COMPARTILHE

sexta-feira, 17 de junho de 2011

ENSAIO SOBRE A ORIGEM DA CONCEPÇÃO DE IMORTALIDADE


Gerson Nei Lemos Schulz


* Este artigo contém "spoilers"




Quem quer viver para sempre? Esse é o título de uma música da banda "Queen" que foi composta em 1986 para o filme "Highlander, o guerreiro imortal", conforme nome no Brasil. O filme conta a história de um habitante de outro planeta que mora entre os humanos e cuja principal característica é ser imortal.

O primeiro filme da série mostra o personagem principal chamado Connor MacLeod descobrindo que é imortal. São duas histórias paralelas: uma que se passa em 1986 em Nova York e outra em que ele vivia na Escócia do século XVI. Na história que se passa no início da Modernidade, ele vive com uma companheira que, aos poucos vai, naturalmente, envelhecendo. Essa parte do filme acaba quando ela morre e ele vai embora da Escócia permanentemente jovem, pois não pode envelhecer nem que queira.

A questão central do filme é indagar o expectador sobre a possibilidade de um homem ser imortal e, sendo, o que ele faria com essa capacidade. E você, o que faria se pudesse ser imortal?

No filme dos anos 1980, o personagem vê todos aqueles que ele mais ama morrerem. MacLeod vive a morte de todos os outros menos a sua. E vive sabendo que se se envolver com alguém amorosamente, a mesma história se repetirá. Assim, o filme mostra o lado negativo de se ser imortal, em outras palavras, em vez de Connor MacLeod ser feliz, ele é infeliz devido às consequências de sua imortalidade.


Ouso dizer que a imortalidade desejada pelo homem desde que começou a compreender a morte, desde que a morte entrou no jogo cultural e adquiriu significado ontológico e não apenas filogenético, passou a ser desejada como forma de combate à morte e à natureza. O homem pré-histórico desejava tanto ser imortal para dominar a morte quanto dominar a natureza para ser o "homem". Desde então, não é mais possível ser-se homem sem impingir às gerações esse combate contra a natureza que é "cruel" (porque a morte é natural); estaria aí a crueldade da natureza.

Assim, o homem passou a ontologizar o corpo, ou seja, passou a ver nele e dentro dele, o espírito - uma criação, um símbolo seu - para driblar a morte, para amenizar a ausência do corpo morto, de si ou do outro, que pensava que lhe pertencia (seja o seu próprio corpo, seja o de uma esposa, de um filho, de um pai). Criou-se a religião, o conjunto dos ritos para entender e dominar a morte.

Oferenda de velas para uma árvore,
dias atuais

Nos tempos pré-históricos o homem praticava o tipo de religião chamado "animismo". Por não poder explicar os "mistérios" da natureza na qual estava plenamente imerso durante toda a vida e sofrendo seus efeitos naturais: do clima, da saúde, da doença, das colheitas, da caça, da morte; ele começou a dividir a natureza em feras, árvores, rios, lagos, montanhas e etc. então, logo o homem passou a representar estes entes naturais criando o "deus das águas" (mares, rios, lagos e canais, vitais para a manutenção da vida e para a troca de mercadorias e comunicação entre povos), a "deusa da chuva" (vital para a agricultura), o "deus dos trovões" (masculino, símbolo do poder), a "deusa da caça" (alimentos), a "deusa da agricultura" (alimentos), o "deus do vinho" (importante bebida para recreação e ritos religiosos, também bebida misteriosa devido, na época, ao inexplicável fenômeno da fermentação e dos efeitos do álcool). Mas a mais importante das divindades criadas nesse período e que aparece em quase todas as culturas, por mais diferentes que sejam, é a "grande mãe", a "Mãe Terra. A Gaia, responsável pela fertilidade de animais, plantas e homens. A figura da "mãe" é uma representação do cuidado e da manutenção da vida dos homens. O sol também é um elemento que cedo é tornado "deus" nas diversas culturas. Assim, a Terra, o sol, a lua são tornados "deuses" devido a importância que tinham para a sobrevivência humana, pois da Terra e da terra provinham tudo que o homem consumia, do Sol vinha a luz que permitia o trabalho, vinha o calor, as estações do ano. A lua permitiu o surgimento dos primeiros calendários e atribuiu-se a ela vários poderes mágicos. Após a sistematização das diversas religiões antigas como a etrusca, a grega, a romana e a cristã surgiram várias figuras humanizadas da "deusa Terra". Assim é o caso de Rhea Silvia e Sibele e, atualmente, seguindo essa tradição, é o caso da "mãe" mais famosa na cultura ocidental e cujas origens está também nas primeiras mães do período primitivo, trata-se da "virgem Maria" dos evangelhos. A "mãe de Deus" ou de Jesus.

Na pré-história as primeiras tribos humanas não enterravam seu mortos, eles eram deixados ao ar livre para seus corpos se decomporem. Com o tempo, o homem pré-histórico percebeu que os corpos deixados em grutas ou cavernas tinha um tipo de decomposição diferente porque decomposta a carne, os ossos se cobriam de carbonato de cálcio e o esqueleto era preservado por muito mais tempo. Praticamente esta era a forma encontrada para cristalizar a presença daquele que morreu. Os túmulos, assim, passaram também a ser local de adoração ao ancestral morto, lugar sagrado. Alguns povos acreditavam, inclusive, que o espírito do morto permanecia junto ao seu cadáver e por isso eram ali depositados comida, água e seus antigos pertences.


Atualmente se acredita que esse fenômeno de enterrar os mortos tenha se dado por volta de 35.000 anos a.C.. Com o ritual de enterrar os mortos, criou-se aí a ideia de que a terra "comia" tudo e todo aquele que morria. Que a vida do homem sobre o planeta estava eternamente submissa aos desígnios da natureza. As mesmas chuvas que alimentavam a agricultura também causam inundações e morte. O mesmo vento que soprava os rios, causava estragos.




Exemplo típico de uma montanha sagrada:
o Monte Sinai no Egito, importante ponto
religioso para o judaísmo e o cristianismo





Com a incompreensão da morte, os povos que habitavam florestas ou próximo a elas criaram uma gama de deuses e deusas para expressar o desconhecido. Era comum na idade da pedra lascada as tribos existentes oferecerem à floresta de onde extraiam seu alimento a melhor parte desse alimento como forma de agradecimento pelo alimento que a floresta proporcionava. As comunidades que compartilhavam uma vida próxima a um rio ofereciam ao rio a melhor parte da pesca proporcionada pelo rio. Os povos que viviam perto de montanhas costumavam atribuir à montanha algum valor sagrado, dizer que nela habitava algum "deus" protetor daquela aldeia. Também, em comum, homens e mulheres deste período passaram a atribuir aos "deuses" o poder sobre a morte porque pensavam que seus deuses eram imortais. Uma conclusão extraída da observação de que mesmo que os humanos morressem, determinado rio, floresta ou montanha permanecia "eterno".

