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quinta-feira, 11 de outubro de 2012

SEMINÁRIOS CATÓLICOS PARA QUÊ?



Texto dos professores

Gerson N. L. Schulz Jones Talai

*Ex-seminaristas


Hoje se tem discutido muito sobre novos paradigmas educacionais na pós-modernidade. A pós-modernidade é caracterizada pela fragmentação de saberes e por discursos que tentam se validar pelo poder das mídias. Diante disso, há a necessidade de se buscar uma educação que seja inter/transdisciplinar, que fomente o pensamento crítico, que busque o diálogo com os diversos saberes da sociedade, que tenha abertura às novas possibilidades de conhecimento e que, ao mesmo tempo, possua segurança acerca de seu próprio método educativo e consistência epistemológica.

Ora, diante deste cenário, gostaríamos de refletir o que representa hoje os seminários teológicos da Igreja Católica, espaço onde há uma atividade pedagógica. Os seminários surgiram no séc. XVI como reação à Reforma Protestante. O espírito presente nesta realidade histórica original era o de uma ideologia totalitária que se tentava firmar como única verdade/realidade absoluta diante dos reformadores. Assim, pela educação, se pensou conter o avanço do Protestantismo na Europa.

Destarte, estes centros se constituíram como núcleos apostólicos que pretendiam formar homens capazes de levar adiante a fé católica. Desde então os seminários procuram formar sujeitos capazes de manter a imutabilidade de sua doutrina, mas que, muitas vezes, nesta tentativa heróica, falham escandalosamente quando se trata de formar pastores e homens de fé, justamente por não considerar a mutabilidade mundana e sua historicidade.

Por causa deste conservadorismo, a Igreja, como um todo, está se desvinculando do mundo real, não conseguindo acompanhar suas mudanças. Do mesmo modo produz pessoas deficientes para estabelecer diálogo com o mundo não-católico ou secularizado, ou ainda com o povo simples que se diz capaz de pastorear. Assim, os padres forjam um tipo de conhecimento que os distancia da linguagem coloquial e não os capacita sequer para entrar em diálogo com a comunidade científica. Seu saber tornou-se próprio de uma casta sacerdotal. Dentro disso, os seminaristas de hoje perderam o método epistêmico dos clérigos antigos e medievais e ficaram apenas com seu ranço conservador. Se há poucos anos os padres que eram formados no rigor da Escolástica, sob a maestria lógica de Tomás de Aquino, se perguntavam qual a validade de estudar o Tomismo, os seminaristas atuais (epistemologicamente perdidos) perguntam: o que é o Tomismo?

Portanto, até que ponto os seminários com esta proposta pedagógica poderão educar seus estudantes para o sacerdócio? E será que a ignorância intelectual dos neo-sacerdotes não comprometerá o edifício eclesial construído pelos "nostálgicos gerontocratas" da Igreja?

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

DEMOCRACIA, MONARQUIA OU DITADURA?


Gerson N. L. Schulz


ATENÇÃO: se você é uma pessoa que não consegue dialogar com a opinião alheia e pensa que palavrão é argumento, não leia este texto. Ele é para pessoas inteligentes e não para você que, na falta de argumentos, só sabe grunhir.


Diante das crises políticas e da corrupção atuais no Brasil, ouço algumas pessoas alardeando em filas de ônibus, de banco ou no mercado que "na época da ditadura era melhor". E outras ainda dizendo que o Brasil deveria voltar a ser uma monarquia.

Opiniões a parte, me pergunto "por que algumas pessoas dizem tais coisas se nas épocas das ditaduras e da monarquia também havia corrupção. Sabe-se hoje que no período em que os militares comandavam o Brasil, a corrupção também existia; ela era apenas velada, escondida e a imprensa não podia dizer nada além daquilo que o regime deixasse. Pergunto-me também: "por que alguns querem de volta uma forma de governo anacrônica que já faliu historicamente em nosso país e que hoje foi superada por aqui, como é o caso da monarquia?

Alguns dos maiores descalabros brasileiros ocorreram na monarquia: tomada abrupta das casas legítimas dos colonos por D. João VI, exploração da riqueza das Minais Gerais com ônus para a colônia, escravidão indígena e africana, cobrança de impostos pela Coroa Portuguesa cuja pecúnia era investida no exterior e não aqui, invasão da Guiana Francesa, do Uruguay, destruição quase total do Paraguay, as guerras separatistas em função dos descontentamentos com a monarquia e a tirania do Imperador. No campo econômico, apesar da abertura de um dos maiores patrimônios do país, o Banco do Brasil, o mesmo D. João o defenestrou quando de seu retorno a Portugal, além da perseguição política ao Barão de Mauá, cuja visão progressista e empreendedora tinha grande possibilidade de por o Brasil dentre os países mais ricos do mundo. 

É por isso que, para aclarar essas discussões, esse artigo propõe uma reflexão sobre o tema e trata dos tipos de governo. Quais são? Como são?

De acordo com o dicionário de filosofia de Nicola Abbagnano, o historiador Heródoto pergunta: "Como poderia ser um governo bem instituído se apenas um só homem governasse? Se ele pode fazer o que quer sem dar satisfação a ninguém? Por isso, segue Heródoto, o monarca tende a tornar-se tirano".

Assim, contrariamente, o governo do povo (democracia) é o melhor, diz Heródoto, porque neste tipo de governo todos são iguais. Em contrapartida, este também tende a degenerar e a tornar-se desenfreada demagogia, com o tempo. Então, na conclusão do filósofo, "a melhor forma de governo é uma boa monarquia".



Platão, por seu turno, diz em "A República", que a aristocracia (governo dos melhores, no caso platônico, o dos filósofos) é o melhor. Mas adverte que a aristocracia pode degenerar em timocracia, isto é, no governo fundado na honra que nasce quando os governantes se apropriam de terras e das casas de outrem.

A outra forma de governo é a oligarquia. Um governo baseado no patrimônio, no qual apenas os ricos governam.

A quarta forma é a democracia, na qual a todo cidadão é lícito fazer o que quer. Mas o tipo extremo de degeneração política é a tirania, que pode nascer da excessiva liberdade da democracia, segundo ele.

