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sábado, 20 de setembro de 2014

NA PÓS-MODERNIDADE MEU "PRÓXIMO" É "NINGUÉM"

Prof. Gerson Schulz



Em termos de tempo histórico, posso afirmar que a Modernidade, filosoficamente falando, nasce com Descartes (1596-1650) que dá os pressupostos do método científico. Ele, fascinado pelo funcionamento do relógio mecânico – invento à sua época uma novidade – tenta, levando ao máximo as idéias platônicas de separação entre corpo e alma e afirmando que somente esta pode chegar às verdades eternas, estabelecer um caminho seguro para o conhecimento absoluto.

René Descartes
Apesar de vários filósofos modernos penderem ao ateísmo, o cristianismo não desapareceu no mundo moderno. Por volta de 1517 houve a Reforma Protestante organizada especialmente por Lutero (1483-1546) na Alemanha. Com ela, rompeu-se com o catolicismo romano e surgiu uma versão "liberal" do cristianismo com menor poder aos sacerdotes, menos importância para a instituição igreja e mais destaque para a subjetividade, pois no protestantismo não se precisava tanto do padre para interpretar as escrituras, elas eram "debatidas" nos cultos entre as pessoas, discutidas, avaliadas sobre o que de interessante as passagens dos textos bíblicos podiam apresentar para o crente em sua vida cotidiana e o que tais práticas implicavam para cada indivíduo escatologicamente.

Saiba mais sobre o mundo moderno clicando aqui:

https://www.youtube.com/watch?v=dUmyg4fJqaY

https://www.youtube.com/watch?v=LPJOk4f-vHA


Na modernidade também se acreditava no poder das grandes metanarrativas. Positivismo, cristianismo, socialismo, razão, a objetividade da ciência, a racionalidade da filosofia. Essas crenças ofereciam respostas racionais para grandes questões da humanidade, norteavam a vida das sociedades política, econômica e materialmente.

Em termos de economia, pensava-se que o capitalismo (que defendia a legitimidade da propriedade privada) traria a todos (desde que fossem suficientemente competentes para trabalhar e poupar, e inteligentes para investir) as benesses do mundo desenvolvido: os caros confortos tecnológicos como a energia elétrica, os transportes a vapor (mais rápidos que os cavalos), o carro particular a gasolina, as viagens de avião, sem falar no prazer de ter dinheiro pelo prazer de tê-lo. Mas isso era uma ilusão. E era uma ilusão porque se todos tivessem acesso a essas coisas, elas faltariam! Seria impossível manter o abastecimento de gasolina, de energia. Caso todos tivessem carros, ninguém sairia de sua casa porque não haveria combustível nem ruas suficientes para tal.

Por outro lado, surgiu a metanarrativa do socialismo e do comunismo denunciando que o capitalismo era um ato de exploração de poucos sobre muitos. Que na lógica capitalista poucas pessoas tinham as reais condições de enriquecer, e mais, diziam essas metanarrativas que aqueles que eram ricos tinham roubado de outros tantos o dinheiro que acumulavam. Entre outras coisas os socialismos e comunismos diziam que se os trabalhadores tomassem "consciência" de sua situação de explorados, eles perceberiam que tomar o poder (mesmo pela violência) seria a única saída para se "libertar" da exploração dos patrões – proprietários da grande indústria e comércio.


Karl Marx



Então o Estado, na visão de Karl Marx (1818-1883), que era controlado pela classe dominante – chamada por ele de burguesia – passaria ao controle do proletariado organizado. Eliminar-se-iam todas as classes sociais. As riquezas geradas pelas atividades humanas seriam distribuídas entre todos de acordo com seu trabalho e necessidade, com prioridade aos mais pobres.

Marx postulou (e acertou) sobre as crises cíclicas do modelo capitalista. E em 1914 houve uma grave crise não só econômica, mas também humana, a Primeira Guerra Mundial. Várias nações europeias entraram em conflito por motivos político-econômicos. Finda em 1918, restou à Europa se reconstruir com a ajuda de um país que era ex-colônia da outrora superpotência mundial – Inglaterra –, os Estados Unidos da América.

Desenho alusivo a Lênin
Em 1917, na Rússia czarista, estoura uma guerra civil liderada por Vladimir Ilyitch Uliánov – Lênin (1870-1924). Ele propugna implantar o socialismo marxista na Rússia. Abolir as classes sociais, dividir as riquezas, estatizar todos os meios de produção como as terras, as fábricas e grandes empresas de comércio. De fato, a revolução ocorre e surge a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS – que dura perto de setenta anos e se espalha pelo Leste europeu e por países satélites fora da Europa. Assim como o capitalismo gera suas crises econômicas e, em função delas, humanas como desemprego, baixos salários, fome para alguns e morte para outros, o sistema soviético não conseguiu cumprir suas promessas. A experiência russa faliu em 1991 pelo excesso de burocracia, pelo excesso de folha de pagamento, pela má gestão dos recursos públicos, pela falta de liberdade de expressão individual imposta pelo regime ditatorial soviético e em todos os países que implantaram o socialismo, cujos governos não aceitavam críticas ao sistema e que prendeu e exilou vários cidadãos por fazê-las ou fuzilou outros tantos sob o pouco claro título de "inimigos do povo". Também faliu devido à impossibilidade de concorrer tecnologicamente com o Ocidente, fato que sempre causou escassez de bens de consumo na União Soviética como papel, metais, louças e comidas e bebidas.

Também não se cumpriu na União Soviética a promessa socialista (nem na China, no Camboja, no Vietnã, na Coréia do Norte ou em Cuba) de mudar – dentro de determinado espaço de tempo – para o comunismo que seria, segundo Marx, o fim do Estado, o fim total das classes sociais, estágio da economia plenamente planificada.

Marx afirmava que o capitalismo faliria porque os trabalhadores se dariam conta que eram explorados, mas Marx errou e o capitalismo permaneceu. Ele também afirmava que o socialismo aconteceria na nação mais desenvolvida do planeta, aí ele também errou. A revolução se deu na Rússia czarista que vivia o feudalismo, nem havia ainda desenvolvido fábricas e comércio suficientes para se anunciar grande capitalista.

Adolf Hitler
Em 1929 deu-se outra crise capitalista, a quebra da Bolsa de Valores de New York que levou à falência muitos capitalistas e foi uma das causas da Segunda Guerra Mundial que se iniciou em 1939 e findou em 1945. Embora vários historiadores como Eric Hobsbawm (1917-2012) tenham descrito com precisão as diferenças entre as ideologias das nações em guerra (nazismo, fascismo, socialismo) não se pode dizer que essa guerra não tivesse a economia como pano de fundo, pois a Alemanha nazista (cujo regime se baseava na raça das pessoas) era capitalista e buscava se desenvolver tanto mais que as outras nações capitalistas como a Inglaterra, a França ou os Estados Unidos da América. A Itália fascista (regime ditatorial) também era capitalista tanto quanto os demais. E mesmo a União Soviética (socialista) não hesitou em entrar em acordo com a Alemanha de Adolf Hitler (1889-1945) para ocupar a Polônia e dividi-la ao meio com as forças nazistas, exercendo assim nada mais que a típica prática capitalista de expansão de territórios que nem se pode dizer "invenção do capitalismo", pois esta já era comum desde o mundo antigo greco-romano que não era capitalista.

A União Soviética não apresentou novidades em termos políticos quanto as suas relações exteriores, pois financiou "revoluções" mundo afora se jogando em uma disputa (bem comum ao pré-capitalismo) para assegurar territórios satélites.

Bandeira da antiga União Soviética

Finda a Segunda Guerra – com a deflagração de duas bombas atômicas sobre o Japão – surgiram na filosofia autores como David Harvey (1935), Jean-Francoise Lyotard (1924-1998), Eric Hobsbawm e outros que passaram a defender a tese que diz que a Modernidade tinha falido junto com suas guerras justamente porque não conseguira cumprir suas promessas de autonomia, de consciência humana, de justiça para todos, igualdade e fraternidade entre os homens. Mas não só o capitalismo havia falhado, também as promessas socialistas falharam, pois se sabia a cada dia entre 1945 e 1970 as atrocidades cometidas pelas ditaduras socialistas.