Representação do deus grego Zeus

Quando surgiram as primeiras civilizações, surgiram as organizações religiosas (zoroastrismo, budismo, judaísmo, xintoísmo, hinduísmo, cristianismo, islamismo). Essas religiões sistematizadas com seus códices, ética, sua moral, controlada por um sacerdote ou grupo de iniciados, ligou-se à organização política das primeiras civilizações. No mundo antigo a política estava subordinada, em algumas culturas como as do Oriente Médio (Mesopotâmia), aos sacerdotes. Isso também ocorria no antigo Egito onde o Faraó só podia ser eleito dentre os sacerdotes. Na Grécia antiga havia a democracia, porém em todas as cidades-estado sempre houve uma forte influência dos sacerdotes sobre os políticos e sobre o povo em geral que costumava procurar os adivinhos ou oráculos para saber se determinada ação sua no mundo dos negócios ou em outra esfera social daria certo. Em Roma, durante o período imperial, os imperadores se autodeterminavam filhos dos deuses ou os próprios deuses.

Representação do Imperador
Romano Constantino
Em 313 d. C. quando o imperador Constantino decretou o cristianismo como a religião oficial do Império Romano que abarcava toda a Europa, parte do Oriente e o Norte da África, os valores cristãos católicos passaram a ser obrigatórios em todas as esferas sociais. A igreja romana, juntamente com o Estado, mandava na sociedade. Seus ritos, sua moral, sua ética, a "tradição" (que é o conjunto das crenças da fé construída por uma autoridade religiosa ou por um colegiado de autoridades e que deve ser perene), a palavra de seus documentos, passou a valer.

Mas em relação à sistematização da imortalidade na Índia, muito antes do cristianismo, os orientais já produziram um conjunto de valores que incluíam a ideia da existência de um "espírito" que é imortal e que poderá retornar ao mundo no futuro por meio da reencarnação. No Egito antigo a crença na reencarnação era comum, daí as múmias, pois os egípcios acreditavam que o espírito retornaria ao mesmo corpo por força dos deuses, então para preservar os corpos, os mumificavam. O detalhe é que a reencarnação para os egípcios se daria no mesmo corpo, fato que se chamaria "ressurreição" nas culturas babilônica, caldeia, assíria e judaica.

Na Grécia antiga os filósofos Pitágoras, Sócrates e Platão pregavam a existência de um espírito imortal nos homens e mulheres e a reencarnação, porém - em parte - nos mesmos moldes dos orientais, porque esta se daria em um corpo diferente e em outra vida, em outro tempo histórico, mas diferentemente da crença oriental, todo homem e toda mulher reencarnaria diversas vezes até "pagar" por todas as suas más ações praticadas em vidas passadas (essa é a versão ocidental de Karma).


Múmia Egípcia

Já no oriente, para o budismo, por exemplo, Karma significa em sânscrito, ação, portanto, a reencarnação na cultura oriental e o Karma significam que todo homem e mulher deve reencarnar para "equilibrar" todas as suas ações (Karma). O Karma, nesse caso, não é, como para os ocidentais - uma dívida. Ele é a compreensão de que toda ação feita por um ser-humano envolve igualmente uma reação que deve ser equilibrada. Não sendo possível, por exemplo, reequilibrar uma ação homicida (no caso de alguém praticar um homicídio na atual existência), o homicida deve reencarnar para, talvez, sofrer na outra vida o mesmo ato que praticou contra outrem ou algo parecido. O Karma pode ser também positivo, de forma que se alguém em uma existência anterior praticou o amor ao próximo, em uma existência futura receberá essa mesma prática de volta.

Nas visões culturais do oriente (China, Índia, Japão), a imortalidade não é somente uma capacidade humana, ela é o fundamento de toda a história que é cíclica, pois um espírito (a pessoa) deve encarnar e reencarnar várias vezes, ciclicamente. Então, a história para aqueles povos não é linear como no ocidente (em que o fim da história se dará quando acontecer o "Juízo Final" bíblico). O ciclo de uma existência só se fecha no oriente quando o espírito individual de alguém merecer se fundir com Brahma e se transformar em "deus", diluído no universo.

Hippolyte Rivail
1804-1869
No ocidente cristianizado de hoje a ideia de reencarnação ficou no ostracismo por centenas de anos devido aos esforços da igreja católica em pregar a ressurreição, ideia que vem da tradição religiosa do oriente médio, especialmente judaica e também adotada pelo islamismo, surgido por volta de 672 d.C.. Ressurreição e reencarnação são conceitos muito diferentes.

Reencarnação significa que existe um espírito imortal que encarna, se faz carne, vive e morre. Quando o corpo morre ocorre o desencarne, então o espírito segundo a concepção platônica sofre um processo escatológico. Caso o espírito enquanto encarnado tenha realizado boas ações (éticas, morais, praticante da justiça) ele vai para a "ilha de bem-aventuranças", caso não, vai para os mundos inferiores onde poderá ficar por longo tempo até ser resgatado e se preparar para reencarnar (sua segunda chance) para tentar praticar na nova vida terrena boas ações. Esse conceito foi recuperado no século XIX por um francês chamado Allan Kardec (Hippolyte Rivail) fundador do "espiritismo moderno".

Ressurreição, por outro lado, tem origem nas culturas do oriente médio como egípcia, caldaica e judaica e significa que homens e mulheres têm um espírito imortal que se faz carne pela vontade de "deus" (o 'deus' judaico-cristão, por exemplo). Após a morte do corpo físico, esse espírito que é imortal retorna para as mãos de "deus" e lá permanece até o dia do Juízo Final (no caso do cristianismo) quando, igualmente pela vontade de Deus, ressuscitará, ou seja, o espírito acordará e receberá novamente uma carne para habitar, um corpo semelhante àquele que tinha quando vivia na terra, em aparência física e intelectual, porém esse novo corpo será imortal, imperecível e eterno. Para o cristianismo, aqueles que até o dia do "juízo final" não seguiram a doutrina cristã, não praticaram o bem em vida, não terão segunda chance como na concepção da reencarnação, pois irão para o inferno onde permanecerão para sempre.

