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quinta-feira, 31 de julho de 2014

TEORIA DA RELATIVIDADE E TEMPO: KANT X EINSTEIN


Gerson N. L. Schulz
Professor de Filosofia




Uma grande discussão atual gira em torno da origem do universo. Atualmente se calcula que a idade do Cosmos seja de aproximadamente 15 bilhões de anos. O Big-Bang é a teoria mais aceita para explicar essa origem. Porém, algumas perguntas filosóficas surgem daí, como por exemplo: De onde surgiu o universo? Havia um "antes"? Se, segundo Kant (1724-1804), o tempo e o espaço encontram-se dentro da mente humana como condições a priori, seria possível existir um "antes", isto é, um tempo e um espaço fora do tempo e do espaço do universo como conhecemos? Estas são algumas das perguntas levantadas por Bernard Piettre em seu livro "Filosofia e Ciência do Tempo" (Edusc, 1997).

Para Piettre, a teoria da relatividade de Einstein fragilizou a teoria kantiana porque comprovou que a luz pode ser onda e partícula ao mesmo tempo. Kant acreditava (por intuição) que uma partícula está dentro do espaço e do tempo. A teoria einsteiniana não permite que se localize uma partícula dentro de um espaço-tempo a priori como queria Kant, então cai por terra a teoria kantiana que supõe a mediação da intuição do tempo e do espaço para compreender a realidade.

"A persistência da Memória"
Salvador Dali
1931


Em outras palavras, a teoria da Relatividade de Einstein chega às seguintes conclusões: o espaço-tempo não está contido dentro do universo, mas se faz à medida constante da matéria e da energia; o campo gravitacional deste universo determina seu tamanho; as partículas de luz não podem ser localizadas dentro do espaço-tempo por causa de seu comportamento de corpúsculo e de onda, isso derruba os argumentos kantianos que dizem que primeiro vêm o tempo-espaço e depois se dão os fenômenos. Para Einstein é possível que a própria matéria e a energia (fenômenos), à medida que avancem no espaço-tempo, criem o espaço e o tempo. Logo, o universo em expansão não está ocupando um espaço fora dele mesmo como se pensava, mas este é criado numa sucessão de momentos. Destarte, seria impossível existir um "antes" porque não havia tempo neste "antes" do Big-Bang.


Albert Einstein
1879-1955
Autor da Teoria da Relatividade Geral
que remodelou toda a Física Moderna

Conclui Piettre, "não são o espaço e tempo que são os elementos de base, mas as próprias partículas fundamentais de matéria ou energia. Sem elas não poderíamos representar a imagem que fazemos de um espaço e um tempo contínuos e detalháveis ao infinito. Os elétrons, assim como outras partículas fundamentais, não existem no espaço e no tempo. São espaço e tempo que existem em função deles.

Para Einstein isso prova que é a luz, à medida do seu avanço, que "desenrola" o espaço-tempo que separa um observador de um corpo no espaço. Por conseguinte, o universo não preencheria um espaço-tempo vazio fora dele mas aumentaria seu espaço-tempo internamente. O que se sabe ao certo é que se o universo se manifesta por uma simetria de pares de partículas, o tempo é efeito de uma quebra de simetria entre matéria e antimatéria.

IMMANUEL KANT
1724-1804
Por fim, isso sugere a origem da causa do movimento, e do fenômeno que chamamos "tempo". Nesse sentido, Piettre constata: se existe uma indissociabilidade do tempo e da matéria, existe um limite além onde o tempo não existe mais. Isto implica a hipótese de que antes do surgimento do universo (tempo zero) não havia tempo algum, então não cabe especular sobre o que havia antes.

sexta-feira, 25 de julho de 2014

ANÁLISE FILOSÓFICA DO FILME: O SENHOR DAS ARMAS



Gerson Nei Lemos Schulz



Como dizem os atores Nicolas Cage e Jared Leto, interpretando os personagens Yuri Orlov e Vitaly Orlov em "Lord of War" ou "O Senhor das Armas", no Brasil, cap. 2): Yuri Orlov entra na cozinha do restaurante de seus pais e, após provar a comida que seu irmão está cozinhando e fingir passar mal (ironizando o irmão) ao sair lê em uma placa na porta do recinto: Beware of the dog e pergunta a seu irmão: Cuidado com o cão? Você não tem cão, tá assustando as pessoas? Vitaly: Não, é para me assustar, para me lembrar de ter cuidado com o cão em mim, o cão que quer destruir tudo que se mexe, que quer lutar e matar os cachorros mais fracos. Acho que é... para me lembrar de ser mais humano. Yuri: Ser cão não faz parte de ser humano? E se essa fosse a melhor parte de você, ser cão? E se você fosse apenas um cão de duas pernas? Ocorre uma pausa e Vitaly diz: – Você precisa de ajuda. Yuri ironiza: – 'tá fedendo aqui.

Existem mais de 550 milhões de armas de fogo em circulação no mundo,
isso equivale a uma arma pra cada doze pessoas no planeta.
A única pergunta é... como podemos armar as outras onze?

Yuri Orlov/Nicolas Cage
In: O senhor das armas. Propriedade da
Entertainment Manufacturing Company,
Ascendant Pictures,
Saturn Films, USA: 2005.

Essa fala dos atores supracitados sintetiza bem o que o filósofo alemão do século XIX, Friedrich Nietzsche, já mencionava em sua obra: "A vontade de potência". Lá Nietzsche nos leva a refletir sobre a moral e sua função controladora e repressora. Para ele a moral é repressora à medida que impede o homem de ser aquilo que determina sua natureza humana, isto é, exercer os predicados de sua parte animal.

Para Nietzsche toda a moral ocidental associou ser racional a ser moralista e isso representou o certo, o bom e o belo desejável em oposição ao ruim, ao feio e ao indesejável. Assim – no mundo antigo – Sócrates estabeleceu que a vida física não era a mais digna de ser vivida, mas que ela era apenas preparação para a outra vida – a da alma – a verdadeira vida, porque era eterna, uma vez que Sócrates dizia que a alma era imortal.