Assim, é na obra "O Político", que Platão distingue três formas de regime político: o governo de um só; o governo de poucos e o governo de muitos.

Essas formas, segundo sejam regidas por leis ou desprovidas de leis, motivam respectivamente o governo tirânico, o governo aristocrático e o governo oligárquico, e as duas formas da democracia: a regida por leis e a demagógica.

Vamos pensar sobre os dois casos citados na introdução do artigo, a monarquia e a ditadura?


A monarquia é hereditária, sendo assim, mesmo que um rei seja corrupto, ele não poderá ser substituído por outro cidadão, pois caso seja substituído (o que é muito difícil em uma monarquia) o será por um "nobre", isso quando não ocorrem disputas familiares motivadoras de guerras civis como a que houve com Pedro I quando deixou o trono brasileiro para lutar pelo reino de Portugal contra seu irmão, Miguel, em 1831.


No Brasil, antes de sua partida definitiva e de sua morte na Europa, Pedro de Alcântara criou os Poderes Legislativo, Executivo, Judiciário e Moderador (quatro poderes). Na prática de nada valeu essa divisão, pois todas as decisões do Parlamento, do Senado e da Justiça, tinham que ser aprovadas pelo Poder Moderador (que era exercido pelo Imperador) e o permitia se intrometer nas decisões dos outros Três Poderes.

Além de ser uma figura autoritária, tendo em vista suas violentas reações contra os opositores, Pedro de Alcântara também fechou a Assembleia Constituinte em 1824 por discordar de seus pares liberais, que ele mesmo convidou para redigir a Constituição.

O detalhe é que aqueles seus convidados eram somente grandes proprietários de terras escravagistas, grandes comerciantes e homens letrados. O povo brasileiro de fato (camponeses, jornalistas, artesãos, pequenos manufatureiros, pequenos comerciantes, pequenos proprietários) ficou de fora daquele projeto de poder. 

Em relação ao Parlamento dos Deputados, criado pelo Imperador, este era eleito para um mandato de quatro anos, mas quanto aos Senadores, estes eram vitalícios e o Poder Monárquico era hereditário. Na prática, o povo continuou excluído do projeto político brasileiro.

Logo, defender que esse modelo político é, hoje, o melhor para o Brasil se torna algo difícil, pois quem seria o rei brasileiro? Ele seria eleito? Seria aclamado? E se fosse aclamado, quem dentre todos os brasileiros goza de condições morais ilibadas, intelectuais e outras para ser o rei?



Ademais, a maioria das pessoas desejaria renunciar ao poder de livre escolha de seus candidatos aos cargos eletivos? Estaria a maioria dos brasileiros disposta a (na monarquia) se tornar súdito de um rei, sendo obrigado a "beijar-lhe" a mão como também dos "nobres"? Mesmo que essa monarquia fosse constitucional, teria a Constituição força para evitar os excessos dos Poderes, garantir direitos iguais a nobres e a não-nobres?

E a ditadura? Será que a democracia brasileira tornou-se completamente demagógica já que essa é a degeneração desse regime, como aponta Platão?

É esse o motivo pelo qual alguns cidadãos dizem que "na época da ditadura era melhor?"


O mundo tem muitos exemplos de ditaduras (tanto de 'esquerda' quanto de 'direita'). Sabe-se também que em nenhum lugar onde houve uma ditadura de qualquer natureza a sociedade que por ela é regida foi ou está feliz. E é sabido hoje por todos que a ditadura militar brasileira foi uma das piores formas de governo já adotados em um país. É sabido que houve mortes e perseguições a dezenas de cidadãos (operários, jornalistas, professores, médicos e etc. que discordavam do regime), controle de pessoas e instituições, censura artística, cultural e educacional. Houve abusos do governo central, ou seja, do Estado contra cidadãos e é tal fato que é alvo da crítica daqueles que não concordam com os regimes de exceção.

É nesse sentido que se diz que os militares têm até hoje uma dívida histórica com o povo do Brasil (pelo fato do Estado regido por eles ter cometido crimes contra seu próprio povo, dentre eles a obtenção de confissões sob tortura dos inquiridos) e também porque a ditadura expulsou do poder um presidente legitimamente eleito pela vontade popular!

Não é possível ignorar a falta de liberdade que viveu o Brasil entre 1964 e 1985 por causa do regime militar que teve como seus maiores símbolos os famigerados Atos Institucionais (dentre eles o AI-5).




É verdade que o Brasil ainda sofre o problema da corrupção, mas isso é motivo para condenar à morte o regime democrático? É só a democracia que sofre desse mal?

A democracia exige responsabilidade. Exige que as pessoas (a sociedade) faça sua permanente manutenção. E por isso não se deve esquecer, também, que quem elege os políticos é o povo. O poder de votar é garantido pela democracia que o Brasil vive hoje e, em boa medida, a causa da corrupção são alguns políticos eleitos e não a democracia. Como a democracia precisa de responsabilidade e interesse público para funcionar, a falta de compromisso de alguns eleitores que não investigam melhor seus candidatos também contribui para o surgimento da demagogia que é a degeneração da democracia.

Também há responsabilidade da Justiça Eleitoral (que ainda é morosa), há falhas de alguns candidatos que só pensam, como alertou Maquiavel, em conquistar o poder para usufruir dele para si mesmos e há problemas quando se observa a inexistência de mecanismos punitivos mais eficazes contra os maus políticos que se escondem sob a imunidade parlamentar

Enfim, a discussão não se fecha aqui mas dentre todos os modos de governo citados, faço um convite, se pergunte: qual deles permite maior grau de liberdade ao cidadão? Qual deles permite a alguém ou a algum grupo descontente com a situação, protestar contra esse mesmo regime? Protestar contra o governo? Qual desses regimes permite o impeachment de um líder? Qual deles aceita que pessoas das mais diferentes classes sociais tenham os mesmos direitos (ainda que, infelizmente, estejamos no Brasil longe da perfeição nesse quesito)?

segunda-feira, 23 de abril de 2012

NIETZSCHE CONTRA O CRISTIANISMO

Gerson N. L. Schulz



Nietzsche (1844-1900) propôs a "transvaloração dos valores" religiosos e morais quando denunciou que eles foram impostos pelos cristãos ao Ocidente após a queda do Império Romano. Por isso ele quer demonstrar que tanto a religião católica como a moral das igrejas cristãs são as responsáveis pela infelicidade do homem na Terra.