Em uma visão filosófica atual se pode afirmar que não é o fato de muitos acreditarem em uma religião que a torna algo verdadeiro. As filosofias de Friedrich Nietzsche (1844-1900) e de Marx (1818-1883), por exemplo, inferem que a religião é um jogo fundado sobre estruturas fixas que não passam de máscaras que criam uma realidade como um mosaico cria a ilusão da compreensão da totalidade. A infra-estrutura da religião é "deus", a hierarquia, sua superestrutura. Não existindo "deus", todo o resto desaba. Rui o alicerce. Perde-se todo sentido do discurso do sacerdote que não passará de um jogo de palavras (máscaras) para esconder uma realidade, a morte, e o fato inegável que ela continua sendo a ausência do outro/a. Claro, essa concepção filosófica é materialista. Ignora qualquer transcendência. Não considera e nem se preocuparia em investigar ou explicar os fenômenos espíritas, o sentimento de fé das pessoas, os "milagres" ou curas inexplicáveis pela ciência atual.


O que Marx e Nietzsche, cada qual a seu modo, fazem refletir é que desde quase sempre os seres humanos almejaram ser imortais e para isso tentaram criar uma "máscara" - como diria Nietzsche - sobre a realidade para dominá-la. Sem discutir aqui a validade ou não das religiões, a tese que esses filósofos defendem diz que a ideia de imortalidade é mais uma ideia "fonte". Nietzsche diz que a religião é uma fonte de poder, primeiro porque desde o início o homem atribuiu o poder a algo além dele mesmo, incompreensível, os deuses. Mas esse atribuir poder aos deuses foi também atribuir poder a si mesmo porque à medida que o homem dá poder a determinado "deus", entre estes, a imortalidade, o homem acredita que também, por existir algo maior que ele e que é imortal, ele mesmo também poderá, um dia, gozar desse benefício, a imortalidade.

A partir daí surgem os iniciados, aqueles que dominam a ritualística religiosa. Aqueles que conhecem mais que todos os mistérios, as formas de agradar aos deuses, os períodos corretos para se fazer as oferendas. Então aparece, conforme diz Nietzsche, o sacerdote e, com ele, o poder de controlar as pessoas da comunidade que comungam da mesma fé. O sacerdote, para Nietzsche, ao se autodenominar o conhecedor de "deus", se proclama tal poder que é imediatamente reconhecido pelos outros que se tornam seus subordinados pensando que se submetendo aos desígnios do sacerdote, se submetem à vontade dos deuses. Não é a toa que em boa parte das culturas antigas o sacerdote era também o rei ou imperador e toda sua linhagem era considerada divina.


O filósofo
Nietzsche

O grande problema que Nietzsche e Marx veem na religião é a manipulação e o mascaramento de determinadas realidades. Para eles que defendiam a tese de que a religião em geral não é sagrada porque é apenas uma interpretação humana de certos fenômenos "inexplicáveis", a religião é um instrumento de manipulação das pessoas. A exploração das fraquezas humanas como o medo da morte, da dor, da doença, por meio de promessas cujo cumprimento se atribui aos deuses mediante oferendas ou ritos, orações, cânticos e sacrifícios - humanos em algumas culturas antigas e de animais ou vegetais em culturas animistas ainda  hoje existentes.

Para finalizar este discurso sobre a imortalidade, retomo o enredo do filme que serve de base para essa reflexão. "O Guerreiro Imortal" que veio de outro planeta simboliza o que foi dito. Ele não pode passar a propriedade da imortalidade para ninguém que viva na Terra. Ele mesmo só permanece imortal se realizar um sacrifício, o de outros guerreiros como ele que - apesar de serem imortais - têm um ponto fraco, morrem se cortarem suas cabeças. A cabeça, símbolo do controle, do poder. No segundo filme da série chamado "Highlander II: The Quickening" (Highlander II: A Ressurreição"), o personagem Juan Ramirez, morto no primeiro filme, retorna à vida. Ele ressuscita porque volta à vida no mesmo corpo que possuía, reconstituído.


O highlander Juan Ramirez
(Sean Connery)



A imortalidade não traz a felicidade ao personagem porque o próprio tempo - que é infinito - torna a vida entediante. O personagem vive apenas a morte dos entes queridos e está, como os deuses gregos antigos, condenado à vida, a ser imortal; logo, ele não poderá nunca ser humano porque somente o elemento humano é mortal.


Mesmo que exista um espírito imortal em toda mulher e em todo homem, ainda assim a morte persiste enquanto fenômeno físico. A morte do corpo físico é a fronteira e a compreensão limite de todo feito humano. Qualquer homem ou mulher sabe que morrerá, que seu tempo na Terra acabará mais dia, menos dia. E esta certeza torna a própria vida aqui relativa.


Enfim, a luta diária, a ambição pela riqueza, o desprezo pelos outros, a mesquinharia, o amor ou a paixão, tudo o que as pessoas fazem aqui se torna insignificante diante da morte. O corpo, única certeza humana, perecerá. Nem ele é propriedade eterna. Por outra perspectiva, o desejo da imortalidade é mais que religião, é arte - catarse - porque alguém que se pense imortal, ainda que seja pela graça de um "deus", tem forças para continuar sua caminhada terrena, motivo para procurar significados onde aparentemente reina o caos. Isso é um paradoxo! O paradoxo está em pensar que a vida na Terra perece, mas que para que a possamos viver, é preciso também pensar que a morte individual é que dá significado à existência. O paradoxo está em que para continuarmos vivendo na Terra necessário se faz acreditar na imortalidade do espírito e para merecer essa imortalidade, necessário se faz viver aqui na Terra. E parece que é este paradoxo que é a motivação para que as pessoas continuem sua vida, mesmo que ela seja finita e entediante!

quinta-feira, 9 de junho de 2011

O CASAMENTO E A PÓS-MODERNIDADE


Por: Gerson Nei Lemos Schulz

Publicado originalmente no jornal
Tribuna Amapaense
na cidade de Macapá - Amapá
em 2010, com o título:
"Casamento: uma instituição falida?"




O artigo de hoje faz uma reflexão sobre algo que, grosso modo, dizem que está em crise na sociedade: o casamento.

Já ouvi comentários a respeito, mas nunca tinha parado para pensar sobre o assunto. Certa vez - em 2003 - escutei um reverendo anglicano, na pequena cidade do interior gaúcho chamada Canguçu, contando que um casal o procurou pedindo para marcar a data do casório, ao que ele, quase gritando, disse: "vocês estão batendo bem da cabeça? Casar? Hoje em dia o casamento é uma instituição falida!"

O casal ficou espantado com o reverendo e foi embora, mas depois de uma semana retornaram à igreja e marcaram a data, decididos.

Mas o que me levou a escrever hoje sobre o casamento foi um fato estranho que presenciei de dentro de um ônibus em que estava em um fim de tarde de um domingo pós-moderno quando passava férias na interiorana cidade de Pelotas, no RS. Em uma esquina, ao por do Sol, o ônibus urbano parou para aguardar sua vez de atravessar o trânsito quando apareceu na calçada uma noiva acompanhada de um senhor que deveria ser seu pai. Fiquei espantado de ver que alguém dentro do ônibus disse alto: "olha a noiva!"