O mundo cristão medieval endossou várias ideias de Sócrates descritas sob o entendimento de Platão; mas é claro, renegando, por exemplo, a ideia de reencarnação, impossível para o cristianismo. De qualquer forma, mesmo com o cristianismo entendendo que o homem não tem uma "alma" como diziam Sócrates e Platão, mas um "pneuma" um "sopro divino" que após a morte volta para Deus e que renascerá em novo corpo somente no dia do Juízo Final, ainda assim a ideia de que esta vida é apenas uma preparação para uma próxima, "melhor", persiste, pois as igrejas cristãs afirmam que a próxima vida será melhor que esta e será em plenitude, conforme dizem os evangelhos.

Immanuel Kant 1724-1804
Autor de "Crítica da Razão Pura"
Conhecido por ter expulsado Deus
pela porta da frente em seu projeto filosófico
e o readmitido pela porta dos fundos.
A Modernidade, por outro lado – embora nasça no bojo da Reforma Protestante de Lutero e desencadeie o Iluminismo europeu – ainda não conseguiu se livrar dessas ideias, mesmo com vários pensadores tentando desmistificar o cristianismo da igreja católica ou protestante como arcabouço teológico e filosófico. Ainda não se substituiu a ética cristã que impregna o direito e a moral ocidentais desde a idade Média por outros valores. No mundo medieval a ordem era seguir o rei porque ele estava no poder endossado pelo Papa e este era Papa porque "deus queria". Na modernidade, mesmo após a substituição do rei pela República, a ordem estabelecida ainda mandava adorar o Estado e as igrejas ainda serviam de veículo ideológico poderoso para convencer o povo a obedecer as leis. Nem Jean-Jacques Rousseau ou Immanuel Kant conseguiram elaborar uma ética que escape dos preceitos cristãos, ainda que suas propostas tendam a um tipo de racionalismo.

Nietzsche é o primeiro a construir uma filosofia que faz um retorno, um retorno ao homem como um todo, procurando nas entrelinhas humanas o homem integral que ele chamava de "além-do-homem". Esse ser humano que ao mesmo tempo é capaz de atos heroicos, sublimes, corajosos e em defesa até de outrem, mas também dos atos mais violentos, mais desprezíveis – na ótica cristã – e mais egoístas para defender a si próprio, esse é o homem real. Para Nietzsche o homem não é o que querem os valores cristãos. O homem teria sido, para ele, "estrangulado" pela moral socrático-cristã. Para Nietzsche, tal qual para Hobbes e Kant, o homem não é bom nem mal, ele é egoísta. Assim, estariam equivocadas as religiões que preconizam que o ser humano é "mau" por natureza e por isso ele, o homem, precisa "lutar" pela sua salvação. Caso o ser humano não seja mau como dizem os religiosos, perde o sentido esse esforço em ser "bom", em salvar sua alma. Perde o sentido buscar sentido para a vida que não seja aquele que ela mesma apresenta: lutar, cada um por si mesmo, para satisfazer suas necessidades básicas.

Friedrich Nietzsche
1844-1900
Nietzsche nos faz pensar que é um erro afirmar que ser egoísta é "errado". Para ele o erro está em sufocar o egoísmo porque é graças ao egoísmo que cada indivíduo pode se manter vivo. É do egoísmo que sai a "vontade de vida". O único sentido mesmo da vida, então, que não é metafísico, é suprir esse egoísmo. Logo, Nietzsche diz que o cristianismo erra ao apregoar que a principal motivação da vida de cada homem e mulher é desmantelar esse egoísmo. É um erro acreditar que se esse egoísmo desaparecer, teria-se a paz. É por isso que, para Nietzsche, o cristianismo ao invés de promover a vida, ele a renega. A renega ao dizer que o egoísmo deve desaparecer para dar lugar à compaixão. O filósofo conclui, daí, que o cristianismo é a religião do niilismo porque mata a vontade de viver ao matar o egoísmo do homem. Então, ao invés de combater o niilismo, o cristianismo o promove quando reprime e tenta matar a motivação da vida, que não é só o egoísmo, mas os instintos em geral.

O cristianismo é então (como ele diz em sua obra "O Anticristo") uma praga! Praga porque insiste que o homem é pecador, que nasce doente pelo pecado – como dizem as igrejas cristãs. E se essas ideias de pecado, de culpa desaparecessem, ainda se precisaria da igreja, de "deus"? Não desapareceriam as ideias de bem e mal, bom e belo, ruim e feio? O homem não reconheceria – por fim – que sua "natureza" é amoral e que as regras morais que conhecemos são ficções criadas pelos "melhoradores" ou "reformadores" da sociedade – igreja, Estado, comunidade? Mas mais ainda, corroborando as perguntas, Nietzsche – e no século XX, Foucault – nos fazem perceber que as convenções sociais, a moral, a ética de determinada comunidade – em suas entrelinhas – sempre delegam "poderes" a alguém (àqueles que criam os valores: como o sacerdote no passado – hoje padres, pastores, líderes religiosos em geral; ao guerreiro – hoje ao chefe militar –; ao dirigente do Estado – presidente ou Parlamento). Todos estes agentes exercem sobre as demais pessoas o poder, o controle. E Foucault ainda nos pergunta: "por que nos submetemos a este poder?" Responde ele: "porque o poder é uma relação, ele está diluído nas estruturas da sociedade.

O poder se manifesta não somente de cima para baixo, mas de baixo para cima também" (aqui citado livremente). Em outras palavras, Foucault nos faz pensar que aceitamos o poder político, econômico, moral, ético não porque sejamos submissos a ele, temamos as autoridades, mas porque em nosso íntimo também desejamos o poder. Uma pessoa pode ser pobre, trabalhar como "flanelinha" no trânsito. Alguém poderia classificá-la facilmente como uma pessoa "oprimida" – sob a ótica maniqueísta marxista ortodoxa – por exemplo; mas essa análise é apressada, pois da mesma forma que tal pessoa é pobre, é "oprimida" pelo Estado que não dá condições suficientes (no caso dos países pobres) para que ela estude, tenha emprego e goze das benesses da civilização, ela também exerce poder. Onde? Em um exemplo nosso, quando ameaça veladamente arranhar o carro de um cidadão que estacione pelas ruas das nossas cidades e que não aceite a oferta de seus "cuidados". Quem é que se sente livre e à vontade para recusar a "ajuda" do flanelinha? Por que o cidadão não se sente livre para recusá-la? Não é porque, embora de forma velada, o cidadão teme que a recusa signifique que o ofertante arranhe ou danifique seu bem?