Na obra "O Nascimento da tragédia" de 1872, Nietzsche estabelece o ideal de homem para os gregos pré-socráticos. Aquele do período compreendido entre a Grécia arcaica e o século VI a.C. Este modelo é o homem da tragédia antiga.

Nietzsche identifica esse espírito antigo com Dionísio, o espírito da força e da saúde, da embriaguez criativa e da paixão sensual. Dionísio é o símbolo da harmonia do homem pleno com a natureza. Ao lado do dionisíaco estava também o apolíneo, ou seja, a visão do sonho e a tentativa de expressar o sentido das coisas na medida e na moderação, explicitando-se em figuras equilibradas e límpidas.

Mas Apolo e Dionísio viviam em constante conflito entre si na mente do homem grego e sua reconciliação também se dava de forma constante e era isso que mantinha o equilíbrio na civilização. Porém, para ele, a Grécia começou a se modificar quando, com Eurípedes, tentou-se eliminar da tragédia o elemento dionisíaco em favor dos elementos morais e intelectualistas (apolíneos). Então, segundo o autor, a luminosidade clara sobre a vida se transformou em superficialidade silogística. Aí apareceu Sócrates com sua "presunção" de compreender e dominar a vida com a razão e com isso também sobreveio a "decadência grega". Negaram-se os instintos que traziam consigo a força vital. O apolíneo, puro e simplesmente, foi manipulado pelos filósofos que estabeleceram a maiêutica como recurso de quem não tinha mais arma para lutar.

Segundo Nietzsche, Sócrates perverteu a juventude grega quando ensinou que os instintos deveriam ser controlados e aniquilados e que o corpo era mau e seus sentidos não importavam para o conhecimento, mas apenas a razão. É daí que Nietzsche afirma que toda moral ocidental, desde Sócrates até o cristianismo, foi e é um equívoco porque os moralistas pensaram que ditando regras estavam contribuindo para melhorar a humanidade quando, ao contrário, estavam fazendo-a decair ao estabelecer que se devia lutar contra os instintos vitais.

Para Nietzsche, Sócrates tomou força nas teorias dos órficos e estabeleceu uma crença num mundo de além ('espiritual' e 'superior') que rompeu as relações da humanidade com a própria Terra e com aquilo que existe de mais vital, a natureza. Essa pregação ao homem de que ele deve afastar-se do mundo buscando o "além" acarretou uma mudança nos paradigmas que influenciou todo o Ocidente. Ou seja, ao tirar o "centro de gravidade" da Terra e pô-lo no outro mundo, descentralizou-se a Terra."

O próprio Sócrates, afirmou Nietzsche, quis morrer ao não se defender diante dos juízes em sua condenação. Jesus fez o mesmo. Conclui Nietzsche que Sócrates e Jesus desprezavam os valores da Terra em prol de valores no além. E esse além não passa de quimera.

Esses dois personagens, segundo Nietzsche, são decadentes porque levaram a raça humana a acreditar que a vida na Terra não vale a pena de ser vivida porque é moralmente má e iníqua. Ao contrário, para Nietzsche negar este mundo é negar a vida.

Nietzsche, então, lança a "praga contra o cristianismo", subtítulo de sua obra "Anticristo", escrito em 1888. É nesse livro que, após severas críticas ao personagem "Jesus", Nietzsche acusa também o apóstolo Saulo de Tarso de ter pervertido o cristianismo original, é em relação a isso que Nietzsche ironiza afirmando que "o único cristão morreu pendurado na cruz".

Paulo teria então distorcido o cristianismo fazendo dele uma leitura universalista e de acordo com a ótica judaico-romanizada. Seu intento era espraiá-lo para outros povos esmagando as demais culturas, eliminando as diferenças características da Eurásia e tornando todos "iguais". Além disso, Nietzsche denuncia que os cristãos pensam que o cristianismo é a única "verdade" que existe. Na história quando isso aconteceu essa doutrina iniciou o combate a outros grupos, religiões, pessoas e Estados muito mais antigos. Saulo seria o responsável por essa versão pérfida porque é "castradora da vida", negadora das diferenças, que chegou a Roma e, consequentemente, à Europa.

Nietzsche ressalta também que Jesus jamais pregou a castidade, a negação dos instintos carnais, chama-o até mesmo de "inocente" porque pressupôs ingenuamente uma humanidade ideal, disposta a se moralizar. O cristianismo, então, não contaria que a negação da moral é justamente aquilo que permitia o funcionamento da estrutura social. Em outras palavras, Nietzsche faz menção à pergunta: "teria algum sentido o cristianismo existir caso não pensassem seus pregadores que o mundo está doente?"

A resposta de Nietzsche é "que não teria sentido algum". O cristianismo e os cristão pensam que o mundo está "doente", corrompido, mas adverte Nietzsche que pensar assim já é emitir um juízo de valor, então é mera opinião. É a vontade de que o mundo esteja doente que faz o cristão atuar e pensar, ao agir, que sua ação é a mais correta dentre todas. Isso, se infere, é um grande engano porque o mundo é assim como é, nem bom, nem mal. Não há nenhuma doença nele. Essa doença é uma invenção assim como é invenção o conceito de cura.

Nietzsche põe em xeque as noções de "pecado original" e a ideia que afirma que a humanidade está "doente". Para Nietzsche isso é falso, não há pecado original algum. Nietzsche ironiza perguntando: "que deus louco é esse que cria um doente e depois lhe oferece a cura apenas se o doente amá-lo?"

Assim Nietzsche esvazia de sentido o cristianismo, pois não havendo pessoas que acreditem que são más por natureza, não há necessidade alguma da existência do cristianismo.

Por isso ele prega o fim do cristianismo, essa é sua "praga contra o cristianismo". Mas essa religião é também má à medida que leva as pessoas a se acharem culpadas pelo mal no mundo. O sentimento de culpa, para Nietzsche, é a causa da submissão e da ignorância. Quando alguém se sente culpado, quer a "cura" da culpa e a cura é oferecida pelos "pregadores da moral".