O tom era de galhofa. Imediatamente todos os passageiros olharam a cena: a "mulher cruzando a rua" como se ela estivesse fantasiada para o carnaval. Como se a roupa dela representasse mesmo algo obsoleto. O cobrador do ônibus olhou para alguns passageiros sorrindo como se estivesse com pena da "noiva". Várias pessoas riram da mulher vestida de noiva.

Bem, o fato é que hoje em dia, com a mudança dos costumes tradicionais e a crise das igrejas cristãs (seu enfraquecimento), se têm os prazeres do casamento sem se ter seus compromissos (isto é, é fácil, muito fácil, conseguir sexo casual sem ter que se casar com alguém), por outro lado o sabor deste tipo de relação está em saber-se que no dia seguinte segue cada um para sua casa. Homem e mulher ficam "livres" para procurar em outra noite mais uma "transa". Alguns pensam que isso é um "pecado", uma involução dos costumes, mas penso que não. O casamento é uma instituição, um contrato que foi legitimado por um discurso dominante na Idade Média (no Ocidente), o discurso católico. Segundo Freud, as primeiras civilizações proibiram o incesto e estabeleceram a "troca" de mulheres com outras tribos ou grupos para estreitar laços de parentesco, isso é uma possibilidade... não uma verdade!

Mas na idade mais primitiva da humanidade um homem tinha relações com o maior número possível de mulheres e não só para procriar, mas para ter prazer. Sexo era uma necessidade como qualquer outra. A mesma coisa as mulheres (assistam ao filme 'Guerra do Fogo').

Nesse sentido o homem (e mulher) não é um ser monogâmico, ele é polígamo, e arrisco dizer "por natureza". Então por que se espantar se hoje em dia sexo (muitas vezes promíscuo) é algo tão popular? Apenas o que acontece é que deixamos de lado o superego da moral cristã para nos dedicarmos a libertar aquilo que estava recalcado: o Id (instintos mais primordiais). Conceitos como "fidelidade", "até que a morte os separe" e etc. são invenções da moral racionalista e cristã (já dizia Nietzsche).

Nessa perspectiva um homem ter mais de uma mulher, e vice-versa, é o "normal". Há várias sociedades na África (que são muito mais antigas que a Europa) em que as mulheres têm vários maridos. Em contrapartida, em alguns países árabes, os homens têm mais de uma esposa. Quem disse que ter apenas um marido ou esposa é o correto? Essa idéia é bem burguesa, faz entender que o outro é uma "coisa" que pode ser possuída. "Meu marido", "minha esposa". Quem pertence a quem? Que autoridade tem uma igreja, um "livro sagrado", para dizer o que as pessoas devem ser ou fazer na vida privada? Acredita nisso quem quer...

Mesmo assim meus parabéns à noiva, embarcou no sonho medieval e moderno, também judaico-cristão que acredita que o mundo deveria ser perfeito como é o "céu" das igrejas.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

O QUE É A FENOMENOLOGIA?

Gerson Nei Lemos Schulz


Nos artigos anteriores tenho buscado resumir bastante algumas metodologias filosóficas que servem para analisar a realidade, são elas: positivismo, materialismo histórico e hoje a fenomenologia. Mas o que é fenomenologia, afinal?

A fenomenologia é uma metodologia de análise ou interpretação da realidade criada por Edmund Husserl (1859-1938). Husserl era judeu e foi perseguido pelo nazismo. Ele também era matemático e estava descontente com o fato de a Filosofia ter perdido espaço para as ciências duras (matemática, física etc.).

De acordo com Ernildo Stein em "Uma breve introdução à filosofia, 2002" a fenomenologia de Husserl é a tentativa de superação da dicotomia sujeito/objeto. Isto é, desde que a filosofia surgiu, o homem pensa que existe uma realidade fora de si e um sujeito (o Eu) que analisa essa realidade. Caso isso seja verdade, então quer dizer que qualquer um de nós só sabe das coisas a partir de nós mesmos, ou seja, quando uma pessoa vê um objeto ela o vê por meio de seus sentidos e da decodificação que o cérebro faz dos dados transmitidos pelos sentidos. Mas e se os sentidos falharem? Não será errôneo o julgamento que o cérebro fará? Como um cego, alguém que use óculos ou esteja no escuro da noite poderá julgar com perspicácia? Como alguém poderá sentir se sua pele estiver contaminada com hanseníase? Quero dizer, são muitas as ocasiões em que os sentidos falham. Então Husserl, tentando superar a dicotomia sujeito/objeto, afirma que somente aquilo que o cérebro diz da realidade é a realidade.

Em outras palavras, ele quer dizer que aquilo que eu (o homem) representa da realidade é a realidade. Assim, um açaizeiro na floresta não é o mesmo açaizeiro dentro do meu (nosso) cérebro, pois o do meu (nosso) cérebro é uma representação.

Para Husserl, como julgamos e agimos a partir daquilo que achamos que a coisa é, então a nossa representação passa a ser a realidade sobre a qual agimos de fato. Esse processo Husserl chama de "epoché" (suspensão da realidade) ou "pôr entre parênteses" as coisas. Husserl diz que com isso poderemos ir às coisas mesmas ou à essência das coisas. Isto é, um açaizeiro pequeno não representa todos os açaizeiros, mas como o cérebro sabe que um açaizeiro adulto também é açaí? Husserl responde: porque o cérebro capta a essência do açaí (formato da árvore, frutos de cor roxa e etc.).

Então a capacidade do cérebro de conhecer os objetos se dá pela "essência", ou seja, da idéia que o cérebro tem das coisas. E Husserl afirma que a verdade não está nos sentidos nem no cérebro apenas, mas nos dois ao mesmo tempo, ou seja, na idéia porque é a partir dela que o homem age sobre a "realidade". O homem age em função de suas representações. A consciência também é intencional, isto é, o homem sempre analisa determinada realidade de acordo com sua intenção. Um exemplo tosco pode ilustrar: imagine que você perdeu uma chave e está desesperado para encontrá-la, ao olhar para o armário da cozinha várias vezes finalmente a encontra e fica feliz, mas como não estava procurando um incêndio não percebeu que no fogão ao lado do armário esqueceu um queimador aceso. Ou seja, você só viu o que queria ver, mas não toda a realidade que incluía um incêndio iminente, porque sua intenção era encontrar a chave.

domingo, 1 de maio de 2011

O QUE É POSITIVISMO?