Deflagração da bomba atômica


A crítica socialista de falta de igualdade econômica nos países capitalistas era rebatida pelos exemplos das democracias modernas como Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha Ocidental (do pós-guerra), Itália, França e pela produção de riquezas nesses países que contrastava com a pobreza dos países socialistas, incluindo a União Soviética. A falta de liberdade nos países sob o socialismo culminou com a construção – em 1961 – do Muro de Berlim para impedir a fuga para o lado ocidental de cidadãos que viviam no lado oriental – socialista.

A esse período de bipolaridade entre países capitalistas e comunistas, suas guerras ideológicas, de exploração econômica ampliada pelas potências do Globo, chamou-se "guerra fria", algo novo em relação à Modernidade, por isso este é um dos argumentos que alega que a guerra entre dois grandes blocos econômicos não é mais "coisa" dos modernos, então já é outro período, é a Pós-modernidade. 

O período pós-moderno se distingue dos outros porque é a era da bomba atômica e da possibilidade da guerra nuclear em que poucos países – os que têm a bomba atômica – podem aniquilar-se e destruir todo o resto da população mundial. A pós-modernidade é o período em que as ideologias modernas entram em crise. O capitalismo – cujas promessas se sabe não se cumpriram – é desacreditado, mas também o socialismo é desacreditado por não ter cumprido suas promessas. O mundo desacredita da força da política diante de qualquer mudança social e deixa um antigo critério moderno guiar boa parte de suas ações, o jogo econômico dos mercados. Os governos não se preocupam com outra coisa a não ser em garantir a liberdade dos mercados apostando que, assim, garantirão a dinâmica social do emprego para a maioria, do pagamento de salários e o "moto perpétuo" do sistema de compra e venda de mercadorias. Com o fim da União Soviética e vários de seus países satélites, todos os países são, agora, capitalistas. Mesmo China ou Cuba – que na teoria são socialistas – na prática são capitalistas, vendendo e comprando dos países capitalistas e produzindo riquezas a expensas de trabalho semi-escravo em seus territórios praticamente inacessíveis às instituições internacionais como a Organização das Nações Unidas.

Na Pós-modernidade são deixadas de lado ideias como "igualdade", "justiça social", "distribuição de riquezas para os mais pobres" (ao menos pelos governos e a maior parte da população mundial dos países desenvolvidos) e se admite que o único parâmetro de prosperidade, riqueza e felicidade é o capitalismo e suas benesses. O ato de ter dinheiro é extremamente importante para a maioria das pessoas não só para comprar mercadorias e serviços, mas para trabalhar em atividades menos insalubres e por menos tempo, para gozar mais tempo de ócio possível. Ser consumista se torna parte do conjunto de felicidade geral da maioria das pessoas.

Um pós-moderno não se preocupa com o dia de amanhã (grosso modo) como fazia um moderno que pensava na aposentadoria. O pós-moderno sabe que dificilmente se aposentará porque a expectativa de vida aumentou, porque hoje a idade além dos sessenta anos é muito produtiva ainda. A Pós-modernidade não quer saber de verdades eternas – como queriam Platão (427-347 A.C), Aristóteles (384-322 A.C), Agostinho (354-430), Tomás de Aquino (1225-1274), Descartes. Nem se existe ou não uma "alma imortal" em nosso corpo que sobreviva a morte. O que realmente importa é agora. O deus de Israel foi compactado ao âmbito da fé e perece diante da razão, desconstruído por Feuerbach (1804-1872), Marx, Nietzsche (1844-1900), Freud (1856-1939). Restam apenas sombras dele que se dilui nas várias seitas cristãs que se difundem por aí.

Zygmunt Bauman


As bases culturais do Ocidente: religião judaico-cristã e filosofia grega se dissolvem rapidamente. A massa de desempregados atira-se cada vez mais a qualquer subemprego para sobreviver não mais se preocupando com o suposto conceito de "luta de classes". – Quem tem 'consciência' de classe hoje em dia? Quem, precisando de comida para os filhos, vai recusar emprego por mais miserável que seja o salário?

A velha moral ocidental (antigamente assegurada sob as barbas do deus hebreu e do medo que os fiéis em geral tinham das autoridades da igreja) reduziu-se a guetos de mentes geralmente religiosas que pensam que escatologicamente somente eles serão salvos. A ética é reinventada por cada um a seu bel prazer e necessidade. A sociedade virou uma miscelânea de idéias anarquistas, capitalistas, socialistas, comunitaristas, alternativas (New Age), fanáticas religiosas e fascistas. Alguém pode se declarar comunista e cristão ao mesmo tempo sem ver qualquer incoerência nisso como viam os modernos. Uma jovem de classe média alta pode vestir-se tranquilamente com jeans rasgado de marca cara e isso nada tem que ver com as causas do movimento punk inglês dos anos sessenta que usava tais roupas rasgadas para protestar contra as fábricas insalubres em que seus pais trabalhavam e os baixos salários pagos por elas.

Todos os discursos querem se validar diante da opinião pública e o critério para isso é sua aprovação popular nas mídias, nas redes sociais. A imprensa e suas ideias se mantêm no ar ou no papel do jornal graças ao poder dos grandes grupos econômicos que as sustentam até que as interesse. A verdade é o que se quer, o que seja útil. Um comentarista de telejornal pode mudar de discurso no minuto seguinte se o que ele disse não agradou aos patrocinadores ou ao grande público e as pessoas pouco acharão isso estranho!

A grande indústria virou mega fábrica de conglomerados. A prestação de serviços é a "onda" do momento e em seu entorno se apinham as massas dos "fora da moda" tentando receber alguma atenção da mídia. O capitalismo turbinado ('ultrasselvagem') está tão encravado nas mentes dos cidadãos que até mesmo suas relações pessoais (sexuais, afetivas) baseiam-se em suas relações comerciais (há pessoas que se acham felizes apenas se seu número de parceiros sexuais for tanto quanto sua conta bancária).

Immanuel Kant
O liberalismo clássico trouxe uma noção moderna de liberdade "o homem como autor de seu próprio destino". Immanuel Kant (1724-1804) legitimou com a subjetividade esta liberdade. Ele afirmou: "Age de tal forma que tua ação possa ser norma universal."  Mas na Pós-modernidade qualquer coisa pode ser norma universal desde que satisfaça a vontade do indivíduo. ...Ah, matar não pode!... Mas os crimes passionais e tiroteios em escolas têm aumentado, e os linchamentos no Brasil também, além dos casos de jovens incendiando índios e mendigos para se divertir, e isso segue sob os olhos da incapacidade da Justiça brasileira, então matar, na prática...

Na Pós-modernidade o homem e a mulher "politizados" se diluíram. Estão passivos em frente às notícias "enlatadas" da TV. Às ações unilaterais de governos que não os consultam. À pseudodemocracia que está bem longe do alcance real da população porque só referenda o que as aristocracias desejam, fundando o governo plutocrático. Mas também nenhuma pessoa que viva na miséria quer o fim do capitalismo. E não quer porque o capitalismo faz algo que o socialismo não pode fazer, manter o sonho de enriquecer sempre aceso. No mundo socialista não se pode enriquecer, no capitalismo sabe-se que a maioria nunca enriquecerá, porém, na prática todos estão concorrendo e mesmo aquele que nada tem, pode jogar na loteria e, de repente, ficar milionário.