Nietzsche não discute se "deus" existe ou não. Ele aponta o engano que há daqueles que consideram os padres como "libertadores" do povo. Os únicos responsáveis por espalhar a culpa sobre a humanidade são os padres (inclusos também os pastores cristãos). E são os padres e pastores, enquanto intérpretes dos textos religiosos, que mantêm o poder de controlar as pessoas. Nietzsche conclui que eles, juntamente com o cristianismo, são os verdadeiros algozes da humanidade que, falsa e hipocritamente, se passam por "libertadores".

domingo, 1 de janeiro de 2012

FELIZ ANO NOVO!


 Por Gerson Nei Lemos Schulz


Há "realmente" algo de diferente no encontro das 24 horas do dia 31 de dezembro com a zero hora do dia primeiro de janeiro?

Nada que também não haja nos demais dias do ano. Mas simbolicamente muitas pessoas costumam encerrar uma etapa de sua vida e, também simbolicamente, iniciar outra nesse momento.

Fazer promessas, simpatias (como se diz no Brasil), ouvir presságios e premonições de adivinhos e oráculos é uma prática também comum em nossos dias, mesmo além da Revolução Francesa que estabeleceu os estados nacionais como os conhecemos hoje, das duas Guerras Mundiais e de toda tecnologia que está a nossa disposição isso ainda é comum.

Parar de fumar, fazer regime para emagrecer, parar de beber, terminar um relacionamento amoroso ou se casar podem ser as promessas mais comuns e também as que menos são cumpridas. Mas isso mais parece um ritual do que garantia de efetividade de que isso acontecerá, pois dizer ou prometer tais coisas sempre é uma tentativa, ao que me parece, de auto-determinar sua própria existência, de manter a consciência de que ainda se pode exercer alguma liberdade sobre o tempo que escorre e sobre si mesmo!

Tempo. Quem não gostaria de controlá-lo? Quem não gostaria de ignorar que a cada ano novo que passa significa que estamos aqui (e quantos já são os que não estão mais?), mas também quer dizer que estamos mais perto daquele dia em que não estaremos?

Paradoxo? Não. Ao mesmo tempo em que estamos vivos, também estamos caminhando, à medida que vivemos, para o fim de nós mesmos, esse é um dos inescapáveis determinantes da condição humana!

Mas voltando a falar de decisões ou promessas que costumamos fazer, gostaria aqui de ampliar a voz de um texto de Zygmunt Bauman (44 Cartas do Mundo Líquido Moderno, Zahar, 2011) que versa sobre anos novos e seus fantasmas. Diz ele (p. 128-9) que há promessas que não podemos deixar de cumprir, fala ele especialmente daquelas que dizem respeito sobre ações para evitar ou diminuir o aquecimento global e suas consequências em geral.

Ele nos lembra que esse fenômeno já aconteceu na Terra há 250 milhões de anos e que a temperatura do planeta subiu 10 graus. Naquela ocasião a causa foi uma erupção vulcânica que liberou dióxido de carbono na atmosfera e, posteriormente, por causa desse aquecimento, "acordou" as grandes massas de gás metano que estavam no fundo dos mares levando-os para a atmosfera. 95% das espécies foi extinta e as que sobraram sofreram as consequências disso pelos duzentos anos seguintes.

Ressalta Bauman que dessa vez a causa tem nome: raça humana. Esse cenário do passado poderá voltar mas dessa vez não por causa de erupções vulcânicas, mas por causa das ações irracionais de todos nós!

Indiscriminadamente o homem tem aterrado o mar (no Brasil isso aconteceu em lugares como Rio de Janeiro e Florianópolis), poluído indiscriminadamente o ar e as águas (algo que já nos parece 'natural', afinal são poucas as pessoas que até hoje não devem ter visto alguma vez na vida uma chaminé expelindo fumaça para os céus) já que, segundo o Departamento de Energia dos Estados Unidos da América, entre 2009 e 2010 houve um crescimento de 6% nas emissões de gases do efeito estufa.

Outro fator grave é a degradação florestal que, no caso do Brasil, no período de agosto de 2010 a julho de 2011, aumentou expressivamente em 241% conforme diz o pesquisador Paulo Barreto do www.imazon.org.br.

Ficam as perguntas: o que estamos efetivamente fazendo para mudar isso? Estamos pressionando nossos governos para criarem políticas públicas que facilitem a reciclagem do lixo e o seu não acúmulo junto a córregos e nascentes? E eu, o que estou fazendo com todo o lixo que produzo? A madeira que compõe minha escrivaninha tem origem em reflorestamento?

Não é novidade que os sinais da natureza estão em toda parte. São os solos congelados há milênios no Alaska que se derretem afundando as casas sobre eles construídas; a temperatura que aumenta nos estados do Norte do Brasil; o buraco na camada de ozônio; os ciclones extratropicais que atingiram o país nos últimos anos; as estranhas baixas temperaturas para a época de verão no Rio Grande do Sul entre o Natal e o Réveillon de 2011/2012.

Considero essas, com diz Bauman, questões que não podemos mais deixar para discutir no outro réveillon sob pena de não haver outro, pelo menos não para a raça humana! Feliz ano novo para você, para os seus e para mim também, assim espero!

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

A FILOSOFIA PRECEDE A EDUCAÇÃO?