Michel Foucault
1926-1984
O "oprimido" também exerce poderes em casa com sua esposa e filhos quando está no controle da casa. A mulher "oprimida" pelo empregador pode por este ser explorada, mas também pode oprimir seu seus filhos ao espancar-lhes. Pode oprimir com palavras ou atos a sogra idosa a quem "cuida", o cunhado doente, a mãe senil.

Apesar de todas as suas críticas, Nietzsche não propõe o império da "barbárie" e da "imoralidade". Pensar com Nietzsche significa repensar nossos padrões de conduta moralistas – pensar em quão é realmente possível seguir com felicidade os padrões que as religiões determinam para o homem.

A filosofia de Nietzsche nos leva a outras perguntas como: há legitimidade e autoridade em algumas pessoas que se dizem evangélicas e que não ingerem bebidas alcoólicas, mas desejam em seu íntimo, que todas aquelas que as consomem vão-se para o inferno?

Que autoridade tem um crente para "condenar", agredir, difamar outras pessoas que não acreditam na Bíblia, no Al Corão, no Bagavadguitá? A resposta também serve para a pergunta contrária: Tem autoridade um não-crente para condenar, agredir ou difamar quem acredita?

Nietzsche nos provoca – como devem fazer os filósofos – a pensar: como seria se o homem fosse e agisse 'naturalmente'? Sem se reprimir com a moral, com a religião, com as tradições, com seus preconceitos sobre o mundo e sobre si mesmo?

O que podemos perguntar depois de Nietzsche é: que fundamento terá nossa razão se ela também não passar de mero instinto de sobrevivência? E se Deus não existir não será vã a fé? Mas como não se pode provar que Deus exista ou não exista, o homem desenvolve e cultiva outros "instrumentos" de sobrevivência além da razão, um deles é a fé que, mesmo não podendo provar a solidez de seu fundamento – Deus – continua viva, servindo de motivação para as pessoas viverem, sobreviverem, criarem, sonharem com um mundo melhor, e manterem a esperança. Será que, assim como a verdade para Nietzsche é uma "ficção útil" assim podemos classificar também a fé?

Mas e em relação à violência, de onde ela vem?

Para a filosofia nietzscheana a violência também faz parte do ser humano. Não há sociedade que até hoje não tenha elaborado algum tipo de manifestação violenta. Os antigos sumérios sacrificavam pessoas aos deuses. Babilônios, astecas e maias também. Os judeus, gregos e romanos sacrificavam pombos, bodes e bois a seus deuses. Algumas religiões animistas como certos desdobramentos do "batuque" e da umbanda ainda o praticam. Na mitologia judaico-cristã adotada pelo catolicismo, o deus cristão exigiu o sacrifício do personagem Jesus para que a humanidade fosse salva e sua ira causada pelos pecados humanos fosse 'aplacada'. Na missa os cristãos "comem" e "bebem" seu "deus" (na hóstia – que significa etimologicamente 'vítima'   e no vinho que são, para eles, corpo e sangue de Jesus) ou o sacrifício da missa.

A violência é praticada pela mãe com o filho(a) no ato considerado por muitos um "ato pedagógico": o bater na criança para educá-lo(a), para impor-lhe limites. A violência é exercida por todo aquele que, de alguma forma, lança mão de força física para doutrinar seu cão, seu gato e etc. E, aqui, uma pergunta: o que é doutrinar, senão fazer com que outrem (o filho, o cão, o gato) se comportem dentro de certas regras que o doutrinador quer? Duas perguntas capitais saem daí: "que direito tem alguém de se intitular doutrinador sendo que sua doutrinação parte do princípio de que este quer que sua vontade predomine? E: por que, então, tem que predominar a vontade de uns sobre os outros?" Esse, seria na concepção de Nietzsche, nada mais que o exercício do egoísmo.

Mas para Nietzsche não é assim tão simples. Sua resposta é mais elaborada. Para ele, isso é a "vontade de potência", e é um ato presente em todo o universo – por exemplo – ele diz que as espécies animais têm a vontade de potência e ela se exerce quando esses animais procuram se reproduzir, quando eles entram em conflito pelo alimento, pela água, pelo território. Isso, para Nietzsche, é o exercício pleno da busca pela satisfação do egoísmo, mas de um "egoísmo positivo", sendo que é devido a essa busca que a vida tem sentido de ser vivida. A "vontade de potência" é esse ato de querer desenvolver-se ainda mais aquilo que já se é. A semente tem o princípio de ser árvore e luta para se desenvolver em plenitude. O animal filhote luta e mata outros para ser o dominador e garantir para si território, caça, fêmeas para se reproduzir. E o homem, faz diferente?
Para Nietzsche o homem age da mesma forma, apenas por outros meios.

Assim a violência é uma das formas de manifestação da "vontade de potência". Daí posso induzir, para analisar a fala do personagem Yuri Orlov no filme "O senhor das armas" que a violência está institucionalizada. Ela se institucionaliza antes mesmo da concepção. Afinal, para que alguém nasça, alguém tem que lutar para que nasça. Ao nascer, se conseguirmos sobreviver às dificuldades do útero, somos vencedores, mas "matamos" nossa mãe que, durante a gravidez, nos dá, mesmo que não queira, seus melhores nutrientes corporais, suas forças para que nasçamos. Depois é a família que nos doutrina, imbuída da cultura dominante e cuja doutrinação, caso não sigamos, nos penaliza, nos castiga. E o comportamento da religião não é diferente. Tem-se, por exemplo, em três grandes religiões contemporâneas (judaísmo, cristianismo e islamismo), a exibição de exemplos de mártires que morreram por, ou em nome de Deus. E essas três religiões clássicas sempre exigiram batismo de sangue para seu 'deus'. O judaísmo porque valoriza o sacrifício, a morte por entrega a 'deus'. Deus acima de tudo! O cristianismo católico, pela valorização do sangue de seus "mártires" perseguidos pelo "amor à palavra". O islamismo também embarcou na mesma filosofia pregando a "guerra aos infiéis"!