Alguns grandes conglomerados capitalistas podem decidir os destinos de alguns milhões de pessoas visto que suas receitas superam em muito a de vários países pobres. Vários são os políticos que ajoelham o Estado ao mercado de capitais. Acabou-se com o Welfire State pensando que financiar os mercados traria mais felicidade para a civilização, o preço é que hoje o Estado faz parte do mercado. As massas de miseráveis estão excluídas do emprego (e hoje não são mais reserva de mercado, são excluídas mesmo) porque não interessa dar emprego para eles já que a tecnologia suplanta, inevitavelmente, os empregos. Há máquinas que trabalham vinte e quatro horas. Mas se enganam aquelas pessoas do "clubinho socialista de fim de semana" que acreditam que o desemprego estrutural neoliberal é por acaso, não é. É preciso, para os capitalistas, que haja gente miserável, quem se submeteria aos trabalhos mais insalubres quando os capitalistas precisam? É preciso até mesmo para aqueles que se dizem "socialistas" ou "comunistas" que os miseráveis continuem a existir, pois quem cataria o lixo que todos nós produzimos? Quem varreria nossas ruas? Quem limparia nossos esgotos? A resposta são eles, aqueles que diferentemente de nós não têm acesso a um computador para ler este texto, a uma sala de aula de universidade. São os miseráveis que limpam a lata de lixo no quarto do hospital de quem pode pagar pelo plano de saúde. Os miseráveis são importantes para o mercado, pois as demandas deles (porque tem baixo poder aquisitivo) não compram o que as pessoas mais abastadas podem comprar, mas movimenta o mercado de usados e semi-novos que nós descartamos. Até os miseráveis, ao gosto de Auguste Comte (1798-1857), têm seu lugar neste mundo.

Hoje (se comparada ao passado) a liberdade existe, mas continua não sendo para todos; pois só podem tê-la os que têm condições de comprá-la; ela também é um produto? Daqueles como a Coca-Cola da qual ninguém precisa para viver e é extremamente doce e cujo consumo pode causar obesidade, mas que graças à propaganda que faz parecer indispensável, muitos não vivem sem?




Na Pós-modernidade os heróis são não mais aqueles que conseguem "aniquilar o sistema", são os que conseguem enriquecer com ele, estes são os exemplos a seguir. Na modernidade, para um socialista ou comunista, o herói era aquele que lutava pela revolução social – algo que não passava de uma utopia romântica. E para o liberal "burguês" o herói era aquele que garantia a propriedade privada, que demonstrava a importância quase sagrada (senão sagrada para ele) da propriedade privada. Agora quem é o herói? Não importa o que ele pregue, importa o número de seguidores dele no twiter, no Facebook, o número de livros ou músicas que consegue vender ou o número da audiência nos programas de TV aonde é convidado a dar entrevistas. Diz Zygmunt Bauman (1925) em "Amor Líquido" que hoje se pode medir o sucesso de uma pessoa pelo número de presentes ao seu enterro e eu acrescento: também pelo número de câmeras de emissoras de mídia ali presentes.

Em meio a tudo isso ainda posso perguntar: "quem é meu próximo?"

Disse Jesus: "Certo homem descia de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos dos salteadores que, depois de o despojarem e encherem de pancadas, o abandonaram, deixando-o meio morto. Por coincidência, descia por aquele caminho um sacerdote que, ao vê-lo, passou ao largo. Do mesmo modo, também um levita passou por aquele lugar e, ao vê-lo, passou adiante. Mas um samaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dele e, vendo-o, encheu-se de compaixão... Qual destes três parece ter sido o próximo daquele homem que caiu nas mãos dos salteadores?" Respondeu: "O que usou de misericórdia para com ele". Jesus retorquiu: "Vai e faz tu também o mesmo" (LUCAS, 10, 29-37).



Paul Ricoeur
Essa passagem é literariamente tão curiosa que já suscitou comentários de autores famosos como Paul Ricoeur (1913-2005). Não se pode negar que para muitos ela ainda tem algum sentido (talvez para os cristãos 'de coração' que realmente praticam o cristianismo). Mas para o mundo pós-moderno essa passagem não faz nenhum sentido! Hoje ninguém se vê obrigado a ajudar o "próximo". Não ajudar não é a exceção, é a regra. E um cristão ou outro praticante de outra religião qualquer não pode condenar o mundo por isso, pois ser religioso é a exceção hoje.

A Pós-modernidade não está interessada no "depois" desta vida! Pensa que é melhor ignorá-lo porque dele nada se pode saber. Então, com isso, já não faz mais efeito a lógica religiosa que oferece alguma recompensa para os "bons" e um castigo eterno para os "maus". Penso que ainda não se noticiou ser ridículo alguém ajudar outrem, mas o ato de ajudar não é mais um ato moral obrigatório e universal hoje. Na Pós-modernidade a obrigação moral, por princípio de cada um, é consigo mesmo e é compreensível que alguém passe ao largo de alguém quase morto e se vá sem ajudá-lo.

Na era da violência – embora o mundo antigo oferecesse muito mais perigos que este –, na era dos assaltos, sequestros relâmpagos, assassinatos por encomenda, latrocínios por motivos torpes, acidentes de carros cometidos por pessoas embriagadas, estupros (às vezes cometidos por familiares das vítimas), ataques contra cidadãos pacatos cometidos por homens ou mulheres drogados, espancamentos contra as pessoas apenas porque elas têm pensamento diferente de determinado grupo, se vestem de determinada forma, assumem em público que são homossexuais ou torcem pelo time de futebol que não agrada a certas outras pessoas, ainda há espírito para ajudar alguém?

Quem é meu próximo hoje? – Na Pós-modernidade é "ninguém"? E seria ninguém para a segurança do próprio cidadão que se sente inseguro diante das ameaças reais que o afligem advindas pelas mão do "próximo". O "próximo" pode ser um assaltante, um assassino. Quem vai separar dois alunos brigões na escola que lutam com facas? Este não é o papel do professor. Quem vai se arriscar a separar uma briga de rua? Que policial vai se empenhar em investigar a morte de um cidadão que era um assassino? Quem vai se preocupar com o viciado? Por que alguém que vive em uma casa razoável, que usa um carro razoável para ir para um emprego razoável vai se preocupar com o próximo?
 
Por outro lado, há, sim, os "comunistas" (filiados ou não a algum clube político-partidário) "de plantão" que estão sempre prontos a acusar o capitalismo pelas mazelas do mundo mas será que sem perceber que seus líderes já perceberam que é mais inteligente para eles (os líderes) e para o socialismo/comunismo, que o capitalismo exista da mesma forma que era para a URSS, porque da mesma forma que se fazia naquela, podem hoje estes líderes justificar sua existência (e de seus partidos) com a causa "do povo"? A pergunta é: que povo? A quem essas pessoas realmente representam, senão a seus interesses de lutar por uma "revolução", seja como vanguarda (e a vanguarda sempre "sabe tudo" e se dá o direito de guiar os outros a quem supõe nada saber, como ovelhas) ou implantar no lugar do capitalismo outro, mas de Estado, em que eles (revolucionários) sempre serão os beneficiados! Mas isso pode não dar certo ou demorar muito tempo, então não pensam eles: "não, fazer tudo isso é muito caro e rende muitas mortes!" "É melhor" "culpar o capitalismo pelas mortes que há" (e eles gostam de culpá-lo por todas as mortes, mesmo as naturais) e continuar justificando a existência do partido de cunho "socialista" porque há "miseráveis" e "pessoas oprimidas" pelo sistema que podem ser manipuladas.




Mas a Pós-modernidade nos diz que não é para nos preocuparmos com nada disso! Porque mudar o sistema econômico era projeto dos modernos e eles não conseguiram mudar nada! Então isso não é mais da alçada do cidadão comum. Nem o Estado consegue resolver esses problemas, pela lógica não conseguirão os cidadãos...

É a mesma coisa em relação aos ecologistas que querem um mundo mais verde, mais saudável e geralmente organizam protestos para isso. Os ecologistas gostam de acusar as grandes companhias industriais pelos males do mundo e as culpam porque elas não oferecem produtos mais "verdes", mas são raros os ecologistas que deixam de usar as benesses do mundo capitalista poluidor em seu dia-a-dia. Mas a pergunta não é essa, a pergunta é: "que homem ou mulher no lugar do proprietário multimilionário de qualquer mega companhia industrial ou comercial hoje (mesmo tendo crescido dentro de uma organização ecologista ou socialista/comunista) não faria o que faz o proprietário dessa mega-companhia para mantê-la? É uma pergunta ética que se deve fazer a si mesmo.