Gerson Nei Lemos Schulz

Texto originalmente publicado na Revista Conhecimento Prático Filosofia N. 29 - Abril de 2011 da editora Escala
www.conhecimentopratico.com.br/filosofia


Até hoje é questão de debate a pergunta: "quem surgiu primeiro: a Filosofia ou a Educação?" defendo que desde o dia em que o homem olhou a sua volta e se perguntou: o que é a vida? Para onde se vai após a morte? Por que as coisas queimam? Nasceu a filosofia.
Com o passar do tempo e a organização dos homens em tribos e cidades, isso graças à sistematização do conhecimento sem o qual não teriam conseguido sair de sua vida nômade, surgiu a educação. Moacir Gadotti diz (História das Idéias Pedagógicas), que a educação pré-histórica era oral e passada de pai para filho na família. Educação era práxis. Aprendia-se a usar o arco, usando-o. O aprendizado de um indivíduo era voltado à resolução de problemas do cotidiano. Por não haver escolas, a educação não era burocrática.
Mas foi na Grécia que apareceu a filosofia enquanto ciência de altos estudos e também a escola. Os filósofos produziam conhecimento, mas o ensinavam na escola. Então indagar sobre a natureza das coisas era praticar filosofia enquanto atividade de busca de respostas (sistematização) aos fenômenos do mundo, e educação era ensinar saberes. Um exemplo da influência da filosofia sobre a educação é a crença geocêntrica de Aristóteles (322 a.C.) que só foi desfeita em 1609 por Galileu. Isto quer dizer que, por 1931 anos o mundo conhecido acreditou que a Terra era o centro do sistema solar. Isso era, inclusive, ensinado em todas as escolas ocidentais.
Quanto à filosofia, pode-se afirmar que Homero (autor da Odisséia) atribuiu ao Ocidente um modelo de homem (antropologia), uma ética (a dos heróis) e um berço (as origens da Grécia) e Hesíodo contribuiu com a Teogonia, modelos que foram ensinados geração após geração na educação Ocidental.
De acordo com Giovanni Reale (História da Filosofia), Tales de Mileto (VII a.C.), reconhecidamente o primeiro a questionar a origem de todas as coisas, mudou para sempre a história da educação. Pitágoras (530 a.C.) também fundou uma escola de Filosofia que tinha um fundo místico e religioso (crença na reencarnação das almas) e na "perfeição" dos números (depois desmistificada pela descoberta do número irracional). Mas foi Platão (427 a.C.), fundador da Academia, um dos mais influentes pensadores do mundo Ocidental, pois em sua escola surgiram alguns princípios da universidade. Outros nomes como Agostinho, Tomás, Montaigne, Marx, Nietzsche, Foucault, também deram sua contribuição para nortear as atividades da educação ao longo da história.
Para concluir, outra influência da filosofia sobre a educação: se Comte (1798) pensou o Positivismo com a escola centrada na autoridade do professor e avaliações tradicionais; Foucault (1926) mostrou que esse modelo de escola é semelhante à prisão porque os alunos são controlados por inspetores e professores e há avaliações que nem sempre mostram quem sabe mais, e podem funcionar como mecanismo de cooptação. Logo, se pensar precede ensinar, a filosofia precede a educação.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

AMOR LÍQUIDO




Gerson Nei Lemos Schulz





Esse é o título de um livro do sociólogo Zygmunt Bauman. Ele, quando fala de amor, mostra o porquê de ter escolhido esse apodo: "hoje em dia nos medimos pelo número (quantidade) de relações amorosas que temos".

Diz: "num mundo em que a seriedade de algo é representada apenas por números, e portanto só pode ser apreendida dessa maneira (a qualidade de um sucesso musical pela quantidade de discos vendidos, de um evento ou performance públicos pelo número de espectadores, de uma figura pública pelo número de pessoas em seu enterro, de intelectuais na opinião do público pelo número de citações e referências)", acrescento eu, não poderia ser diferente com os relacionamentos amorosos.

Bauman cita as especialistas Adrienne Burgess e Caryl Rusbult que afirmam que o compromisso amoroso é uma conseqüência aleatória que depende "do nosso grau de satisfação com o relacionamento, se ele é viável; se continuar nele causará a perda de experimentar relações com outras pessoas; e se vale a pena investir, pois em um relacionamento se investe tempo, dinheiro, propriedades em comum, filhos." Eu acrescentaria: paciência e energia! Para elas um relacionamento é como comprar ações: "você compra, espera que dêem lucro e vende, senão derem lucro você se livra delas." Bauman ironiza essa visão capitalista de amor perguntando quando é que alguém jura lealdade às ações que acabou de comprar? Quando é que os investidores juram fidelidade a elas nos momentos de riqueza e de pobreza?

Bauman também trata das "relações de bolso" de Catherine Jarvie. Elas têm esse nome porque se pode dispô-las a qualquer hora. Uma "relação de bolso é a encarnação da instantaneidade e da disponibilidade." Na prática, uma vantagem desse relacionamento é que é você quem está no controle, é só deletar do msn ou do celular o número dela ou dele e pronto, acabou!

Para identificar a origem dessas relações "líquidas" ele distingue amor de desejo. Assim, diz que desejo é a vontade de consumir, absorver, devorar, ingerir, provar, explorar e satisfazer-se com os outros. Processo esse que gera refugos indigestos dos quais os "amantes" querem se livrar. Lembro, por exemplo, a camisinha depois do coito, a mancha de batom, o perfume, o outro(a).

Já o amor "é vontade de cuidar e preservar o 'objeto' cuidado. Ingerir, absorver e assimilar o sujeito no 'objeto', e não vice-versa. É contribuir com o mundo, cada contribuição como traço vivo do eu que ama. No amor, o eu é pedaço por pedaço, transplantado para o mundo. O eu que ama se doa ao 'objeto' amado. Amar diz respeito a auto-sobrevivência através da alteridade. Amor significa proteger, alimentar, abrigar, carícia, afago e mimo. Amar é estar a serviço, à disposição. Mas também pode ser responsabilidade e sacrifício."

Concordo, mas pergunto: quem, na nossa sociedade do consumismo (onde relações também são produtos), quer amar? Nunca houve tantos divórcios! Ir a uma boate é como ir ao shopping: neste você pode escolher mercadorias, olhar, pegar, experimentar amostras grátis; naquelas você faz o mesmo com o próximo(a). A maioria vai à boate para ser consumidor e consumido tentando diminuir sua carência afetiva da ausência gerada pela busca do outro; que outro? Si mesmo como no espelho da bruxa de Branca de Neve: espelho, espelho meu... Busca essa baseada no bem-estar egoísta ensinado nos catálogos shoptime que nos ilude a procurar a pessoa perfeita que só existe... na novela!

sexta-feira, 17 de junho de 2011

ENSAIO SOBRE A ORIGEM DA CONCEPÇÃO DE IMORTALIDADE


Gerson Nei Lemos Schulz


* Este artigo contém "spoilers"




Quem quer viver para sempre? Esse é o título de uma música da banda "Queen" que foi composta em 1986 para o filme "Highlander, o guerreiro imortal", conforme nome no Brasil. O filme conta a história de um habitante de outro planeta que mora entre os humanos e cuja principal característica é ser imortal.

