estatística.

Não interessa a um pós-moderno se quem não estudou não o fez porque não podia pagar os estudos ou passava fome, interessa é que aquele que tenha formação tenha um emprego melhor do que aquele que não tem. De forma geral, aquele que estudou sabe que no máximo pode se lamentar pela má sorte do outro, mas pouco pode fazer pela mudança das condições que produzem os desafortunados. Os pós-modernos não culpam o sistema econômico por isso, culpam o "culpado"! É mais fácil!

Alguns pós-modernos típicos lamentam pela fome no mundo porque carregam consigo resquícios da cultura cristã, mas têm dificuldade de agir concretamente como faziam alguns modernos porque sabem que resolver isso não é de sua competência. Mas aos que se preocupam com essas coisas a Pós-modernidade oferece até mesmo uma solução para eles, pois podem se alistar em uma das várias ONGs espalhadas pelo mundo, empenhadas no combate a fome. Para os preocupados com as florestas, podem filiar-se a alguma ONG que defenda florestas. Os mais radicais (bem ao estilo revolucionário moderno) podem entrar para o Greenpeace. Os pós-modernos podem não se importar muito com aquela ativista (Ana Paula Maciel) presa na Rússia por forças militares, por atacar uma plataforma de petróleo e que aparece em rede mundial pedindo socorro para sua mãe dentro de uma jaula na cadeia.




Mas o mesmo público pós-moderno também pode demonstrar tanta tolerância liberal que é capaz de comprar a revista pornográfica (Playboy de abril de 2014), contendo fotos dessa mesma ativista em poses e roupas sensuais "presa" atrás das grades "sexualizadas", copiando o mesmo cenário da qual a militante queria escapar outrora. Mas agora, "pós-modernamente", ela está sendo paga para estar naquele lugar. Agora ela quer vender a imagem erotizada de seu corpo aproveitando que, por causa da prisão na Rússia, saiu do anonimato e é isso que importa ao pós-moderno, a possibilidade de poder conhecer o íntimo da nova "famosa".

E aqui ocorre a "desreferencialização do real", pelo esvaziamento do motivo de seu ativismo que outrora a fazia chamar atenção para a exploração de petróleo no Ártico e para a degradação ambiental que isso acarreta. Esvazia-se, no segundo momento, quando ela tira as roupas para a revista, seu ativismo que serve como trampolim de lançamento para o estrelato, para a fama e para vender, não mais aquele discurso a favor do Ártico, mas para vender imagens de seu próprio corpo nu e erotizado. É o mesmo fenômeno que pode ocorrer com certas ONGs que culpam o capitalismo pela fome na África, pelas doenças e pela miséria material, mas que, por outro lado se beneficiam com doações em dinheiro do mundo inteiro e que por cujos braços elegem políticos em diversos países!


Na Pós-modernidade a ideia é diluir-se tudo, misturar, fazer pastiche, bricolagem. O privado se torna público. As fotos e vídeos da vida privada de alguém são postadas nas redes sociais e se tornam públicas. As pessoas da "classe-média" que nunca puderam pagar para sair nas colunas sociais de jornais impressos, agora postam fotos do carro novo, da casa nova, da viagem que farão ou fizeram, da barriga da futura mamãe que está grávida. Estar na "moda" não é mais apenas vestir-se, é ter o que contar para os seguidores na rede social. Tal qual os ídolos da TV, as pessoas (de todas as 'classes') querem aparecer. É moda filmar suas relações sexuais ou se fotografar em poses sensuais e postar isso na rede porque é uma forma não só de autoafirmação, é também uma forma de exercer poder. Descartes dizia: "penso, logo existo", Daniel Goleman (1946) em seu livro "Inteligência Emocional, disse: "sinto, logo existo". Eu gostaria de dizer aqui aos leitores que para mim a frase hoje seria: "apareço, logo existo". Penso que é este o lema pós-moderno.



Assim, para os pós-modernos, "meu próximo é ninguém" porque não importa ajudar ou não alguém caído, o pobre, o faminto, mesmo "ajudando" (ato que pode denotar um egoísmo e sentimento de superioridade exacerbados por parte de quem ajuda') faz quem é ajudado "anônimo", ninguém. E quem ajuda também se torna "ninguém" porque a Pós-modernidade não se interessa por atos coletivos e peremptórios; se interessa pelo passageiro, pelo efêmero, pelo lúdico, pela aparência, pelo humor. Aparece o que o indivíduo faz sem preocupação em servir de exemplo para outras gerações. Ninguém pratica o "bem" (nos termos religiosos ou éticos) esperando que todos façam o mesmo, isso os cidadãos pós-modernos sabem que é utopia moderna! Aparece o fato cru em si, não importam as reflexões morais sobre o fato.

Mas e daí? Diferentemente do que poderia ser na Modernidade em que um panfleto às vezes mudava a história de um país inteiro, este texto não tem a ilusão de mudar nada; as minhas discordâncias com o mundo pós-moderno guardo para mim... Aqui apenas tento, a título de exercício intelectual, descrever um momento histórico, talvez ele passe logo, talvez dure mais do que se imagina, é por isso que a mim parece inútil tentar deter o nascer inevitável da aurora ou o devir infalível da morte!