Em 2014 pesquisas apontam que a China produziu mais emissões de gás carbônico que E.U.A e União Europeia (U.E) juntos. A China é grande concorrente mundial de mercadorias desses blocos. Surge daí a pergunta: "qual interesse desses blocos em construir uma imagem negativa da China?" "Estão, estes blocos econômicos, preocupados com a ecologia?" "Qual o papel de grupos como Greenpeace em atacar plataformas de petróleo na Rússia?" Na ética da Pós-modernidade a China não precisa se preocupar com essas críticas, ninguém pode proibi-la de emitir esses gases e nem será a pequena multidão de "preocupados" que aparecem em "protestos midiatizados" que irão pressionar seu governo a fazer algo a respeito. E a Rússia não precisa se preocupar com as sanções internacionais por retalhar a Ucrânia porque ela é uma das nações mais poderosas militarmente do globo e, no momento que o dinheiro russo fizer falta aos bancos internacionais a Rússia tem garantido seu lugar ao sol. Mas alguém pode me perguntar: "E como ficam as pessoas, a natureza, já que não temos outro planeta? A reposta pós-moderna (sem culpa alguma porque a culpa a Pós-modernidade abomina) é: "a longo prazo todos estaremos mortos e o que importa hoje é gozar."

Em meio a este cenário, tentar descobrir o "próximo" hoje é bem mais arriscado que na parábola bíblica, pois é um golpe comum uma pessoa fingir ser assaltada e esperar que alguém pare para ajudá-la para, então, assaltar o "próximo". A Pós-modernidade leva para o âmbito pessoal a desconfiança generalizada nas metanarrativas e nas instituições. Há poucos motivos para se confiar no próximo hoje. O "próximo" ao meu lado na poltrona do avião que conversa comigo animadamente sobre sua família, dali a dois minutos pode anunciar o sequestro da aeronave e derrubá-la sobre um arranha-céu qualquer em nome de alguma causa religiosa! Esse mesmo próximo que está ao meu lado no ônibus pode sair dali e assaltar o cobrador para pegar dinheiro e comprar, egoisticamente, sua dose de "crak" e satisfazer seu vício que vê como recreação e não doença ou me fazer de refém diante da polícia sem nenhum remorso, sem qualquer culpa. Culpa? O que é isso hoje?



Culpa pelo quê? Muitos assaltantes de bancos já disseram que não se sentem culpados por assaltar o banco porque eles estão "lutando" para sobreviver com seu talento para assaltar bancos. Muitos cidadãos que mataram outros cidadãos durante um assalto já declararam aos jornais que apenas mataram porque o cidadão assaltado reagiu e eles se defenderam do "ataque" da vítima. Muitos estupradores já afirmaram – com aval de seus advogados – que estupraram uma mulher porque ela vestia uma roupa "irresistível" para a libido deles – nesse caso a vítima virou criminosa?

Então, para finalizar, se hoje estes aí são os "novos valores" quem não ajudar o "próximo" não tem mais motivo algum para sentir-se culpado, pois a culpa também foi abolida e é obsoleta neste cenário. O "próximo" torna-se uma abstração, uma palavra na Lei (que condena por omissão de socorro – outra influência cristã na legislação que se diz 'laica'). O "próximo", descrito nos evangelhos, caducou? Torna-se uma invenção – repudiada pela Pós-modernidade –, que só faz o cidadão de hoje sentir culpa e ninguém quer, hoje, assumir a culpa. Culpa, outra palavra abstrata que se presta para garantir que a religião ainda exista para alguns e que as leis ainda tenham algum suporte ético além do jurídico.

Sem as ameaças da escatologia da religião, sem o sentimento de culpa que brota de dentro do próprio cidadão e que talvez – como brota dele mesmo – este possa extirpá-lo. E lembro que muitos se declaram incapazes de sentir culpa. Sem a ideia corrente que se é obrigado a "salvar" outrem se outrem – ao menos – não possa oferecer algo em troca do salvamento, justificado está o não interesse pelo "próximo", mas o desprezo mesmo por este "próximo" já que se trata de um ente abstrato, deletério, anônimo que não encontra mais espaço no mundo de hoje, cujo ato de "ajudar" "cheira a atraso", puerilidade, ingenuidade de quem ajuda! A Pós-modernidade sonha com isso, com a abolição de todos esses valores modernos – para que tudo seja, de fato, possível! 

A Pós-modernidade não é como a Modernidade que sonhava com a "libertação" dos trabalhadores da "exploração" capitalista. Quem consegue provar que os trabalhadores não exerçam poder de exploração entre eles mesmos e com as pessoas mais ricas? Foucault (1926-1984) já demonstrou que o poder não é privilégio de uma classe, mas de todas. Ele demonstrou que o poder não é exercido por alguém porque este alguém tenha mais ou menos dinheiro, mas o poder se exerce por todos, independente desse alguém ter mais ou menos dinheiro e se exerce de formas bem diferentes, algo que Marx (moderno) não poderia ver.


Michel Foucault


A Pós-modernidade não sonha com um libertador (o messias religioso ou o herói). Ela sonha com um mundo livre de opressão, tanto das ditaduras da direita quanto da esquerda. Com um mundo onde não se seja espancado ou morto por pensar diferente da maioria.

Os jovens do passado acreditavam numa lei simples: causa e efeito. Por exemplo, todo aquele que estuda em faculdade espera ter um emprego melhor do que aquele que não tem estudos. Mas no mundo pós-moderno os jovens sabem que essa lei pode falhar porque este mundo é incerto, instável, assim como ter sucesso na vida não está garantido nem pelo trabalho nem pelo estudo. Na prática, qualquer pessoa pode trabalhar quatro ou cinco anos como panificador, engenheiro ou editor de uma revista e, em uma bela tarde, o dono do estabelecimento pode marcar uma reunião para anunciar que a empresa de panifício, a empresa de engenharia ou a revista faliram porque ela não está mais rendendo o lucro que o proprietário deseja. O que acontecerá com os funcionários e suas famílias dali para frente? (Pensa o proprietário) "não é problema meu!". No mundo pós-moderno problemas como o desemprego são, para o sistema econômico, político ou para o Estado, somente uma estatística.

Não interessa a um pós-moderno se quem não estudou não o fez porque não podia pagar os estudos ou passava fome, interessa é que aquele que tenha formação tenha um emprego melhor do que aquele que não tem. De forma geral, aquele que estudou sabe que no máximo pode se lamentar pela má sorte do outro, mas pouco pode fazer pela mudança das condições que produzem os desafortunados. Os pós-modernos não culpam o sistema econômico por isso, culpam o "culpado"! É mais fácil!

Alguns pós-modernos típicos lamentam pela fome no mundo porque carregam consigo resquícios da cultura cristã, mas têm dificuldade de agir concretamente como faziam alguns modernos porque sabem que resolver isso não é de sua competência. Mas aos que se preocupam com essas coisas a Pós-modernidade oferece até mesmo uma solução para eles, pois podem se alistar em uma das várias ONGs espalhadas pelo mundo, empenhadas no combate a fome. Para os preocupados com as florestas, podem filiar-se a alguma ONG que defenda florestas. Os mais radicais (bem ao estilo revolucionário moderno) podem entrar para o Greenpeace. Os pós-modernos podem não se importar muito com aquela ativista (Ana Paula Maciel) presa na Rússia por forças militares, por atacar uma plataforma de petróleo e que aparece em rede mundial pedindo socorro para sua mãe dentro de uma jaula na cadeia.




Mas o mesmo público pós-moderno também pode demonstrar tanta tolerância liberal que é capaz de comprar a revista pornográfica (Playboy de abril de 2014), contendo fotos dessa mesma ativista em poses e roupas sensuais "presa" atrás das grades "sexualizadas", copiando o mesmo cenário da qual a militante queria escapar outrora. Mas agora, "pós-modernamente", ela está sendo paga para estar naquele lugar. Agora ela quer vender a imagem erotizada de seu corpo aproveitando que, por causa da prisão na Rússia, saiu do anonimato e é isso que importa ao pós-moderno, a possibilidade de poder conhecer o íntimo da nova "famosa".

E aqui ocorre a "desreferencialização do real", pelo esvaziamento do motivo de seu ativismo que outrora a fazia chamar atenção para a exploração de petróleo no Ártico e para a degradação ambiental que isso acarreta. Esvazia-se, no segundo momento, quando ela tira as roupas para a revista, seu ativismo que serve como trampolim de lançamento para o estrelato, para a fama e para vender, não mais aquele discurso a favor do Ártico, mas para vender imagens de seu próprio corpo nu e erotizado. É o mesmo fenômeno que pode ocorrer com certas ONGs que culpam o capitalismo pela fome na África, pelas doenças e pela miséria material, mas que, por outro lado se beneficiam com doações em dinheiro do mundo inteiro e que por cujos braços elegem políticos em diversos países!