O primeiro filme da série mostra o personagem principal chamado Connor MacLeod descobrindo que é imortal. São duas histórias paralelas: uma que se passa em 1986 em Nova York e outra em que ele vivia na Escócia do século XVI. Na história que se passa no início da Modernidade, ele vive com uma companheira que, aos poucos vai, naturalmente, envelhecendo. Essa parte do filme acaba quando ela morre e ele vai embora da Escócia permanentemente jovem, pois não pode envelhecer nem que queira.

A questão central do filme é indagar o expectador sobre a possibilidade de um homem ser imortal e, sendo, o que ele faria com essa capacidade. E você, o que faria se pudesse ser imortal?

No filme dos anos 1980, o personagem vê todos aqueles que ele mais ama morrerem. MacLeod vive a morte de todos os outros menos a sua. E vive sabendo que se se envolver com alguém amorosamente, a mesma história se repetirá. Assim, o filme mostra o lado negativo de se ser imortal, em outras palavras, em vez de Connor MacLeod ser feliz, ele é infeliz devido às consequências de sua imortalidade.


Ouso dizer que a imortalidade desejada pelo homem desde que começou a compreender a morte, desde que a morte entrou no jogo cultural e adquiriu significado ontológico e não apenas filogenético, passou a ser desejada como forma de combate à morte e à natureza. O homem pré-histórico desejava tanto ser imortal para dominar a morte quanto dominar a natureza para ser o "homem". Desde então, não é mais possível ser-se homem sem impingir às gerações esse combate contra a natureza que é "cruel" (porque a morte é natural); estaria aí a crueldade da natureza.

Assim, o homem passou a ontologizar o corpo, ou seja, passou a ver nele e dentro dele, o espírito - uma criação, um símbolo seu - para driblar a morte, para amenizar a ausência do corpo morto, de si ou do outro, que pensava que lhe pertencia (seja o seu próprio corpo, seja o de uma esposa, de um filho, de um pai). Criou-se a religião, o conjunto dos ritos para entender e dominar a morte.

Oferenda de velas para uma árvore,
dias atuais

Nos tempos pré-históricos o homem praticava o tipo de religião chamado "animismo". Por não poder explicar os "mistérios" da natureza na qual estava plenamente imerso durante toda a vida e sofrendo seus efeitos naturais: do clima, da saúde, da doença, das colheitas, da caça, da morte; ele começou a dividir a natureza em feras, árvores, rios, lagos, montanhas e etc. então, logo o homem passou a representar estes entes naturais criando o "deus das águas" (mares, rios, lagos e canais, vitais para a manutenção da vida e para a troca de mercadorias e comunicação entre povos), a "deusa da chuva" (vital para a agricultura), o "deus dos trovões" (masculino, símbolo do poder), a "deusa da caça" (alimentos), a "deusa da agricultura" (alimentos), o "deus do vinho" (importante bebida para recreação e ritos religiosos, também bebida misteriosa devido, na época, ao inexplicável fenômeno da fermentação e dos efeitos do álcool). Mas a mais importante das divindades criadas nesse período e que aparece em quase todas as culturas, por mais diferentes que sejam, é a "grande mãe", a "Mãe Terra. A Gaia, responsável pela fertilidade de animais, plantas e homens. A figura da "mãe" é uma representação do cuidado e da manutenção da vida dos homens. O sol também é um elemento que cedo é tornado "deus" nas diversas culturas. Assim, a Terra, o sol, a lua são tornados "deuses" devido a importância que tinham para a sobrevivência humana, pois da Terra e da terra provinham tudo que o homem consumia, do Sol vinha a luz que permitia o trabalho, vinha o calor, as estações do ano. A lua permitiu o surgimento dos primeiros calendários e atribuiu-se a ela vários poderes mágicos. Após a sistematização das diversas religiões antigas como a etrusca, a grega, a romana e a cristã surgiram várias figuras humanizadas da "deusa Terra". Assim é o caso de Rhea Silvia e Sibele e, atualmente, seguindo essa tradição, é o caso da "mãe" mais famosa na cultura ocidental e cujas origens está também nas primeiras mães do período primitivo, trata-se da "virgem Maria" dos evangelhos. A "mãe de Deus" ou de Jesus.

Na pré-história as primeiras tribos humanas não enterravam seu mortos, eles eram deixados ao ar livre para seus corpos se decomporem. Com o tempo, o homem pré-histórico percebeu que os corpos deixados em grutas ou cavernas tinha um tipo de decomposição diferente porque decomposta a carne, os ossos se cobriam de carbonato de cálcio e o esqueleto era preservado por muito mais tempo. Praticamente esta era a forma encontrada para cristalizar a presença daquele que morreu. Os túmulos, assim, passaram também a ser local de adoração ao ancestral morto, lugar sagrado. Alguns povos acreditavam, inclusive, que o espírito do morto permanecia junto ao seu cadáver e por isso eram ali depositados comida, água e seus antigos pertences.


Atualmente se acredita que esse fenômeno de enterrar os mortos tenha se dado por volta de 35.000 anos a.C.. Com o ritual de enterrar os mortos, criou-se aí a ideia de que a terra "comia" tudo e todo aquele que morria. Que a vida do homem sobre o planeta estava eternamente submissa aos desígnios da natureza. As mesmas chuvas que alimentavam a agricultura também causam inundações e morte. O mesmo vento que soprava os rios, causava estragos.




Exemplo típico de uma montanha sagrada:
o Monte Sinai no Egito, importante ponto
religioso para o judaísmo e o cristianismo





Com a incompreensão da morte, os povos que habitavam florestas ou próximo a elas criaram uma gama de deuses e deusas para expressar o desconhecido. Era comum na idade da pedra lascada as tribos existentes oferecerem à floresta de onde extraiam seu alimento a melhor parte desse alimento como forma de agradecimento pelo alimento que a floresta proporcionava. As comunidades que compartilhavam uma vida próxima a um rio ofereciam ao rio a melhor parte da pesca proporcionada pelo rio. Os povos que viviam perto de montanhas costumavam atribuir à montanha algum valor sagrado, dizer que nela habitava algum "deus" protetor daquela aldeia. Também, em comum, homens e mulheres deste período passaram a atribuir aos "deuses" o poder sobre a morte porque pensavam que seus deuses eram imortais. Uma conclusão extraída da observação de que mesmo que os humanos morressem, determinado rio, floresta ou montanha permanecia "eterno".