GERSON NEI LEMOS SCHULZ



Em muitos casos é comum um aluno bem informado chamar um ou outro professor de "positivista" quando este professor cobra na prova uma resposta tal qual foi escrita no quadro ou quando privilegia quantitativamente as notas reprovando alguém por décimos. Bom, mas o que é, afinal, o Positivismo?

Para o Positivismo, a sociedade existe naturalmente e sua configuração (o modo de ser) representa a natureza das relações humanas. Da mesma forma, como é natural, ela (a sociedade) também evolui naturalmente de acordo com as leis naturais coercitivas em relação aos sujeitos, isto é, as leis que o homem cria são a expressão simbólica (escrita ou falada) daquilo que já existe na natureza. Assim como na natureza pensa-se que os mais fortes governam (e o exemplo predileto dos positivistas vem do mundo animal onde os predadores como tigres, leões, leopardos "comandam" a floresta, porque são mais fortes) da mesma forma no mundo humano os mais fortes (fisicamente, em riquezas ou inteligência) devem liderar.

Quanto ao cientista este deve ser neutro, inclusive nas ciências sociais, pois para conhecer a sociedade ele (cientista) deve empregar o método científico de forma imparcial, assim o sujeito que investiga a realidade apreende a verdade. Isto é, os positivistas afirmam que um cientista consegue "fotografar" a realidade tal qual ela é por meio do método científico.

O Positivismo também pensa a sociedade tal qual Charles Darwin concebeu o mundo natural (flora e fauna), então assim como Darwin identificou que plantas e animais se desenvolvem adaptando-se ao meio no qual estão inseridos, e os mais aptos, apenas, sobrevivem; da mesma forma o Positivismo acredita que há leis específicas que determinam a evolução da humanidade e, sendo assim, também determinam as funções sociais de cada fato social, grupo ou instituição. Em outras palavras, se os mais fortes devem comandar os mais fracos, é normal (porque é natural) que os intelectuais (médicos, professores, advogados etc.) comandem os outros e ganhem mais que faxineiros, empregadas domésticas e etc. Então, para eles (positivistas) o filho de um faxineiro não deverá jamais ser médico porque seu pai ou mãe é faxineiro, em contrapartida o filho do médico deverá, necessariamente, ser médico porque é filho do "mais forte", assim como na selva o filho do leão (forte) será sempre leão e o filho do coelho (fraco) será sempre coelho.

Por fim, como é uma sociedade natural, problemas sociais como a fome, a miséria ou o desemprego são disfunções sociais e precisam ser corrigidos para que o organismo funcione bem. Quer dizer, o Positivismo também concebe a sociedade como se fosse o corpo humano, então se os intestinos estão sofrendo disenteria, todos os demais órgãos sofrem. Por isso a função dos governos é corrigir o "órgão" doente por quaisquer meios para que a sociedade volte a funcionar.

Aplicado ao cotidiano, seria normal que o governo reprimisse violentamente (caso necessário) um protesto (que pode ser uma passeata, uma greve) de um estamento social, pois esse protesto (por melhores salários, por moradia etc.) seria uma disfunção social e, portanto, antinatural.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

VIDA DE CÃO: SEM CULTURA, SEM HISTÓRIA E SEM LÍNGUA

Gerson Nei Lemos Schulz


Outro dia, nas férias de dezembro, estava na casa da minha mãe, uma pessoa que ama animais e que tem nada mais que cinco cães, sete gatos e um casal de frangos. Bom, assim como ela há milhares, talvez milhões de pessoas que fazem a mesma coisa, criam animais em casa, convivem com eles e os tratam como membros da família. É difícil até imaginar alguém que, quando criança, não tenha tido o seu "Totó"! Mas esse fato, não fosse tão cotidiano, causou uma situação que merece uma análise filosófica, e me levou a refletir que os animais não têm cultura, história ou língua.

Para a filósofa Marilena Chaui, cultura é aquilo que é produzido pelo homem, o que não é natural no mundo. Podemos dizer que é a rede de significados que dão sentido ao mundo que cerca um indivíduo, tudo aquilo que a sociedade em geral produz. Essa rede engloba crenças, valores, costumes, leis, moral, línguas etc.

A História, grosso modo, é a memória; aquilo que dá significado ontológico aos fatos (o Ser dos fatos), o que permite relacionar o antes e o depois, criar referências para que o homem se situe no mundo, envolve a noção de tempo e espaço.

Já a língua é o conjunto de regras e sinais que determinadas comunidades usam para se comunicar. São as regras gramaticais em geral. A língua é local, pertence a determinado povo. Por exemplo, o idioma inglês só é entendido pelo povo inglês, ou por quem estude e domine a gramática dessa língua. E isso difere de linguagem que pode ser verbal ou não-verbal. E os animais tem linguagem, pois, assim como você (se for homem) pode sorrir para uma mulher bonita na fila do ônibus, um cão abana sua cauda para o dono que chega, isso é linguagem, usada em contextos e para fins diferentes, mas tem o mesmo significado, representa ou indica uma situação agradável para quem a expressa.

Mas você deve estar curioso para saber porque pensei e escrevi sobre estes conceitos complexos e o que isso tem que ver com as férias! Por causa de uma cena que, caso não fosse triste até certo ponto, seria engraçada. Uma das cadelinhas morreu devido a uma doença comum aos nossos amigos caninos, a parvovirose. Era a "Preta" e ela morreu diante de seus progenitores. Sobrou para mim fazer o enterro, já que alguém tinha que cavar o buraco no jardim, embaixo da goiabeira. Durante os funerais, enquanto eu descia o corpo da morta ao fundo da cova, o progenitor macho da família descansava cochilando sobre a grama fresca olhando o enterro apático. Fechado o sepulcro, ele permaneceu lá, amorfo, descansando. Aí me perguntei: o que faria um pai humano na mesma situação?
Certamente espernearia, choraria, se revoltaria, sentiria uma tristeza profunda. Por quê?

Porque o ser humano tem cultura, história e língua. Tem memória. Sabe a diferença entre o ontem e o hoje. É capaz de dar significado ontológico às coisas, até mesmo inanimadas, humaniza o que não é humano. O animal não é capaz de fazer isso, pelo menos não por si mesmo, e aqueles que fazem algo diferente de sua natureza são adestrados pelos humanos.

Concluindo, ainda resta uma pergunta a ser respondida: quem é mais feliz, quem tem cultura, história e língua ou quem não tem? Achou que eu daria a resposta? Não darei, não, porque eu não sei [...]






sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

O QUE É ROMANTISMO?

Gerson Nei Lemos Schulz





Reale, Giovanni. 
História da filosofia: do humanism a Descartes. 
São Paulo: Paulus, 2004.
Você sabe do que se trata o Romantismo? Muitos pensam que ser romântico é ser "meloso" com o ser amado ou agir de forma sempre dócil e idealista com o mundo. Mas o movimento romântico alemão, interpretado de forma distorcida pelo grande público, não tem nada que ver com isso.