Na Pós-modernidade a ideia é diluir-se tudo, misturar, fazer pastiche, bricolagem. O privado se torna público. As fotos e vídeos da vida privada de alguém são postadas nas redes sociais e se tornam públicas. As pessoas da "classe-média" que nunca puderam pagar para sair nas colunas sociais de jornais impressos, agora postam fotos do carro novo, da casa nova, da viagem que farão ou fizeram, da barriga da futura mamãe que está grávida. Estar na "moda" não é mais apenas vestir-se, é ter o que contar para os seguidores na rede social. Tal qual os ídolos da TV, as pessoas (de todas as 'classes') querem aparecer. É moda filmar suas relações sexuais ou se fotografar em poses sensuais e postar isso na rede porque é uma forma não só de autoafirmação, é também uma forma de exercer poder. Descartes dizia: "penso, logo existo", Daniel Goleman (1946) em seu livro "Inteligência Emocional, disse: "sinto, logo existo". Eu gostaria de dizer aqui aos leitores que para mim a frase hoje seria: "apareço, logo existo". Penso que é este o lema pós-moderno.



Assim, para os pós-modernos, "meu próximo é ninguém" porque não importa ajudar ou não alguém caído, o pobre, o faminto, mesmo "ajudando" (ato que pode denotar um egoísmo e sentimento de superioridade exacerbados por parte de quem ajuda') faz quem é ajudado "anônimo", ninguém. E quem ajuda também se torna "ninguém" porque a Pós-modernidade não se interessa por atos coletivos e peremptórios; se interessa pelo passageiro, pelo efêmero, pelo lúdico, pela aparência, pelo humor. Aparece o que o indivíduo faz sem preocupação em servir de exemplo para outras gerações. Ninguém pratica o "bem" (nos termos religiosos ou éticos) esperando que todos façam o mesmo, isso os cidadãos pós-modernos sabem que é utopia moderna! Aparece o fato cru em si, não importam as reflexões morais sobre o fato.

Mas e daí? Diferentemente do que poderia ser na Modernidade em que um panfleto às vezes mudava a história de um país inteiro, este texto não tem a ilusão de mudar nada; as minhas discordâncias com o mundo pós-moderno guardo para mim... Aqui apenas tento, a título de exercício intelectual, descrever um momento histórico, talvez ele passe logo, talvez dure mais do que se imagina, é por isso que a mim parece inútil tentar deter o nascer inevitável da aurora ou o devir infalível da morte!

quinta-feira, 31 de julho de 2014

TEORIA DA RELATIVIDADE E TEMPO: KANT X EINSTEIN


Gerson N. L. Schulz
Professor de Filosofia




Uma grande discussão atual gira em torno da origem do universo. Atualmente se calcula que a idade do Cosmos seja de aproximadamente 15 bilhões de anos. O Big-Bang é a teoria mais aceita para explicar essa origem. Porém, algumas perguntas filosóficas surgem daí, como por exemplo: De onde surgiu o universo? Havia um "antes"? Se, segundo Kant (1724-1804), o tempo e o espaço encontram-se dentro da mente humana como condições a priori, seria possível existir um "antes", isto é, um tempo e um espaço fora do tempo e do espaço do universo como conhecemos? Estas são algumas das perguntas levantadas por Bernard Piettre em seu livro "Filosofia e Ciência do Tempo" (Edusc, 1997).

Para Piettre, a teoria da relatividade de Einstein fragilizou a teoria kantiana porque comprovou que a luz pode ser onda e partícula ao mesmo tempo. Kant acreditava (por intuição) que uma partícula está dentro do espaço e do tempo. A teoria einsteiniana não permite que se localize uma partícula dentro de um espaço-tempo a priori como queria Kant, então cai por terra a teoria kantiana que supõe a mediação da intuição do tempo e do espaço para compreender a realidade.

"A persistência da Memória"
Salvador Dali
1931


Em outras palavras, a teoria da Relatividade de Einstein chega às seguintes conclusões: o espaço-tempo não está contido dentro do universo, mas se faz à medida constante da matéria e da energia; o campo gravitacional deste universo determina seu tamanho; as partículas de luz não podem ser localizadas dentro do espaço-tempo por causa de seu comportamento de corpúsculo e de onda, isso derruba os argumentos kantianos que dizem que primeiro vêm o tempo-espaço e depois se dão os fenômenos. Para Einstein é possível que a própria matéria e a energia (fenômenos), à medida que avancem no espaço-tempo, criem o espaço e o tempo. Logo, o universo em expansão não está ocupando um espaço fora dele mesmo como se pensava, mas este é criado numa sucessão de momentos. Destarte, seria impossível existir um "antes" porque não havia tempo neste "antes" do Big-Bang.


Albert Einstein
1879-1955
Autor da Teoria da Relatividade Geral
que remodelou toda a Física Moderna

Conclui Piettre, "não são o espaço e tempo que são os elementos de base, mas as próprias partículas fundamentais de matéria ou energia. Sem elas não poderíamos representar a imagem que fazemos de um espaço e um tempo contínuos e detalháveis ao infinito. Os elétrons, assim como outras partículas fundamentais, não existem no espaço e no tempo. São espaço e tempo que existem em função deles.

Para Einstein isso prova que é a luz, à medida do seu avanço, que "desenrola" o espaço-tempo que separa um observador de um corpo no espaço. Por conseguinte, o universo não preencheria um espaço-tempo vazio fora dele mas aumentaria seu espaço-tempo internamente. O que se sabe ao certo é que se o universo se manifesta por uma simetria de pares de partículas, o tempo é efeito de uma quebra de simetria entre matéria e antimatéria.

IMMANUEL KANT
1724-1804
Por fim, isso sugere a origem da causa do movimento, e do fenômeno que chamamos "tempo". Nesse sentido, Piettre constata: se existe uma indissociabilidade do tempo e da matéria, existe um limite além onde o tempo não existe mais. Isto implica a hipótese de que antes do surgimento do universo (tempo zero) não havia tempo algum, então não cabe especular sobre o que havia antes.

sexta-feira, 25 de julho de 2014

ANÁLISE FILOSÓFICA DO FILME: O SENHOR DAS ARMAS



Gerson Nei Lemos Schulz



Como dizem os atores Nicolas Cage e Jared Leto, interpretando os personagens Yuri Orlov e Vitaly Orlov em "Lord of War" ou "O Senhor das Armas", no Brasil, cap. 2): Yuri Orlov entra na cozinha do restaurante de seus pais e, após provar a comida que seu irmão está cozinhando e fingir passar mal (ironizando o irmão) ao sair lê em uma placa na porta do recinto: Beware of the dog e pergunta a seu irmão: Cuidado com o cão? Você não tem cão, tá assustando as pessoas? Vitaly: Não, é para me assustar, para me lembrar de ter cuidado com o cão em mim, o cão que quer destruir tudo que se mexe, que quer lutar e matar os cachorros mais fracos. Acho que é... para me lembrar de ser mais humano. Yuri: Ser cão não faz parte de ser humano? E se essa fosse a melhor parte de você, ser cão? E se você fosse apenas um cão de duas pernas? Ocorre uma pausa e Vitaly diz: – Você precisa de ajuda. Yuri ironiza: – 'tá fedendo aqui.

Existem mais de 550 milhões de armas de fogo em circulação no mundo,
isso equivale a uma arma pra cada doze pessoas no planeta.
A única pergunta é... como podemos armar as outras onze?

Yuri Orlov/Nicolas Cage
In: O senhor das armas. Propriedade da
Entertainment Manufacturing Company,
Ascendant Pictures,
Saturn Films, USA: 2005.

Essa fala dos atores supracitados sintetiza bem o que o filósofo alemão do século XIX, Friedrich Nietzsche, já mencionava em sua obra: "A vontade de potência". Lá Nietzsche nos leva a refletir sobre a moral e sua função controladora e repressora. Para ele a moral é repressora à medida que impede o homem de ser aquilo que determina sua natureza humana, isto é, exercer os predicados de sua parte animal.