Representação do deus grego Zeus

Quando surgiram as primeiras civilizações, surgiram as organizações religiosas (zoroastrismo, budismo, judaísmo, xintoísmo, hinduísmo, cristianismo, islamismo). Essas religiões sistematizadas com seus códices, ética, sua moral, controlada por um sacerdote ou grupo de iniciados, ligou-se à organização política das primeiras civilizações. No mundo antigo a política estava subordinada, em algumas culturas como as do Oriente Médio (Mesopotâmia), aos sacerdotes. Isso também ocorria no antigo Egito onde o Faraó só podia ser eleito dentre os sacerdotes. Na Grécia antiga havia a democracia, porém em todas as cidades-estado sempre houve uma forte influência dos sacerdotes sobre os políticos e sobre o povo em geral que costumava procurar os adivinhos ou oráculos para saber se determinada ação sua no mundo dos negócios ou em outra esfera social daria certo. Em Roma, durante o período imperial, os imperadores se autodeterminavam filhos dos deuses ou os próprios deuses.

Representação do Imperador
Romano Constantino
Em 313 d. C. quando o imperador Constantino decretou o cristianismo como a religião oficial do Império Romano que abarcava toda a Europa, parte do Oriente e o Norte da África, os valores cristãos católicos passaram a ser obrigatórios em todas as esferas sociais. A igreja romana, juntamente com o Estado, mandava na sociedade. Seus ritos, sua moral, sua ética, a "tradição" (que é o conjunto das crenças da fé construída por uma autoridade religiosa ou por um colegiado de autoridades e que deve ser perene), a palavra de seus documentos, passou a valer.

Mas em relação à sistematização da imortalidade na Índia, muito antes do cristianismo, os orientais já produziram um conjunto de valores que incluíam a ideia da existência de um "espírito" que é imortal e que poderá retornar ao mundo no futuro por meio da reencarnação. No Egito antigo a crença na reencarnação era comum, daí as múmias, pois os egípcios acreditavam que o espírito retornaria ao mesmo corpo por força dos deuses, então para preservar os corpos, os mumificavam. O detalhe é que a reencarnação para os egípcios se daria no mesmo corpo, fato que se chamaria "ressurreição" nas culturas babilônica, caldeia, assíria e judaica.

Na Grécia antiga os filósofos Pitágoras, Sócrates e Platão pregavam a existência de um espírito imortal nos homens e mulheres e a reencarnação, porém - em parte - nos mesmos moldes dos orientais, porque esta se daria em um corpo diferente e em outra vida, em outro tempo histórico, mas diferentemente da crença oriental, todo homem e toda mulher reencarnaria diversas vezes até "pagar" por todas as suas más ações praticadas em vidas passadas (essa é a versão ocidental de Karma).


Múmia Egípcia

Já no oriente, para o budismo, por exemplo, Karma significa em sânscrito, ação, portanto, a reencarnação na cultura oriental e o Karma significam que todo homem e mulher deve reencarnar para "equilibrar" todas as suas ações (Karma). O Karma, nesse caso, não é, como para os ocidentais - uma dívida. Ele é a compreensão de que toda ação feita por um ser-humano envolve igualmente uma reação que deve ser equilibrada. Não sendo possível, por exemplo, reequilibrar uma ação homicida (no caso de alguém praticar um homicídio na atual existência), o homicida deve reencarnar para, talvez, sofrer na outra vida o mesmo ato que praticou contra outrem ou algo parecido. O Karma pode ser também positivo, de forma que se alguém em uma existência anterior praticou o amor ao próximo, em uma existência futura receberá essa mesma prática de volta.

Nas visões culturais do oriente (China, Índia, Japão), a imortalidade não é somente uma capacidade humana, ela é o fundamento de toda a história que é cíclica, pois um espírito (a pessoa) deve encarnar e reencarnar várias vezes, ciclicamente. Então, a história para aqueles povos não é linear como no ocidente (em que o fim da história se dará quando acontecer o "Juízo Final" bíblico). O ciclo de uma existência só se fecha no oriente quando o espírito individual de alguém merecer se fundir com Brahma e se transformar em "deus", diluído no universo.

Hippolyte Rivail
1804-1869
No ocidente cristianizado de hoje a ideia de reencarnação ficou no ostracismo por centenas de anos devido aos esforços da igreja católica em pregar a ressurreição, ideia que vem da tradição religiosa do oriente médio, especialmente judaica e também adotada pelo islamismo, surgido por volta de 672 d.C.. Ressurreição e reencarnação são conceitos muito diferentes.

Reencarnação significa que existe um espírito imortal que encarna, se faz carne, vive e morre. Quando o corpo morre ocorre o desencarne, então o espírito segundo a concepção platônica sofre um processo escatológico. Caso o espírito enquanto encarnado tenha realizado boas ações (éticas, morais, praticante da justiça) ele vai para a "ilha de bem-aventuranças", caso não, vai para os mundos inferiores onde poderá ficar por longo tempo até ser resgatado e se preparar para reencarnar (sua segunda chance) para tentar praticar na nova vida terrena boas ações. Esse conceito foi recuperado no século XIX por um francês chamado Allan Kardec (Hippolyte Rivail) fundador do "espiritismo moderno".

Ressurreição, por outro lado, tem origem nas culturas do oriente médio como egípcia, caldaica e judaica e significa que homens e mulheres têm um espírito imortal que se faz carne pela vontade de "deus" (o 'deus' judaico-cristão, por exemplo). Após a morte do corpo físico, esse espírito que é imortal retorna para as mãos de "deus" e lá permanece até o dia do Juízo Final (no caso do cristianismo) quando, igualmente pela vontade de Deus, ressuscitará, ou seja, o espírito acordará e receberá novamente uma carne para habitar, um corpo semelhante àquele que tinha quando vivia na terra, em aparência física e intelectual, porém esse novo corpo será imortal, imperecível e eterno. Para o cristianismo, aqueles que até o dia do "juízo final" não seguiram a doutrina cristã, não praticaram o bem em vida, não terão segunda chance como na concepção da reencarnação, pois irão para o inferno onde permanecerão para sempre.