Albert Croll Baugh (estudioso da literatura inglesa) diz que o adjetivo "romântico" aparece pela primeira vez na Inglaterra por volta de meados do séc. XVII como termo usado para indicar o fabuloso, o fantástico, o irreal. Assim, foi resgatado dessa conotação negativa, que passou a ser usado para indicar cenas e situações agradáveis. Gradativamente o termo romantismo passou a indicar o renascimento do instinto e da emoção que o racionalismo do século XVIII quis suprimir.


Mas foi F. Schlegel quem relacionou o movimento Romântico ao romance. O fascínio pelo misterioso e sobrenatural e pela atmosfera de fantasia e heroísmo que dominavam o mundo medieval, ampliaram o sentido do qualificativo que, símbolo de uma nova estética, encontrou suas primeiras manifestações na literatura alemã. Pouco a pouco, o termo passou a significar as expressões épicas e líricas medievais e associar-se ao romance psicológico autobiográfico.



F. Schlegel
1772-1829
O Romantismo é também o movimento espiritual que envolveu a poesia, a filosofia e as artes. Ser romântico se caracteriza também por um comportamento psicológico e moral. Isso exige uma condição de conflito interior radical, uma dilaceração de si mesmo, provocando a tendência ao sentimento de insatisfação consigo mesmo, levando-se à busca de algo mais que, no entanto, escapa continuamente. Assim, Impetuoso e vital, o romantismo surgiu como um movimento que privilegiava a subjetividade individual, em oposição à estética racionalista clássica do Iluminismo representando a exaltação do homem, da natureza e do belo.

Como expressão do espírito de rebeldia, liberdade e independência, o Romantismo propôs-se a trabalhar com a perspectiva do misterioso, do irracional e do imaginativo na vida humana, assim como explorar domínios desconhecidos para libertar a fantasia e a emoção, e reencontrar a natureza humana primordial. A comprovação científica dos fatos substituiu o estabelecimento dogmático das verdades e o culto à arte tornou-se uma das principais alternativas de expressão da espiritualidade entre os intelectuais ocidentais. Filósofos e artistas como Hegel e Berlioz afirmaram que, para eles, a arte era uma religião.

Então, ser romântico, na origem da palavra, não tem o mesmo significado que o senso-comum dá hoje em dia. O Movimento Romântico elevou a figura do poeta a um papel central de profeta e visionário. A apreensão da verdade deveria se dar diretamente a partir da experiência sensorial e emocional do escritor. Os mitos do artista e do amante incompreendidos e rejeitados pela sociedade ou pela amada são criações originais do Romantismo. Nesse contexto J. W. Goethe escreveu Die Leiden des jungen Werthers em 1774 (Os sofrimentos do Jovem Werther), livro que foi acusado, na época, de induzir vários jovens ao suicídio. Logo, ser romântico é não se conformar nunca com o que se tem, mas também se ter consciência que nunca se atingirá o que se quer.

sábado, 29 de janeiro de 2011

NIETZSCHE: A "TEORIA DO NADA"

Gerson Nei Lemos Schulz


Nada! Vazio! Sem sentido! Ausência! Sem referência! Não existir! Coisa alguma!



"Nihil", aquele momento da existência em que tudo que se conhece faz a volta completa no marco zero. Tudo volta a ser tudo e volta a ser nada. Surge um abismo! Não sentir, não querer, não viver. A condição limite mais extrema, por isso limite. Condição negativa da psique!



É isso que se percebe ao se ler Nietzsche (1844-1900) que dizia: "prefiro querer o nada, a nada querer." Era sua forma de dizer que estava vivo, que "em uma estrela azul cintilante inventara-se o conhecimento, ainda que por um breve momento da existência." E que se tudo se congelasse, de repente, fora-se o homem; nada mais restaria, pois fora apenas um instante, mas, ao menos, teria existido o homem. O homem que, para Nietzsche, era apenas uma corda estendida entre o animal e o além-do-homem (como diz em seu Zaratustra), o homem novo. Aquele que se supera a si mesmo, que escapa da mediocridade, do momento mais prófugo da própria existência.



Para Nietzsche a vida moderna nos relegou à mediocridade porque ela é cheia de dinheiro, mas também cheia de doença e todo dinheiro que o homem moderno ganha é para gastar com sua doença, a morte. A guerra franco-prussiana (na qual Nietzsche atuou como enfermeiro), as rivalidades entre os Estados-Nação europeus, a disputa violenta por mercados, a colonização da África. Tudo isso Nietzsche considerava indícios de uma doença, a doença da civilização européia. Por isso ele escreve em "O filósofo como médico da civilização" que o filósofo é o médico que cura a doença do espírito, aqui entende espírito tal qual a cultura.



Assim, em uma pequena obra: "Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino", Nietzsche prega que a educação é sempre reflexão, que nunca pode ser repetição, mas ele não quer dizer, com isso, que se deva jogar na lata do lixo tudo o que a civilização construiu até aqui, é claro que não há conhecimento "descartável", é preciso não partir do "nada" para não se cair no mesmo "nada". Para isso ele sugere que os estudantes se concentrem nos autores, idéias ou teorias já existentes, que ele chama "cultura", mas que a educação, que para ele pode ser oposta à cultura, faça a reflexão permanente sobre o que chamamos cultura. Quer dizer, Nietzsche alerta para a possibilidade de o homem cair no vazio, presa de suas próprias criações à medida que não as pensa mais nem pensa sobre as ações que executa, pois as executa sem pensar qual é seu sentido.



Que sentido tem ir todo dia trabalhar, estudar, produzir, caso o fruto de tais ações não esteja voltado para a totalidade? Isto é, pensar apenas em si mesmo é garantir seu bem-estar? Ou garantir o bem-estar é pensar no coletivo? É nesse sentido que a obra de Nietzsche, hoje, serve para refletir sobre a vida atribulada que temos. Compromissos, falta de tempo para os filhos, para a esposa, corre-se sempre atrás de mais interesses para quê? O cemitério aguarda a todos!

É isso que significa cair no nada!

Vamos todos morrer? - Sim, então que a vida valha a pena! Que o que fazemos não seja apenas para mover a roda medonha do capitalismo. Que possamos dar sentido a todas as nossas criações sem que sejamos engolidos pelo pseudo-sentido que elas têm para nós.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

NATAL, CULPA E LIBERTAÇÃO

OPINIÃO



Gerson Nei Lemos Schulz





Atualmente a vida está difícil para todas as pessoas. Sofrem-se violências: reais ou simbólicas. Explorações de todo tipo. Há carências em tudo: afeto, alimento, de ter alguém que console. E muitas são as possibilidades que se apresentam para remediar estas coisas. E nesse tempo de Natal, o que mais se vê são as lojas cheias. O consumo, a circulação do dinheiro. Outro fato é a busca de consolo para as mazelas humanas nas igrejas. Mas será que nestes lugares se encontra "libertação", consolo?