Para Nietzsche toda a moral ocidental associou ser racional a ser moralista e isso representou o certo, o bom e o belo desejável em oposição ao ruim, ao feio e ao indesejável. Assim – no mundo antigo – Sócrates estabeleceu que a vida física não era a mais digna de ser vivida, mas que ela era apenas preparação para a outra vida – a da alma – a verdadeira vida, porque era eterna, uma vez que Sócrates dizia que a alma era imortal.

O mundo cristão medieval endossou várias ideias de Sócrates descritas sob o entendimento de Platão; mas é claro, renegando, por exemplo, a ideia de reencarnação, impossível para o cristianismo. De qualquer forma, mesmo com o cristianismo entendendo que o homem não tem uma "alma" como diziam Sócrates e Platão, mas um "pneuma" um "sopro divino" que após a morte volta para Deus e que renascerá em novo corpo somente no dia do Juízo Final, ainda assim a ideia de que esta vida é apenas uma preparação para uma próxima, "melhor", persiste, pois as igrejas cristãs afirmam que a próxima vida será melhor que esta e será em plenitude, conforme dizem os evangelhos.

Immanuel Kant 1724-1804
Autor de "Crítica da Razão Pura"
Conhecido por ter expulsado Deus
pela porta da frente em seu projeto filosófico
e o readmitido pela porta dos fundos.
A Modernidade, por outro lado – embora nasça no bojo da Reforma Protestante de Lutero e desencadeie o Iluminismo europeu – ainda não conseguiu se livrar dessas ideias, mesmo com vários pensadores tentando desmistificar o cristianismo da igreja católica ou protestante como arcabouço teológico e filosófico. Ainda não se substituiu a ética cristã que impregna o direito e a moral ocidentais desde a idade Média por outros valores. No mundo medieval a ordem era seguir o rei porque ele estava no poder endossado pelo Papa e este era Papa porque "deus queria". Na modernidade, mesmo após a substituição do rei pela República, a ordem estabelecida ainda mandava adorar o Estado e as igrejas ainda serviam de veículo ideológico poderoso para convencer o povo a obedecer as leis. Nem Jean-Jacques Rousseau ou Immanuel Kant conseguiram elaborar uma ética que escape dos preceitos cristãos, ainda que suas propostas tendam a um tipo de racionalismo.

Nietzsche é o primeiro a construir uma filosofia que faz um retorno, um retorno ao homem como um todo, procurando nas entrelinhas humanas o homem integral que ele chamava de "além-do-homem". Esse ser humano que ao mesmo tempo é capaz de atos heroicos, sublimes, corajosos e em defesa até de outrem, mas também dos atos mais violentos, mais desprezíveis – na ótica cristã – e mais egoístas para defender a si próprio, esse é o homem real. Para Nietzsche o homem não é o que querem os valores cristãos. O homem teria sido, para ele, "estrangulado" pela moral socrático-cristã. Para Nietzsche, tal qual para Hobbes e Kant, o homem não é bom nem mal, ele é egoísta. Assim, estariam equivocadas as religiões que preconizam que o ser humano é "mau" por natureza e por isso ele, o homem, precisa "lutar" pela sua salvação. Caso o ser humano não seja mau como dizem os religiosos, perde o sentido esse esforço em ser "bom", em salvar sua alma. Perde o sentido buscar sentido para a vida que não seja aquele que ela mesma apresenta: lutar, cada um por si mesmo, para satisfazer suas necessidades básicas.

Friedrich Nietzsche
1844-1900
Nietzsche nos faz pensar que é um erro afirmar que ser egoísta é "errado". Para ele o erro está em sufocar o egoísmo porque é graças ao egoísmo que cada indivíduo pode se manter vivo. É do egoísmo que sai a "vontade de vida". O único sentido mesmo da vida, então, que não é metafísico, é suprir esse egoísmo. Logo, Nietzsche diz que o cristianismo erra ao apregoar que a principal motivação da vida de cada homem e mulher é desmantelar esse egoísmo. É um erro acreditar que se esse egoísmo desaparecer, teria-se a paz. É por isso que, para Nietzsche, o cristianismo ao invés de promover a vida, ele a renega. A renega ao dizer que o egoísmo deve desaparecer para dar lugar à compaixão. O filósofo conclui, daí, que o cristianismo é a religião do niilismo porque mata a vontade de viver ao matar o egoísmo do homem. Então, ao invés de combater o niilismo, o cristianismo o promove quando reprime e tenta matar a motivação da vida, que não é só o egoísmo, mas os instintos em geral.

O cristianismo é então (como ele diz em sua obra "O Anticristo") uma praga! Praga porque insiste que o homem é pecador, que nasce doente pelo pecado – como dizem as igrejas cristãs. E se essas ideias de pecado, de culpa desaparecessem, ainda se precisaria da igreja, de "deus"? Não desapareceriam as ideias de bem e mal, bom e belo, ruim e feio? O homem não reconheceria – por fim – que sua "natureza" é amoral e que as regras morais que conhecemos são ficções criadas pelos "melhoradores" ou "reformadores" da sociedade – igreja, Estado, comunidade? Mas mais ainda, corroborando as perguntas, Nietzsche – e no século XX, Foucault – nos fazem perceber que as convenções sociais, a moral, a ética de determinada comunidade – em suas entrelinhas – sempre delegam "poderes" a alguém (àqueles que criam os valores: como o sacerdote no passado – hoje padres, pastores, líderes religiosos em geral; ao guerreiro – hoje ao chefe militar –; ao dirigente do Estado – presidente ou Parlamento). Todos estes agentes exercem sobre as demais pessoas o poder, o controle. E Foucault ainda nos pergunta: "por que nos submetemos a este poder?" Responde ele: "porque o poder é uma relação, ele está diluído nas estruturas da sociedade.

O poder se manifesta não somente de cima para baixo, mas de baixo para cima também" (aqui citado livremente). Em outras palavras, Foucault nos faz pensar que aceitamos o poder político, econômico, moral, ético não porque sejamos submissos a ele, temamos as autoridades, mas porque em nosso íntimo também desejamos o poder. Uma pessoa pode ser pobre, trabalhar como "flanelinha" no trânsito. Alguém poderia classificá-la facilmente como uma pessoa "oprimida" – sob a ótica maniqueísta marxista ortodoxa – por exemplo; mas essa análise é apressada, pois da mesma forma que tal pessoa é pobre, é "oprimida" pelo Estado que não dá condições suficientes (no caso dos países pobres) para que ela estude, tenha emprego e goze das benesses da civilização, ela também exerce poder. Onde? Em um exemplo nosso, quando ameaça veladamente arranhar o carro de um cidadão que estacione pelas ruas das nossas cidades e que não aceite a oferta de seus "cuidados". Quem é que se sente livre e à vontade para recusar a "ajuda" do flanelinha? Por que o cidadão não se sente livre para recusá-la? Não é porque, embora de forma velada, o cidadão teme que a recusa signifique que o ofertante arranhe ou danifique seu bem?

Michel Foucault
1926-1984
O "oprimido" também exerce poderes em casa com sua esposa e filhos quando está no controle da casa. A mulher "oprimida" pelo empregador pode por este ser explorada, mas também pode oprimir seu seus filhos ao espancar-lhes. Pode oprimir com palavras ou atos a sogra idosa a quem "cuida", o cunhado doente, a mãe senil.

Apesar de todas as suas críticas, Nietzsche não propõe o império da "barbárie" e da "imoralidade". Pensar com Nietzsche significa repensar nossos padrões de conduta moralistas – pensar em quão é realmente possível seguir com felicidade os padrões que as religiões determinam para o homem.

A filosofia de Nietzsche nos leva a outras perguntas como: há legitimidade e autoridade em algumas pessoas que se dizem evangélicas e que não ingerem bebidas alcoólicas, mas desejam em seu íntimo, que todas aquelas que as consomem vão-se para o inferno?

Que autoridade tem um crente para "condenar", agredir, difamar outras pessoas que não acreditam na Bíblia, no Al Corão, no Bagavadguitá? A resposta também serve para a pergunta contrária: Tem autoridade um não-crente para condenar, agredir ou difamar quem acredita?