Mesmo correndo o risco de o leitor pensar que estou "inspirado pelo diabo" em minha análise, me arrisco a endossar que grandes fatos históricos são frutos direto de ações consideradas violentas. Egípcios, Babilônios, Persas conquistaram Ocidente e Oriente levando de um extremo ao outro do mundo os numerais arábicos, as noções de contagem, escrita, organização político-militar, a pólvora, o astrolábio, tudo  graças às guerras.



Gregos, judeus e romanos também promoveram guerras. Será que restaria hoje alguém do povo judeu caso o personagem Moisés não tivesse assassinado um guarda egípcio – uma ação violenta que causou a morte de uma pessoa que cumpria as leis de seu país – para libertar seu povo? Israel de hoje existiria se Moisés não incitasse seu povo a combater e massacrar os filisteus que habitavam a chamada "terra prometida" para dela se apossar?

E Alexandre, o Grande, se ele não tivesse conquistado o mundo oriental, seria conhecida a cultura ocidental? O mesmo se daria com a cultura latina que é nosso berço? E no mundo medieval os próprios cristãos não usaram a violência física e ideológica para dividir e conquistar outras culturas, afirmando que o que faziam era em nome de seu "deus"?

O desafio ao leitor é não pensar nesses fatos como "bons" ou "ruins". Uma guerra não é boa nem má. Assim como uma faca não é boa nem má, elas são o que são. O uso que se dá a elas, a intencionalidade dos atos que se praticam com elas é que alguns classificam como bons ou maus. Uma guerra sempre será "ruim" para o perdedor e boa para o vencedor, ruim para as vítimas (civis ou militares), mas boa para o soldado herói, para os governos de países aliados, para as empresas que lucraram com ela. Uma faca será algo "bom" para o indivíduo que corta a corda e se livra da forca, mas algo "ruim" para alguém que é esfaqueado.

E na modernidade... a escravidão não alavancou os grandes impérios fisiocratas, o comércio, a Revolução Industrial? O capitalismo, com as 20 horas - ou mais de trabalho imposto aos operários do século XIX - não propiciou o exercício da "vontade de potência" da Inglaterra, Estados Unidos da América, França, Itália, Alemanha e outros? E, se enganam aqueles que acreditam que nos Estados "socialistas" haja "justiça" plena, equanimidade, pois aqueles países também investiram altos esforços humanos (com sacrifícios de pessoas e animais), para alcançar e manter um nível elevado de progresso técnico-industrial.

E na pós-modernidade surge ainda a violência simbólica denunciada por Bourdieu e Passeron, que é aquele tipo de violência que nos cercava e nos invadia nas propagandas de cigarros (lembrando que nos anos 1970 era bem cotada socialmente a pessoa que fumava, e que alguns médicos indicavam o fumo como medicamento contra o cansaço mental, hoje conhecido como estresse), bebidas (como a propagação de que consumir bebida alcoólica significa autonomia, emancipação); ter um carro signifique status. Mas a violência simbólica é velada, por isso tenta se parecer com o que menos ela é: com liberdade de escolha!



De volta ao "Senhor das Armas", o filme mostra que a guerra sempre existiu e que a violência está aí e todos a praticam em maior ou menor escala. Ela sempre deu lucros para governos, fábricas de armas, contrabandistas, vendedores finais. É o instrumento fundamental dos soldados. Mundo afora muitos empresários, staffs governamentais e políticos perderiam o poder caso não dispusessem de exércitos poderosos pelas armas, especialmente pelas armas de fogo. "As balas mudam os governos mais rápido que os votos", diz no filme o personagem Simeon Weisz, um mercador internacional de armamentos. Ele está errado?

A maioria das Constituições de países pelo mundo permite a seus cidadãos terem armas de fogo. Em vários países árabes as pessoas podem ter em casa fuzis como a famosa AK-47. Na Suíça a maioria dos cidadãos têm em casa – sendo por ela responsável – fuzis que serão utilizados para a defesa daquele país em caso de guerra, já que a Suíça não tem um exército regular, mas todos os cidadãos são militares armados. Na África há localidades (e isso não é simples piada do filme "O senhor das armas") em que se pode comprar fuzis, metralhadoras ao preço de uma galinha. As armas sempre fascinaram a humanidade. Elas sempre permitiram a uns esmagar outros. Aos exércitos – cujos reis desejavam conquistar territórios vizinhos para aumentar a área de gozo de seus cidadãos e também o seu poder – conquistar terras, cidades, fortunas, riquezas minerais.

A Segunda Guerra Mundial, especialmente, permitiu avanços tecnológicos imensos como o aperfeiçoamento do colete salva-vidas (à custas das experiências com seres humanos vivos, realizadas pelos alemães), o nascimento dos foguetes modernos, de bombas melhor elaboradas jogadas de aviões. Aperfeiçoou-se a aviação militar donde, posteriormente, a civil. Os transportes e logística no século XX. E o que está por trás de todo este progresso? Qual sua motivação? A "vontade de potência" de que nos fala Nietzsche?


E a violência é o instrumento pelo qual essa "vontade" se realiza, geralmente, embora não a única.

Após a institucionalização do Estado entre os seres humanos, iniciou-se a tradição – e surgiram as filosofias – para justificar que o melhor para a humanidade se manter viva era abandonar o que Hobbes no século XVI chamou de "estado de natureza" (a barbárie) pelo "estado de paz" que seria garantido pelas leis, costumes, pela moral e pela ética. Acreditou-se, a partir daí, que a humanidade "melhoraria", progrediria. Que a violência deveria ser erradicada e que ela desapareceria porque as pessoas perceberiam que é muito "melhor" viver em uma sociedade em que ninguém se mata por uma fonte de água, por uma peça de caça, pela "posse" de uma parceira sexual.

Freud chega mesmo a dizer em "O mal-estar da cultura", de 1930, que o homem "sacrificou a liberdade que possuía no estado primitivo de barbárie pela segurança da vida em sociedade." Mas ele pergunta se o sacrifício compensou ao homem e termina sua reflexão sem nos dar uma resposta.