Parece que o Natal - hoje - é um comércio! Talvez só os gerontocratas das igrejas mais conservadores ainda saibam o que é o Natal, porque a maioria acha que se trata de "dar presentes", e ai daquele que não abrir a mão... é execrado como "pão-duro" pelos parentes ou "amigos". 

Outro grande cinismo (na concepção moderna do termo e não na filosófica) é o "amigo secreto". Algumas pessoas passam o ano inteiro cochichando aos outros que o(a) colega ou o chefe não valem o que comem, mas não hora do 'amigo secreto' saem os sorrisos amarelos, os tapinhas nas costas" que, talvez na fantasia de alguns, pudesse vir acompanhado de uma boa punhalada!

E os padres e pastores? Muitos agem com a desculpa de pregar a paz e o amor, mas o que fazem é adestrar moralmente as pessoas que os procuram com suas doutrinas anti-dialéticas explorando as tristes realidades pessoais e mazelas sociais dos fiéis: alcoolismo, pobreza, degradação. E o que eles (sacerdotes) fazem? No máximo um discurso moralista e por isso hipócrita que nada muda a não ser para eles quando enchem seus bolsos com o dízimo gordo.

Natal? Diziam, grosso modo, Marx, Nietzsche e Freud que a religião é o mecanismo perfeito para dominar os outros e, ainda hoje, vejo práticas religiosas que confirmam isso: a catequese – na verdade – ideologia barata que ainda hoje acontece; a cobrança de grandes fatias de dinheiro dos sectários a título de engrandecer a obra de "deus" e as sessões sentimentalóides promovidas por "shows de fé".

Ao cobrar dinheiro por seus ritos as igrejas angariam sustento para sua casta sacerdotal manter o poder sobre os fiéis com aval monetário. Em relação a isso, lembro que o próprio personagem Jesus, em sua doutrina "teológico-filosófica", queria abolir certas práticas do Templo Judaico como as relações comerciais mantidas pelos fariseus com seu deus. Mas e a igreja cristã dos sectários tardios de Jesus não caiu também nas mesmas contradições dos antigos judeus que Jesus (se é que existiu porque não há provas até hoje) condenou?

Finalmente, o assunto é longo, mas gostaria de ressaltar que até para quem acredita em "deus" a culpa, a meu ver, é a pior das atitudes. Passar a vida inteira acreditando que é portador de um "pecado original"! Temer um suposto castigo divino caso não pague o dízimo, caso não se vá à igreja é uma postura inteligente? Mas "tudo bem!" Vive-se em uma sociedade plural, então, para aqueles que querem acreditar em tais idéias: gnomos, fadas, deuses e papai Noel, bom proveito! É claro, cada um sabe de si e caso não seja o suficiente encher a cara na noite de Natal para esquecer o tédio, os stress, ainda se tem o Réveillon.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

CÍRCULO DE VIENA: O TRISTE FIM DO PROFESSOR MORITZ SCHLICK

 Gerson Nei Lemos Schulz


Fazia dias que Moritz Schlick (1882-1936) estava preocupado, pois um de seus alunos, a quem havia dado uma nota baixa em um trabalho, o ameaçava de morte. Ele até procurou a polícia para pedir proteção, mas nada conseguiu, porque naqueles dias de 1936 a Áustria estava cheia de policiais simpatizantes dos nazistas, e Schlick não gostava dos nazistas.
Porém, antes dessas ameaças, ele fundou, em 1924, com Otto Neurath (1882-1945), Olga Neurath (1882-1937) e Rudolf Carnap (1891-1970), o Círculo de Viena. Movimento conhecido internacionalmente. De acordo com Reale (História da Filosofia, 1991, p. 992) ele era professor de Física, mas tendeu para a Filosofia.
O objetivo do Círculo era fundamentar a Filosofia, na época, em declínio frente à Física e à Matemática, como ciência de rigor. Não se pode negar que em suas teses gerais as idéias de Kant (1724-1804) estão presentes, especialmente, os juízos analíticos e sintéticos a priori e a posteriori. Mas, o Círculo, também, seguia o Positivismo de Augusto Comte (1798-1857), que renovara como neopositivismo, pois, para eles, só há sentido nas proposições que podem ser verificadas empiricamente, que vem da experiência sensível. Com isso, Teologia, Metafísica, Ética e Moral são relegadas ao nível do sentimento e se tornam irracionais, portanto, não podem ser ciência.
O Círculo queria: 1) uma ciência unificada, abrangendo os conhecimentos da Física e demais ciências naturais; 2) que o método para esse fim fosse a análise lógica; 3) que o resultado disso fosse a clarificação dos conceitos da Matemática e a eliminação da Metafísica; diz Zilles (Teoria do Conhecimento, 2006, p. 210).
Caso isso seja verdade, só é possível investigar proposições empiricamente verificáveis como, por exemplo: "água e óleo não se misturam." Esta é uma afirmação empírica, porque é verificável. Já dizer: "Deus existe" é uma proposição sem sentido, porque não pode ser verificada empiricamente. Logo, a Metafísica perde o sentido.
Para Zilles, Schlick também reformulou a teoria Kantiana dos juízos, afirmando que só há juízos analíticos (os juízos da Matemática e da Lógica), e os sintéticos a posteriori. Destarte, afirmar que "João estava vivo quinze minutos antes de morrer" é uma tautologia, isto é, um conhecimento evidente que não acrescenta nada ao saber, por ser óbvio. Para Schlick, isso é o mesmo que afirma a Matemática, ao dizer:" 7 + 5 = 12".
Por outro lado, há os juízos sintéticos a posteriori que provêm da experiência empírica, por exemplo: "esta rosa é vermelha". Alguém só pode dizer isso depois que viu a rosa. Para Schlick, todo o conhecimento ou é lógico ou é empírico. Por conseguinte, à Filosofia caberia apenas fundamentar as ciências empíricas por meio da Lógica. De tais discussões surgiram importantes temas de Filosofia da Linguagem, como as linguagens artificiais, hoje empregadas nos computadores e na robótica, e os estudos de relação entre semântica e sintaxe.
Enfim, a mente brilhante de Schlick foi eclipsada, quando em uma manhã, 22/06/36, o professor subia as escadarias da universidade de Viena e, ao topar com o infeliz e perturbado aluno, Johann Nelböck, este o surpreendeu com um tiro de pistola, acertando-o no peito e matando-o na hora.


quinta-feira, 4 de novembro de 2010

MAQUIAVEL E A POLÍTICA MODERNA

Gerson Nei Lemos Schulz




Nicolai Maquiavel (1469-1527) é considerado um divisor de águas na política mundial. Até a composição de "O Príncipe" a filosofia política era voltada ao dever ser e a política estava ligada ao idealismo, pois se acreditava que a moral mudaria a realidade egoísta do homem.
Em "O Príncipe" Maquiavel traz a política do mundo ideal para o mundo real. A constatação central de sua obra é que os políticos não estão interessados no bem comum do cidadão, o que realmente importa é o poder. O bem do cidadão vem com a consolidação do poder nas mãos do governante (o príncipe).