Nietzsche nos provoca – como devem fazer os filósofos – a pensar: como seria se o homem fosse e agisse 'naturalmente'? Sem se reprimir com a moral, com a religião, com as tradições, com seus preconceitos sobre o mundo e sobre si mesmo?

O que podemos perguntar depois de Nietzsche é: que fundamento terá nossa razão se ela também não passar de mero instinto de sobrevivência? E se Deus não existir não será vã a fé? Mas como não se pode provar que Deus exista ou não exista, o homem desenvolve e cultiva outros "instrumentos" de sobrevivência além da razão, um deles é a fé que, mesmo não podendo provar a solidez de seu fundamento – Deus – continua viva, servindo de motivação para as pessoas viverem, sobreviverem, criarem, sonharem com um mundo melhor, e manterem a esperança. Será que, assim como a verdade para Nietzsche é uma "ficção útil" assim podemos classificar também a fé?

Mas e em relação à violência, de onde ela vem?

Para a filosofia nietzscheana a violência também faz parte do ser humano. Não há sociedade que até hoje não tenha elaborado algum tipo de manifestação violenta. Os antigos sumérios sacrificavam pessoas aos deuses. Babilônios, astecas e maias também. Os judeus, gregos e romanos sacrificavam pombos, bodes e bois a seus deuses. Algumas religiões animistas como certos desdobramentos do "batuque" e da umbanda ainda o praticam. Na mitologia judaico-cristã adotada pelo catolicismo, o deus cristão exigiu o sacrifício do personagem Jesus para que a humanidade fosse salva e sua ira causada pelos pecados humanos fosse 'aplacada'. Na missa os cristãos "comem" e "bebem" seu "deus" (na hóstia – que significa etimologicamente 'vítima'   e no vinho que são, para eles, corpo e sangue de Jesus) ou o sacrifício da missa.

A violência é praticada pela mãe com o filho(a) no ato considerado por muitos um "ato pedagógico": o bater na criança para educá-lo(a), para impor-lhe limites. A violência é exercida por todo aquele que, de alguma forma, lança mão de força física para doutrinar seu cão, seu gato e etc. E, aqui, uma pergunta: o que é doutrinar, senão fazer com que outrem (o filho, o cão, o gato) se comportem dentro de certas regras que o doutrinador quer? Duas perguntas capitais saem daí: "que direito tem alguém de se intitular doutrinador sendo que sua doutrinação parte do princípio de que este quer que sua vontade predomine? E: por que, então, tem que predominar a vontade de uns sobre os outros?" Esse, seria na concepção de Nietzsche, nada mais que o exercício do egoísmo.

Mas para Nietzsche não é assim tão simples. Sua resposta é mais elaborada. Para ele, isso é a "vontade de potência", e é um ato presente em todo o universo – por exemplo – ele diz que as espécies animais têm a vontade de potência e ela se exerce quando esses animais procuram se reproduzir, quando eles entram em conflito pelo alimento, pela água, pelo território. Isso, para Nietzsche, é o exercício pleno da busca pela satisfação do egoísmo, mas de um "egoísmo positivo", sendo que é devido a essa busca que a vida tem sentido de ser vivida. A "vontade de potência" é esse ato de querer desenvolver-se ainda mais aquilo que já se é. A semente tem o princípio de ser árvore e luta para se desenvolver em plenitude. O animal filhote luta e mata outros para ser o dominador e garantir para si território, caça, fêmeas para se reproduzir. E o homem, faz diferente?
Para Nietzsche o homem age da mesma forma, apenas por outros meios.

Assim a violência é uma das formas de manifestação da "vontade de potência". Daí posso induzir, para analisar a fala do personagem Yuri Orlov no filme "O senhor das armas" que a violência está institucionalizada. Ela se institucionaliza antes mesmo da concepção. Afinal, para que alguém nasça, alguém tem que lutar para que nasça. Ao nascer, se conseguirmos sobreviver às dificuldades do útero, somos vencedores, mas "matamos" nossa mãe que, durante a gravidez, nos dá, mesmo que não queira, seus melhores nutrientes corporais, suas forças para que nasçamos. Depois é a família que nos doutrina, imbuída da cultura dominante e cuja doutrinação, caso não sigamos, nos penaliza, nos castiga. E o comportamento da religião não é diferente. Tem-se, por exemplo, em três grandes religiões contemporâneas (judaísmo, cristianismo e islamismo), a exibição de exemplos de mártires que morreram por, ou em nome de Deus. E essas três religiões clássicas sempre exigiram batismo de sangue para seu 'deus'. O judaísmo porque valoriza o sacrifício, a morte por entrega a 'deus'. Deus acima de tudo! O cristianismo católico, pela valorização do sangue de seus "mártires" perseguidos pelo "amor à palavra". O islamismo também embarcou na mesma filosofia pregando a "guerra aos infiéis"!

Mesmo correndo o risco de o leitor pensar que estou "inspirado pelo diabo" em minha análise, me arrisco a endossar que grandes fatos históricos são frutos direto de ações consideradas violentas. Egípcios, Babilônios, Persas conquistaram Ocidente e Oriente levando de um extremo ao outro do mundo os numerais arábicos, as noções de contagem, escrita, organização político-militar, a pólvora, o astrolábio, tudo  graças às guerras.



Gregos, judeus e romanos também promoveram guerras. Será que restaria hoje alguém do povo judeu caso o personagem Moisés não tivesse assassinado um guarda egípcio – uma ação violenta que causou a morte de uma pessoa que cumpria as leis de seu país – para libertar seu povo? Israel de hoje existiria se Moisés não incitasse seu povo a combater e massacrar os filisteus que habitavam a chamada "terra prometida" para dela se apossar?

E Alexandre, o Grande, se ele não tivesse conquistado o mundo oriental, seria conhecida a cultura ocidental? O mesmo se daria com a cultura latina que é nosso berço? E no mundo medieval os próprios cristãos não usaram a violência física e ideológica para dividir e conquistar outras culturas, afirmando que o que faziam era em nome de seu "deus"?

O desafio ao leitor é não pensar nesses fatos como "bons" ou "ruins". Uma guerra não é boa nem má. Assim como uma faca não é boa nem má, elas são o que são. O uso que se dá a elas, a intencionalidade dos atos que se praticam com elas é que alguns classificam como bons ou maus. Uma guerra sempre será "ruim" para o perdedor e boa para o vencedor, ruim para as vítimas (civis ou militares), mas boa para o soldado herói, para os governos de países aliados, para as empresas que lucraram com ela. Uma faca será algo "bom" para o indivíduo que corta a corda e se livra da forca, mas algo "ruim" para alguém que é esfaqueado.

E na modernidade... a escravidão não alavancou os grandes impérios fisiocratas, o comércio, a Revolução Industrial? O capitalismo, com as 20 horas - ou mais de trabalho imposto aos operários do século XIX - não propiciou o exercício da "vontade de potência" da Inglaterra, Estados Unidos da América, França, Itália, Alemanha e outros? E, se enganam aqueles que acreditam que nos Estados "socialistas" haja "justiça" plena, equanimidade, pois aqueles países também investiram altos esforços humanos (com sacrifícios de pessoas e animais), para alcançar e manter um nível elevado de progresso técnico-industrial.

E na pós-modernidade surge ainda a violência simbólica denunciada por Bourdieu e Passeron, que é aquele tipo de violência que nos cercava e nos invadia nas propagandas de cigarros (lembrando que nos anos 1970 era bem cotada socialmente a pessoa que fumava, e que alguns médicos indicavam o fumo como medicamento contra o cansaço mental, hoje conhecido como estresse), bebidas (como a propagação de que consumir bebida alcoólica significa autonomia, emancipação); ter um carro signifique status. Mas a violência simbólica é velada, por isso tenta se parecer com o que menos ela é: com liberdade de escolha!



De volta ao "Senhor das Armas", o filme mostra que a guerra sempre existiu e que a violência está aí e todos a praticam em maior ou menor escala. Ela sempre deu lucros para governos, fábricas de armas, contrabandistas, vendedores finais. É o instrumento fundamental dos soldados. Mundo afora muitos empresários, staffs governamentais e políticos perderiam o poder caso não dispusessem de exércitos poderosos pelas armas, especialmente pelas armas de fogo. "As balas mudam os governos mais rápido que os votos", diz no filme o personagem Simeon Weisz, um mercador internacional de armamentos. Ele está errado?