Guerrilheiras das FARC.
Na luta por sua "vontade de potência"?

É claro que ninguém gosta da violência urbana que aumenta em nossas cidades a cada dia, tanto em países ricos e pobres. Porém, quando se fala em violência é comum as pessoas lembrarem-se de assassinatos em periferias. Guerras de traficantes contra eles mesmos ou as forças de segurança do Estado. Lembra-se também das guerras distantes para nós brasileiros, como as guerras da antiga Iugoslávia, dos grupos separatistas da Irlanda, da Espanha, das guerras entre países miseráveis na África. Guerras entre árabes e judeus. Mas a violência não é só isso. Ela não se dá apenas na guerra, embora este seja sua expressão mais enfática.

A violência está dentro do homem. É ou não parte do instinto de sobrevivência da humanidade? A mentira, outra forma de violência, é indispensável para alguém viver em sociedade hoje, infelizmente, ou não? Sua esposa cortou o cabelo e o penteado está horrível, você falaria a verdade para ela ou diria outra coisa? Você não tem dinheiro algum e precisa de crédito de outros bancos para pagar as dívidas, contaria para o agiota que está falido? Uma pessoa está com depressão profunda e já tentou se suicidar algumas vezes; e você descobre que a mãe dela está com câncer, você contaria para essa pessoa? Você descobre uma traição conjugal de um marido cuja esposa é obcecada por ele, mas ela é também sua melhor amiga, você mentiria sobre o tema se ela pedisse sua opinião ou omitiria o que sabe? Há "n" situações onde mentir ou omitir fatos surte um efeito menos devastador na vida em sociedade, e as pessoas o fazem a fim de não causar mal-estares, desavenças e até mortes. Isso é bom ou mau?

Por fim, lembro mais uma vez de Sigmund Freud, de um texto seu, o da nota de rodapé número 47 do seu livro "O mal-estar na cultura" onde ele afirma – ao refletir sobre a educação:

o fato de a educação atual ocultar ao jovem o papel que a sexualidade representará em sua vida não é a única censura que se lhe deve fazer. Ela também peca ao não prepará-lo para a agressão de que ele está destinado a ser objeto. Ao lançar os jovens na vida com uma orientação psicológica tão incorreta, a educação procede como se munisse com roupas de verão e mapas dos lagos do norte da Itália pessoas que farão uma expedição polar. Torna-se claro, aí, um certo (sic) abuso das exigências éticas. Não causaria grande prejuízo ao rigor das mesmas se a educação dissesse: 'É assim que as pessoas deveriam ser para se tornarem felizes e fazerem felizes as outras; mas é preciso contar com o fato de que não são assim'. Em vez disso, deixa-se o jovem acreditar que todos os outros cumprem os preceitos éticos, ou seja, que são virtuosos. Com isso se fundamenta a exigência de que ele também venha a sê-lo.


Na passagem acima Freud ironiza a escola apontando seu grande fracasso: não cumprir o que promete. Ora, se a escola sempre se deu por função, como todo o aparato dos professores, criando toda uma estrutura burocrática para justificar sua existência sobre o mito de que ela educa para a vida, Freud denuncia que isso é falso. A escola, sugere ele, não prepara as pessoas para a vida.

Sigmund Freud
         1856-1939
Antes do que preparar alguém para a dureza que é a vida, de dar-lhe instrumentos necessários e seguros para qualquer estudante perceber as falácias do mundo, as mentiras que as pessoas lhe contarão para tirar vantagem do estudante que sai "nu de malícia" da escola, a escola o "prepara" para viver em um mundo ideal, algo que não existe a não ser na fantasia dos programas escolares, no pensamento filosófico, na mente dos "melhoradores" da humanidade como se propõem muitos autores das áreas da ética e da moral, da filosofia ou da teologia.

E se ser cão for sua melhor parte? A escola pode estar cometendo o equívoco de matar o "cão" dentro de seus alunos. Não falo da violência pura e gratuita. Falo da "vontade de potência" do indivíduo, de fazer as pessoas se tornarem aquilo que elas são. De dar-lhes chances para concretizar seus talentos, dons e não as obrigarem a ouvir o tempo todo aulas que são ministradas da mesma forma que há dois mil anos nas academias gregas, cujos conteúdos são facilmente mais assimilados, hoje, ao se assistir um vídeo do que pela explanação oral, apenas. E isso não é novidade, Nietzsche propõe em sua obra "Sobre o Futuro de Nossos Estabelecimentos de Ensino" uma escola em que se deixasse desenvolver na criança suas aptidões naturais e não fossem os alunos, cujos talentos fossem conhecidos, obrigados a estudar como se obriga na escola atual alguém que será músico a estudar biologia, dentre outras disciplinas, por anos

Por fim, por isso, que pensar que o mundo humano "é perfeito e que todas as pessoas são felizes" (Legião Urbana)  é um grande engano! O texto de Freud é um tiro de misericórdia nos projetos que visam a chamada "educação para a paz" da Organização Mundial das Nações Unidas. Freud faz pensar que a escola ainda hoje dá mapas dos lagos do norte da Itália e roupas de verão para quem, na verdade, fará uma viagem polar. Quando Freud denuncia a escola e seu fracasso para ensinar alguém a ser humano, eu lembro que, em outras palavras, podemos dizer que a escola faz o mesmo que Sísifo, o personagem da mitologia grega que foi obrigado a rolar uma pedra gigantesca morro acima, mas que sempre escorregava novamente para a base, obrigando o imortal personagem ao trabalho eterno e inglório. E se ser cão for sua melhor parte?

sexta-feira, 11 de julho de 2014

NIETZSCHE: A EDUCAÇÃO CONTRA A CULTURA



Gerson N. L. Schulz


É filósofo, mestre em educação e foi professor
da disciplina de Filosofia da Educação
no Instituto de Ensino Superior do Amapá/IESAP
e na Universidade do Estado do Amapá/UEAP.
Contato: filosofodocotidiano@gmail.com


Artigo publicado originalmente no livro:

SCHULZ, Gerson Nei Lemos.  Nietzsche: a educação contra a cultura.
In: SCHULZ, Gerson Nei Lemos. (Org.). Et al.
Educação: ser, saber, fazer
Macapá/Porto Alegre: Alcance/Iesap, 2007.