Maquiavel para o senso comum, é considerado um indivíduo perverso que dá dicas aos príncipes para enganarem o povo, invadir territórios, angariar riquezas e usar golpes para atingir o poder. Mas não é Maquiavel o primeiro a mencionar o "jogo político". Ao contrário do que se pensa, ele descreve o que os políticos florentinos já faziam. É injusto atribuir a Maquiavel a alcunha de malévolo, intriguista, usurpador. Seus escritos também preveniram o povo das manobras dos políticos, o fato é que o povo não leu Maquiavel.
Intrigas e perseguições vitimaram o próprio Maquiavel que sofreu exílio e esquecimento ainda vivo. O autor não ensinou a trair, roubar ou ser antiético. Ele fundou nova ética que não era idealista nem cristã, cuja visão antropológica parte da idéia de que o homem é egoísta. Para ele a ética não é aquilo que busca o belo e o bom, mas o que busca a "virtù". "Virtù" é um conjunto de qualidades que o governante deve ter para bem governar. Então, se um país está em guerra é necessário que o dirigente seja cruel para vencer o conflito, não importando o que faça para isso. Caso o Estado corra o risco de uma revolta, o governante deve massacrar os revoltosos, pois manter o poder é o que importa.

Veja também


No cap. XVII de "O Príncipe" Maquiavel discute se é preferível ao governante ser amado ou temido, ao que responde que é preferível ser temido, embora no cap. XIX afirme que o governante deve se esforçar para jamais ser odiado, pois isso o faria viver o tempo todo em clima de hostilidade contra tudo e todos, oprimido pelo temor da deposição. Então, como deve ser o governante na visão de Maquiavel?
É no cap. XVIII que ele afirma que o governante deve se comportar como a raposa e o leão, pois o leão sabe afugentar os lobos e a raposa evitar armadilhas. Por isso ", diz Maquiavel, [...] é bom ser e parecer piedoso, fiel, humano, íntegro e religioso; mas é preciso ter a capacidade de se converter aos atributos opostos, em caso de necessidade. [...] Precisa, portanto, ter a mente apta a se modificar conforme os ventos que sopram, seguindo as variações da sorte – evitando desviar-se do bem e se for possível, mas guardando a capacidade de praticar o mal, se forçado pela necessidade."
Enfim, o político ideal para Maquiavel é o das "aparências". Deve parecer cheio de qualidades, mas essas qualidades não devem ser seus princípios porque o princípio do político é mudar de lado (para o lado do poder) como muda o vento e, assim, manter-se no poder.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

A LÓGICA DE ARISTÓTELES

Gerson Nei Lemos Schulz



Quem já não ouviu a frase: "é lógico!" Ela está na linguagem cotidiana. Muitos a usam indiscriminadamente. Quando alguém diz isso quer mostrar a quem quer que seja que seu interlocutor está equivocado e não viu o óbvio. Mas você sabe de fato do que trata a lógica?

A lógica é uma ciência formal, isto é, trata-se de um saber que não está necessariamente preocupado com a verdade, mas sim com a validade de um raciocínio. A lógica é a ciência que abstrai, e por isso é instrumento para outras ciências como, por exemplo, a matemática.

Pode-se dividir a lógica em três grandes áreas, a lógica dialética, primeiro tipo que apareceu na Grécia antiga entre os filósofos pré-socráticos como Zenão de Eléia (495 a.C.), a lógica formal de Aristóteles (384 a.C.) e a lógica matemática ou simbólica que consolidou-se na Modernidade com Leibniz (1646-1716) sem a qual não seriam possíveis os computadores.

A lógica dialética envolve a discussão que entre os gregos era sempre realizada em espaços públicos a fim de que qualquer cidadão pudesse debater suas teses e confrontá-las com outras. Não é a toa que na Grécia surgiu a democracia, pois para alguém ser levado a sério quanto ao que pensava, suas idéias deviam ser amplamente discutidas à exaustão sendo que aquela tese que não caísse em contradição ou no ridículo, geralmente perdurava por certo tempo como "verdadeira" até que aparecesse outra explicação melhor que a anterior, substituindo-a. Assim nasceu a filosofia, do confronto de teses (idéias). Mas Aristóteles não estava satisfeito com as várias "verdades" que advinham do debate que deveras era subjetivo sendo ganho, às vezes, no "grito". Por isso ele criou o silogismo. Este tipo de argumento não deixa dúvidas sobre sua objetividade, um exemplo: Todo homem é mortal. Sócrates é homem. Logo... Qual é a única conclusão possível que você pode extrair daí?

Aristóteles não aceitaria que o leitor dissesse "não sei". Para ele a conclusão é óbvia! Ou seja, o silogismo não pretende deixar dúvidas sobre o que infere ao contrário da dialética (discussão). E é a mente do homem que infere algo implícito nas premissas (as duas primeiras frases do silogismo), sendo a terceira frase chamada conclusão.

Nesse sentido Aristóteles dizia que o homem nasce com capacidades inatas (pré-disposição) para aprender, embora ele também diga que o intelecto se adequa aos objetos externos (às coisas). Então o silogismo é raciocínio puro, pois não leva em consideração a experiência externa à mente, apenas formaliza o juízo. A razão deve ver, julgar (analisar por meio do raciocínio) e agir tendo em vista o melhor para quem julga. Dominar o silogismo não é complicado embora alguns pareçam ridículos, o que não quer dizer que sejam falsos, pois a lógica formal não se preocupa com a realidade externa ao homem. Está errado o argumento que diz: "Toda estrela é quadrada. O Sol é uma estrela. Logo, o Sol é quadrado?" Do ponto de vista da realidade este argumento é incorreto, mas do ponto de vista lógico, não. Logo, é correto afirmar que o Sol é quadrado.

Assim, Aristóteles condenava a dialética acusando-a de não ser racional, pois debatedores geralmente usam sentimentos e emoções para convencer os outros. Enfim, depois das lições de Aristóteles, já deu tempo de você descobrir a conclusão do silogismo sobre Sócrates que perguntei acima?