A maioria das Constituições de países pelo mundo permite a seus cidadãos terem armas de fogo. Em vários países árabes as pessoas podem ter em casa fuzis como a famosa AK-47. Na Suíça a maioria dos cidadãos têm em casa – sendo por ela responsável – fuzis que serão utilizados para a defesa daquele país em caso de guerra, já que a Suíça não tem um exército regular, mas todos os cidadãos são militares armados. Na África há localidades (e isso não é simples piada do filme "O senhor das armas") em que se pode comprar fuzis, metralhadoras ao preço de uma galinha. As armas sempre fascinaram a humanidade. Elas sempre permitiram a uns esmagar outros. Aos exércitos – cujos reis desejavam conquistar territórios vizinhos para aumentar a área de gozo de seus cidadãos e também o seu poder – conquistar terras, cidades, fortunas, riquezas minerais.

A Segunda Guerra Mundial, especialmente, permitiu avanços tecnológicos imensos como o aperfeiçoamento do colete salva-vidas (à custas das experiências com seres humanos vivos, realizadas pelos alemães), o nascimento dos foguetes modernos, de bombas melhor elaboradas jogadas de aviões. Aperfeiçoou-se a aviação militar donde, posteriormente, a civil. Os transportes e logística no século XX. E o que está por trás de todo este progresso? Qual sua motivação? A "vontade de potência" de que nos fala Nietzsche?


E a violência é o instrumento pelo qual essa "vontade" se realiza, geralmente, embora não a única.

Após a institucionalização do Estado entre os seres humanos, iniciou-se a tradição – e surgiram as filosofias – para justificar que o melhor para a humanidade se manter viva era abandonar o que Hobbes no século XVI chamou de "estado de natureza" (a barbárie) pelo "estado de paz" que seria garantido pelas leis, costumes, pela moral e pela ética. Acreditou-se, a partir daí, que a humanidade "melhoraria", progrediria. Que a violência deveria ser erradicada e que ela desapareceria porque as pessoas perceberiam que é muito "melhor" viver em uma sociedade em que ninguém se mata por uma fonte de água, por uma peça de caça, pela "posse" de uma parceira sexual.

Freud chega mesmo a dizer em "O mal-estar da cultura", de 1930, que o homem "sacrificou a liberdade que possuía no estado primitivo de barbárie pela segurança da vida em sociedade." Mas ele pergunta se o sacrifício compensou ao homem e termina sua reflexão sem nos dar uma resposta.

Guerrilheiras das FARC.
Na luta por sua "vontade de potência"?

É claro que ninguém gosta da violência urbana que aumenta em nossas cidades a cada dia, tanto em países ricos e pobres. Porém, quando se fala em violência é comum as pessoas lembrarem-se de assassinatos em periferias. Guerras de traficantes contra eles mesmos ou as forças de segurança do Estado. Lembra-se também das guerras distantes para nós brasileiros, como as guerras da antiga Iugoslávia, dos grupos separatistas da Irlanda, da Espanha, das guerras entre países miseráveis na África. Guerras entre árabes e judeus. Mas a violência não é só isso. Ela não se dá apenas na guerra, embora este seja sua expressão mais enfática.

A violência está dentro do homem. É ou não parte do instinto de sobrevivência da humanidade? A mentira, outra forma de violência, é indispensável para alguém viver em sociedade hoje, infelizmente, ou não? Sua esposa cortou o cabelo e o penteado está horrível, você falaria a verdade para ela ou diria outra coisa? Você não tem dinheiro algum e precisa de crédito de outros bancos para pagar as dívidas, contaria para o agiota que está falido? Uma pessoa está com depressão profunda e já tentou se suicidar algumas vezes; e você descobre que a mãe dela está com câncer, você contaria para essa pessoa? Você descobre uma traição conjugal de um marido cuja esposa é obcecada por ele, mas ela é também sua melhor amiga, você mentiria sobre o tema se ela pedisse sua opinião ou omitiria o que sabe? Há "n" situações onde mentir ou omitir fatos surte um efeito menos devastador na vida em sociedade, e as pessoas o fazem a fim de não causar mal-estares, desavenças e até mortes. Isso é bom ou mau?

Por fim, lembro mais uma vez de Sigmund Freud, de um texto seu, o da nota de rodapé número 47 do seu livro "O mal-estar na cultura" onde ele afirma – ao refletir sobre a educação:

o fato de a educação atual ocultar ao jovem o papel que a sexualidade representará em sua vida não é a única censura que se lhe deve fazer. Ela também peca ao não prepará-lo para a agressão de que ele está destinado a ser objeto. Ao lançar os jovens na vida com uma orientação psicológica tão incorreta, a educação procede como se munisse com roupas de verão e mapas dos lagos do norte da Itália pessoas que farão uma expedição polar. Torna-se claro, aí, um certo (sic) abuso das exigências éticas. Não causaria grande prejuízo ao rigor das mesmas se a educação dissesse: 'É assim que as pessoas deveriam ser para se tornarem felizes e fazerem felizes as outras; mas é preciso contar com o fato de que não são assim'. Em vez disso, deixa-se o jovem acreditar que todos os outros cumprem os preceitos éticos, ou seja, que são virtuosos. Com isso se fundamenta a exigência de que ele também venha a sê-lo.


Na passagem acima Freud ironiza a escola apontando seu grande fracasso: não cumprir o que promete. Ora, se a escola sempre se deu por função, como todo o aparato dos professores, criando toda uma estrutura burocrática para justificar sua existência sobre o mito de que ela educa para a vida, Freud denuncia que isso é falso. A escola, sugere ele, não prepara as pessoas para a vida.

Sigmund Freud
         1856-1939
Antes do que preparar alguém para a dureza que é a vida, de dar-lhe instrumentos necessários e seguros para qualquer estudante perceber as falácias do mundo, as mentiras que as pessoas lhe contarão para tirar vantagem do estudante que sai "nu de malícia" da escola, a escola o "prepara" para viver em um mundo ideal, algo que não existe a não ser na fantasia dos programas escolares, no pensamento filosófico, na mente dos "melhoradores" da humanidade como se propõem muitos autores das áreas da ética e da moral, da filosofia ou da teologia.

E se ser cão for sua melhor parte? A escola pode estar cometendo o equívoco de matar o "cão" dentro de seus alunos. Não falo da violência pura e gratuita. Falo da "vontade de potência" do indivíduo, de fazer as pessoas se tornarem aquilo que elas são. De dar-lhes chances para concretizar seus talentos, dons e não as obrigarem a ouvir o tempo todo aulas que são ministradas da mesma forma que há dois mil anos nas academias gregas, cujos conteúdos são facilmente mais assimilados, hoje, ao se assistir um vídeo do que pela explanação oral, apenas. E isso não é novidade, Nietzsche propõe em sua obra "Sobre o Futuro de Nossos Estabelecimentos de Ensino" uma escola em que se deixasse desenvolver na criança suas aptidões naturais e não fossem os alunos, cujos talentos fossem conhecidos, obrigados a estudar como se obriga na escola atual alguém que será músico a estudar biologia, dentre outras disciplinas, por anos

Por fim, por isso, que pensar que o mundo humano "é perfeito e que todas as pessoas são felizes" (Legião Urbana)  é um grande engano! O texto de Freud é um tiro de misericórdia nos projetos que visam a chamada "educação para a paz" da Organização Mundial das Nações Unidas. Freud faz pensar que a escola ainda hoje dá mapas dos lagos do norte da Itália e roupas de verão para quem, na verdade, fará uma viagem polar. Quando Freud denuncia a escola e seu fracasso para ensinar alguém a ser humano, eu lembro que, em outras palavras, podemos dizer que a escola faz o mesmo que Sísifo, o personagem da mitologia grega que foi obrigado a rolar uma pedra gigantesca morro acima, mas que sempre escorregava novamente para a base, obrigando o imortal personagem ao trabalho eterno e inglório. E se ser cão for sua melhor parte?