O objetivo deste artigo é discutir o pensamento de Nietzsche sobre educação e cultura e para isso nada melhor que citar a Terceira Consideração Extemporânea intitulada: Schopenhauer como educador (1874), onde o filósofo alemão começa a conceber suas idéias sobre cultura. Ela traz à tona uma discussão a respeito da cultura alemã do século XIX, acusando-a de estar doente e ser muito inferior à cultura grega e romana da Antigüidade, não passando de uma caricatura daquelas.

Aprender a pensar: nas nossas escolas não se sabe mais o que isto significa. Até mesmo na universidade, até mesmo entre os verdadeiros sábios da filosofia, a lógica como teoria, como prática, como profissão começa a desaparecer. (NIETZSCHE, 1999, § 7). 


Friedrich Nietzsche - 1844-1900.
Nietzsche estava abismado diante do crescimento das escolas tecnicistas empreendidas pelo positivismo de Comte que acreditava que o progresso e a riqueza das nações européias estava no capitalismo industrial. A partir disso, constatava Nietzsche, surgia um prejuízo crescente das formas clássicas de ensino, a moda entre os estudantes era decorar o conhecimento, utilizá-lo como ferramenta apenas na indústria e não como meio para o crescimento pessoal. "Qual a tarefa de toda instrução superior? Converter o homem numa máquina". (Ibid., § 44).

Se o homem fosse convertido em máquina, definitivamente não haveria mais filosofia, sendo que ela só existe se existir o pensamento autônomo. E sem existir o pensamento, não poderia surgir nenhum gênio da cultura que Nietzsche entendia como o indivíduo que consegue se elevar acima da cultura de sua época para saná-la da doença. 

Meu conceito de gênio – Os grandes homens são como as grandes épocas, matérias explosivas, imensas acumulações de forças. [...] Quanto a tensão chegou a ser muito grande na massa, a mais casual irritação basta para se chamar à cena do mundo o gênio, para chamá-lo à ação e aos grandes destinos [...] Entre o gênio e seu tempo existe a relação que existe entre o forte e o fraco, entre o jovem e o velho (Apud DANELON, 2003).


Nessa época um exemplo de gênio – para Nietzsche – era Arthur Schopenhauer (de quem mais tarde se afastou como também se afastaria de Wagner que cogitou, por algum tempo ser outro modelo de gênio). É por isso que ele

[...] traz à tona uma discussão que vale sublinhar: a idéia de um modelo de educador, ou seja, a educação se faz somente se o educando tiver como referência para sua educação um modelo de mestre no qual ele possa assumir para si (Idem).

Para Nietzsche, Schopenhauer era esse modelo de homem e de gênio porque foi o único a renegar o Ocidente com seu pessimismo em O Mundo como Vontade e Representação, servindo de modelo (no entender de Nietzsche) não só para ele, como para toda a humanidade que devia elevar-se acima daquela cultura ocidental contaminada pelo utilitarismo capitalista que queria transformá-la em dinheiro – como queria o positivismo – e criticá-la. Logo: 

A minha avaliação de um filósofo depende da medida em que ele é capaz de dar um exemplo [...] Portanto, eu queria dizer que a filosofia na Alemanha deve sempre mais desaprender a ser 'ciência pura' e, justamente, este é o exemplo do homem Schopenhauer (Apud. DANELON, 2003).


Por isso Nietzsche se encanta com Schopenhauer logo quando toma em mãos O Mundo como Vontade e Representação, essa obra despertou nele uma profunda admiração pelas idéias contrárias aos modismos culturais da época. Nietzsche chamava essa cultura de "filistéia".

A cultura filistéia foi descrita por Nietzsche numa carta a Carl von Gesdorff na noite de 11 de abril de 1869, onde, em síntese, ele diz que está indo trabalhar na "instituição universitária", descrita por ele como um ambiente pesado, cheio de obrigações e onde é vendido o conhecimento, o que o transformará – conclui entristecido – num 'filisteu da cultura', isto é, num homem especializado (Cf. DIAS, sd). Para Scarlet Marton os filisteus da cultura são:

[...] aqueles que, estritos cumpridores das leis e dedicados executores dos deveres, execravam a liberdade gozada pelos estudantes. O 'filisteu' era uma personagem de bom senso, inculta em questões de arte e crédula na ordem natural das coisas. Usava o mesmo raciocínio para abordar as riquezas mundanas e as riquezas culturais [...] Os filisteus da cultura além de não serem cultos, têm a ilusão de sê-lo. Incapazes de criar, limitam-se a imitar ou consumir. Aliás, a imitação é apenas outra forma de consumo. Fizeram da cultura algo venal, puseram-na à venda, submeteram-na às leis que regem as relações comerciais 'quem e quantos consomem' é a questão fundamental a ser respondida (Apud. MARTON, 1982).

Arthur Schopenhauer
Mais adiante quando rompe com Schopenhauer, Nietzsche dirá: "O último filósofo, é assim que me nomeio, pois eu sou o último homem. Ninguém me fala a não ser exclusivamente eu, e a minha voz chega-me como a de um moribundo". (NIETZSCHE, sd. § 87). Isto é, quando amadurece o pensamento nietzschiano é ele quem dará exemplos. No livro Ecce Homo Nietzsche declara que a sua tarefa enquanto filósofo é educar e derrubar ídolos: "Eu não construo novos ídolos, os velhos que aprendam o que significa ter pés de barro. Derrubar ídolos (minha palavra para 'ideais') – isto sim é meu ofício" (NIETZSCHE, 1995, § 2)[1]



[1] Parece que levando em consideração esse ponto de vista nietzschiano (o dar exemplos associado ao sofrimento) fica fácil imaginar porque sua vida foi tão atribulada e porque parece que em certas ocasiões (em suas andanças sem casa fixa nem pátria) Nietzsche foi realmente um "moribundo".