Em uma visão filosófica atual se pode afirmar que não é o fato de muitos acreditarem em uma religião que a torna algo verdadeiro. As filosofias de Friedrich Nietzsche (1844-1900) e de Marx (1818-1883), por exemplo, inferem que a religião é um jogo fundado sobre estruturas fixas que não passam de máscaras que criam uma realidade como um mosaico cria a ilusão da compreensão da totalidade. A infra-estrutura da religião é "deus", a hierarquia, sua superestrutura. Não existindo "deus", todo o resto desaba. Rui o alicerce. Perde-se todo sentido do discurso do sacerdote que não passará de um jogo de palavras (máscaras) para esconder uma realidade, a morte, e o fato inegável que ela continua sendo a ausência do outro/a. Claro, essa concepção filosófica é materialista. Ignora qualquer transcendência. Não considera e nem se preocuparia em investigar ou explicar os fenômenos espíritas, o sentimento de fé das pessoas, os "milagres" ou curas inexplicáveis pela ciência atual.


O que Marx e Nietzsche, cada qual a seu modo, fazem refletir é que desde quase sempre os seres humanos almejaram ser imortais e para isso tentaram criar uma "máscara" - como diria Nietzsche - sobre a realidade para dominá-la. Sem discutir aqui a validade ou não das religiões, a tese que esses filósofos defendem diz que a ideia de imortalidade é mais uma ideia "fonte". Nietzsche diz que a religião é uma fonte de poder, primeiro porque desde o início o homem atribuiu o poder a algo além dele mesmo, incompreensível, os deuses. Mas esse atribuir poder aos deuses foi também atribuir poder a si mesmo porque à medida que o homem dá poder a determinado "deus", entre estes, a imortalidade, o homem acredita que também, por existir algo maior que ele e que é imortal, ele mesmo também poderá, um dia, gozar desse benefício, a imortalidade.

A partir daí surgem os iniciados, aqueles que dominam a ritualística religiosa. Aqueles que conhecem mais que todos os mistérios, as formas de agradar aos deuses, os períodos corretos para se fazer as oferendas. Então aparece, conforme diz Nietzsche, o sacerdote e, com ele, o poder de controlar as pessoas da comunidade que comungam da mesma fé. O sacerdote, para Nietzsche, ao se autodenominar o conhecedor de "deus", se proclama tal poder que é imediatamente reconhecido pelos outros que se tornam seus subordinados pensando que se submetendo aos desígnios do sacerdote, se submetem à vontade dos deuses. Não é a toa que em boa parte das culturas antigas o sacerdote era também o rei ou imperador e toda sua linhagem era considerada divina.


O filósofo
Nietzsche

O grande problema que Nietzsche e Marx veem na religião é a manipulação e o mascaramento de determinadas realidades. Para eles que defendiam a tese de que a religião em geral não é sagrada porque é apenas uma interpretação humana de certos fenômenos "inexplicáveis", a religião é um instrumento de manipulação das pessoas. A exploração das fraquezas humanas como o medo da morte, da dor, da doença, por meio de promessas cujo cumprimento se atribui aos deuses mediante oferendas ou ritos, orações, cânticos e sacrifícios - humanos em algumas culturas antigas e de animais ou vegetais em culturas animistas ainda  hoje existentes.

Para finalizar este discurso sobre a imortalidade, retomo o enredo do filme que serve de base para essa reflexão. "O Guerreiro Imortal" que veio de outro planeta simboliza o que foi dito. Ele não pode passar a propriedade da imortalidade para ninguém que viva na Terra. Ele mesmo só permanece imortal se realizar um sacrifício, o de outros guerreiros como ele que - apesar de serem imortais - têm um ponto fraco, morrem se cortarem suas cabeças. A cabeça, símbolo do controle, do poder. No segundo filme da série chamado "Highlander II: The Quickening" (Highlander II: A Ressurreição"), o personagem Juan Ramirez, morto no primeiro filme, retorna à vida. Ele ressuscita porque volta à vida no mesmo corpo que possuía, reconstituído.


O highlander Juan Ramirez
(Sean Connery)



A imortalidade não traz a felicidade ao personagem porque o próprio tempo - que é infinito - torna a vida entediante. O personagem vive apenas a morte dos entes queridos e está, como os deuses gregos antigos, condenado à vida, a ser imortal; logo, ele não poderá nunca ser humano porque somente o elemento humano é mortal.


Mesmo que exista um espírito imortal em toda mulher e em todo homem, ainda assim a morte persiste enquanto fenômeno físico. A morte do corpo físico é a fronteira e a compreensão limite de todo feito humano. Qualquer homem ou mulher sabe que morrerá, que seu tempo na Terra acabará mais dia, menos dia. E esta certeza torna a própria vida aqui relativa.


Enfim, a luta diária, a ambição pela riqueza, o desprezo pelos outros, a mesquinharia, o amor ou a paixão, tudo o que as pessoas fazem aqui se torna insignificante diante da morte. O corpo, única certeza humana, perecerá. Nem ele é propriedade eterna. Por outra perspectiva, o desejo da imortalidade é mais que religião, é arte - catarse - porque alguém que se pense imortal, ainda que seja pela graça de um "deus", tem forças para continuar sua caminhada terrena, motivo para procurar significados onde aparentemente reina o caos. Isso é um paradoxo! O paradoxo está em pensar que a vida na Terra perece, mas que para que a possamos viver, é preciso também pensar que a morte individual é que dá significado à existência. O paradoxo está em que para continuarmos vivendo na Terra necessário se faz acreditar na imortalidade do espírito e para merecer essa imortalidade, necessário se faz viver aqui na Terra. E parece que é este paradoxo que é a motivação para que as pessoas continuem sua vida, mesmo que ela seja finita e entediante!