A transvaloração da cultura através da educação


As idéias apresentadas em Sobre o Futuro de Nossos Estabelecimentos de Ensino (que se trata de uma palestra onde Nietzsche narra uma longa conversa com um amigo, um filósofo e um acompanhante) é a metade do caminho para se compreender o Nietzsche filósofo e professor. Ali ele aprofunda o que entende por cultura e educação e o que entende por pensamento crítico.

Sua primeira idéia é que a o homem novo (Übermensch) é aquele que é capaz de violar de qualquer forma as crenças que se tornaram a tradição. A respeito da violação das crenças, diz Nietzsche:

– Essa 'malignidade' é reencontrada em todo professor do novo, em todo pregador de novas coisas, a mesma ‘malignidade’ que desacredita o conquistador, ainda que se manifeste mais sutilmente e não mobilize imediatamente o músculo – o que faz, por outro lado, que desacredite com menos força! O novo, de qualquer forma, é o mal, pois é o que quer conquistar, derrubar os limites, destruir as antigas crenças; só o velho é o bem! Os homens de bem de todos os tempos são aqueles que plantam profundamente velhas idéias a fim de fazê-las frutificar, esses são os cultivadores do espírito. Mas todo terreno acaba por se esgotar, é preciso que o arado do mal o revolva (NIETZSCHE, 1976, p. 41).

Quem é o professor do novo? Para ele é o filósofo, mas não no sentido absoluto. Nietzsche quis dizer que todos os profissionais deveriam pensar como filósofos até se tornarem um, pois, de acordo com a teoria do gênio de Nietzsche, este não é predestinado a nascer filósofo. Portanto, a transformação da cultura deve começar por quem lida com ela, por professores e alunos. O estudante deve sempre buscar além daquilo que o professor ministra em sala de aula. Somente assim ele poderá percorrer o caminho para se superar a si e ao próprio professor, escapando da mediocridade.[2]



[2] No sentido nietzschiano: as atividades corriqueiras realizadas sem reflexão, a cultura do senso-comum, a linguagem jornalística que apenas narra o fato sem crítica própria, a "fofoca".

Com essa doutrina educacional (antropológica) Nietzsche supõe possível criar um novo projeto de homem, realizando uma crítica à modernidade cartesiana que separou natureza e homem em res cogitans e res extensa, privilegiando o mecanicismo. Para Nietzsche foi essa idéia de separação mecânica operada no homem (privilegiando as idéias inatas, portanto o intelecto) que fez os indivíduos renegarem outras faculdades humanas como sentimentos e instintos.

Resgatar as faculdades instintivas e sentimentais sem negar a razão é o projeto de Nietzsche. Por isso ele propõe a transvaloração dos valores da lógica aristotélica (lógica do terceiro excluído), da moral cristã (moral das massas que se deixam guiar louca e cegamente por um líder, o messias, na esperança de ganhar o mundo do além) e o rompimento epistemológico com a ciência de sua época (que para ele era a 'gaia ciência'). Assim ele afirma que o Universo e os fatos – como queria o Positivismo – não têm sentido e, por isso mesmo, estão condicionados ao seu tempo e aos olhos de quem os lê, e não à eternidade, não sendo verdades absolutas.

Nietzsche também propõe transvalorar a organização sócio-cultural e política de seu tempo, assim é possível afirmar que ele não concordava com o modo de produção industrial capitalista como afirma no aforismo 21 de A Gaia Ciência. Nietzsche também não é a favor da democracia quando a considera uma decadência no sentido de que ela adula o Estado (Prussiano) que pensava em si e não na cultura. Também não era a favor do autoritarismo, visto que detestava as políticas de massa porque, para ele, elas diluem o indivíduo. Também não se fez simpático ao socialismo nem ao anarquismo, como se observa nos aforismos 34 e 473 das obras: Crepúsculo dos Ídolos e Humano, demasiado humano, respectivamente, embora profetize que o socialismo iria acontecer e tenha incitado os trabalhadores a lutar por seus direitos.

Josef Stalin
1879 - 1953
Sobre o socialismo, ele temia que realmente se tornasse uma ditadura de algum líder mais exaltado e os trabalhadores, escravos do Estado. Fato que, ironicamente, ocorreu no chamado "socialismo real" Soviético sob o comando de Stálin.

Por fim, não se pode afirmar que ele fosse um liberal quando ressalta que

[...] a mais forte espécie de homem que houve até agora, as comunidades aristocráticas ao modo de Roma e Veneza, entendiam liberdade exatamente no sentido que eu entendo a palavra liberdade: como algo que se tem e não se tem, que se quer, e que se conquista [...]' (NIETZSCHE, 1974b, p. 349).

Assim se constata que Nietzsche apoiava um governo de aristocratas (o governo dos melhores), mas um governo formado por homens "geniais" (que se destacassem por sua inteligência) e não porque pertencessem à classe mais abastada.

Em relação à educação ele afirma:

[...] procede geralmente desta maneira: tentar determinar no indivíduo, com o engodo de inúmeras vantagens, maneira de pensar e agir que, tornada finalmente hábito, instinto, paixão, dominará nele e sobre ele, contra seus interesses supremos, mas em benefício de todos. Quantas vezes não observei que se o trabalho devotado, o zelo cego atribuem a riqueza, as honras fazem, por outro lado, com que os órgãos percam a sensibilidade que lhe permitiria fruir essa riqueza [...] Quantas vezes não constatei que esse remédio radical contra o aborrecimento e as paixões amolece os sentidos e torna o espírito rebelde a toda nova excitação (a mais laboriosa das épocas, a nossa, não sabe o que fazer de seu trabalho e de seu dinheiro, a não ser cada vez mais trabalho e mais dinheiro; [...] Adiante, deveremos ter 'netos'... A educação logra sucesso, qualquer virtude individual se torna utilidade pública e desvantagem privada tendo em vista o fim supremo do indivíduo; consegue apenas um enfraquecimento do espírito e dos sentidos [...],'Deves procurar teu proveito pessoal mesmo à custa dos demais’, apregoam portanto com o mesmo fôlego, o 'tu deves' e o 'tu não deves' (NIETZSCHE, 1976, p. 55-56).

A partir dessa citação, pode-se ter uma idéia do que Nietzsche pensa que deveria ser a educação. O oposto do que ele descreve. Isto é, uma forma de pensamento crítico (uma reflexão) sobre a cultura dada (isto é, construída antes do indivíduo nascer e transmitida a ele pelas instituições civis ou religiosas). Incluindo os maiores valores estabelecidos: "Deus" e o "Bem" que, para Nietzsche, foram construções humanas e não divinas. Logo, o modelo de educação apregoado pelo filósofo é humanista e deve permitir que o indivíduo libere seus instintos, suas habilidades, talentos (subjetividade).


Os fatos não devem ser ensinados ao aprendiz da forma como o Positivismo ensinava (tecnicista/mecânica/repetitiva), mas deve, isto sim, apresentar como e onde o indivíduo poderá utilizar aquele conhecimento adquirido em sua vida prática, pública e privada. Portanto, a educação, em última instância, deve ser estética, permitindo ao homem desenvolver a criatividade sobre o fato. Só assim poderá se revelar algum gênio e, então, para Nietzsche, o homem escapará do niilismo, do sem sentido e da mediocridade causados pela vida maquinal, automática que o modo de vida proposto pela Modernidade trouxe. Esta é sua idéia filosófica do dizer "não" para a cultura Ocidental.



[...] Em que medida, também entre nós, capacitar-se para ganhar dinheiro não se converteu em sinônimo de adquirir cultura? Em que medida o ensino profissionalizante e a especialização dos cursos superiores não se fazem em detrimento da formação humanística? Em que medida a massificação e o utilitarismo não se impõem à custa do aprimoramento individual? A estas questões nenhum educador pode furtar-se. Nietzsche combate, com veemência, a difusão inescrupulosa dos ditos bens culturais e os interesses imediatos que ela visa satisfazer. Longe, porém, de defender a cultura formal, que se limita a acumular dados e informações, opõe a erudição à vida, mas não nos deixemos enganar. Isso não revela traço algum de antiacademicismo, e sim a existência de um projeto: fazer dos estabelecimentos de ensino o lugar apropriado para a reflexão, o espírito crítico e a atividade criadora. É preciso, pois, devolver aos estabelecimentos de ensino a vocação que lhes é própria: 'fazer do homem um homem' (DIAS, sd., prefácio).


Nietzsche assinala o equívoco em se pensar que cultura é trabalho árduo, apenas. Para ele a cultura é o aprendizado não utilitarista de tudo o que o ser humano realizou na história, sem desvincular-se da vida real. A cultura não é uma erudição, mas um cabedal de conhecimentos vivos que deve ser ensinada de forma tal que os indivíduos possam criar coisas novas sobre as que aprendem. Nietzsche considera a produção da cultura industrializada[3] moda meramente intelectualista, uma farsa. Assim, é tomando esse pressuposto que se pode explorar a possibilidade de construir hoje uma pedagogia crítica do dizer "não" aos modismos, aos intelectualismos, aos capitalistas da cultura e até mesmo às ideologias do Estado que defendem a idéia de que a educação é um serviço, portanto, uma mercadoria.

A partir daí pode-se pensar a idéia que o verdadeiro estudante, tal qual o verdadeiro mestre, também pode ser autêntico dentro de sua escola sendo um crítico da própria cultura e auxiliando a podá-la de seus desvios utilitaristas patrocinados pelas classes econômicas dirigentes (aristocracia burguesa) que têm interesse em manter essa lógica de utilidade sobre tudo o que é produzido para transformá-la em mercadoria e gerar lucro puro e simples.


Para Nietzsche o niilismo ante a vida levou boa parcela da humanidade a crer que a história acabou e nada mais pode ser mudado. A idéia de massificação ganha espaço e surge o conceito do padrão (todos devem ser iguais). Mas com isso aparece um "mal-estar" dentro do núcleo da civilização porque as coisas perdem o sentido (niilismo). Não há mais o que inventar, o que fazer. A vida fica autômata. (SCHULZ, 2003, p. 137)




[3] Nietzsche criticava a formação meramente técnica de seu tempo, acusando-a de empobrecer a verdadeira cultura. Para ele o modelo que representa o ensino dos bacharelados (na Europa bacharelado equivale ao liceu) sugere uma cópia do processo industrial onde as mercadorias são produzidas em série. Da mesma forma o modelo de escola também produz indivíduos moldados para o Estado, para exercer a cidadania de forma igual, cumprindo mais deveres que lutando por direitos, pois todos têm os mesmos saberes e mesmas práticas morais e éticas. Dessa forma a cultura massifica-se caindo ela mesma no niilismo.

E como Nietzsche entende a cultura de seu tempo?

As águas da religião refluem e deixam para trás pântanos ou poças; as nações se separam outra vez com a maior das hostilidades e querem esquartejar-se. As ciências, praticadas sem nenhuma medida e no mais cego laissez faire, estilhaçam-se e dissolvem toda crença firme; as classes cultas e os Estados civilizados são varridos por uma economia monetária grandiosamente desdenhosa. Nunca o mundo foi mais mundo, nunca foi mais pobre em amor e bondade. As classes eruditas não são mais faróis ou asilos, em meio a toda essa intranqüilidade da mundanização; elas mesmas se tornam dia a dia mais intranqüilas, desprovidas de pensamento e de amor. Tudo está a serviço da barbárie que vem vindo, inclusive arte e a ciência de agora. O homem culto degenerou no pior inimigo da cultura, pois quer negar com mentiras a doença geral e é um empecilho para os médicos. (NIETZSCHE, 1974b, trechos dos aforismos 4 e 6. p. 81-4).

Aqui surge a idéia do filósofo como médico da civilização. Para Nietzsche é o filósofo que tem o papel preponderante de alertar as demais categorias profissionais (eruditos, médicos, cientistas) para os perigos da extirpação do conhecimento e sua fragmentação em especializações. Para o filósofo alemão não é especializando o homem aos "pedaços" (fragmentos) que ele saberá o todo, como se o todo fosse desprovido de sua própria totalidade, mas unindo o homem com seus vínculos fortes (instinto e paixão) que ele poderá tornar-se filósofo e ter o verdadeiro amor à sabedoria. Transformando conhecimento em sabedoria, só assim se poderá criar uma "nova cultura".