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quinta-feira, 25 de agosto de 2016

A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO EXPERIMENTAL DE JEAN PIAGET


Gerson N. L. Schulz
Professor de Filosofia




Jean Piaget
No ensino da filosofia da educação, disciplina geralmente integrante dos currículos dos cursos de licenciatura no Brasil, estudam-se as mais diversas propostas filosóficas voltadas para a escola.
Desde a Grécia Antiga, por exemplo, com Sócrates, Platão e Aristóteles os pensadores já se preocuparam com a escola. Platão fundou a academia e Aristóteles o Liceu. Antes deles, outros pensadores como Pitágoras de Samos também já tinham fundado instituições que se responsabilizaram em transmitir o conhecimento (CAMBI, 1999).
Por todo o longo período da história ocidental, então, desde a Grécia até os séculos XIX e XX, o homem se preocupou com a formação das pessoas. Com a transmissão do saber técnico, moral, religioso, filosófico e científico.
Mas dentre as várias propostas pensadas para a escola que surgiram na história ocidental, a maioria delas era de cunho especulativo. Em outras palavras, os filósofos, ao longo do exercício de reproduzir a cultura tradicional e na busca por novas formas de pensamento a partir dessa cultura, prescreveram como deveria ser a política, a ética, a sociedade e também a escola, especialmente acreditando que por meio dela (da escola) uma parcela importante da consciência dos adultos seria moldada e, assim, os valores culturais tradicionais se perpetuariam.
Apesar disso, a partir do século XIX, com a cada vez mais acentuada separação entre os diferentes ramos das ciências e a polarização entre ciências aplicadas ou técnicas (matemática, física, astronomia, engenharias diversas e etc.) e as emergentes ciências humanas (filosofia, sociologia, psicologia e etc), e seguindo o modelo positivista de "fazer" ciência, que apostava na possibilidade de se chegar à verdade por meio de um rigoroso método científico, da exatidão matemática, do experimentalismo em laboratório e do estabelecimento de leis (portanto, com validade universal), pouco a pouco a escola também foi levada a se "cientificizar".
Assim, as pessoas que viviam ao final do século XIX e início do século XX perceberam que aquele momento histórico possuía uma característica diferente da de outros séculos. Ocorria ali um progresso técnico-científico nunca antes visto. O homem produzia aparelhos elétricos que mudavam rapidamente as relações entre as pessoas e o meio social. A indústria usava cada vez mais o emprego das máquinas, da energia elétrica. Motores, bombas de pressão, combustíveis eram cada vez mais utilizados para substituir a força humana bruta. A lâmpada elétrica, o telefone e o rádio mudaram para sempre a forma de a humanidade ver o mundo. Esse tipo de sociedade mais dinâmica, com capacidade de produzir mais mercadorias e com mais possibilidade de conforto do que no passado, precisava de uma nova escola. Além disso, ainda antes dos anos 1930, a humanidade passou pela maior de todas as suas guerras, a Primeira Guerra Mundial, ocasião em que a Europa apesar de toda sua cultura e riqueza se aniquilou.
Desde o século XIX não era mais suficiente a escola e a universidade produzirem pessoas que sabiam apenas operar as novas máquinas desenvolvidas e amplamente empregadas nos países mais ricos como Inglaterra, Estados Unidos, Alemanha, Bélgica e outros. Era necessário também qualificar os operários, e criar as condições necessárias para que os novos engenheiros, cientistas, estudiosos (das mais diversas áreas do saber) pudessem exercitar livremente sua criatividade, realizar seus experimentos, demonstrar suas teorias e produzir novas tecnologias que, se acreditava, produziria mais riquezas.

Cena de "Tempos Modernos"

Esse novo horizonte social muito ligado à indústria, à produção, à rapidez e dinamicidade da circulação de mercadorias, necessitava de uma nova forma de escola. Cada vez mais aquele modelo de escola tradicional da Europa, comandada pela igreja Católica ou Protestante, com forte cunho humanista e cristão, que se preocupava com o ensino das letras clássicas e da filosofia, bem como com a transmissão de conhecimento capaz de formar o caráter das pessoas que por ela passassem, se tornava obsoleta.
Em meio à cultura da investigação científica sobre todos os assuntos e ao progresso da medicina, muitos estudiosos se deram conta que pouco se sabia sobre como o cérebro humano funcionava. Como ele era capaz de assimilar informações, de aprender?
Especialmente com os avanços da biologia e da psicologia experimental, alguns cientistas como Jean Piaget (que iniciou sua carreira na área da filosofia mas se tornou um biólogo; PIAGET, 1975), perceberam que a educação havia optado pelo caminho do "dever-ser" e pouco se sabia como, de fato, funcionava a mente humana. O problema era que a escola e o que ela ensinava parecia estar "desconectado" da realidade com a qual as pessoas tomariam contato fora da sala de aula na vida adulta.
A escola, assim, era prescritiva no sentido de postular às crianças como elas deveriam se comportar em sociedade contando que essa sociedade na qual elas cresceriam era ética, justa, praticamente perfeita. As noções prescritivas de escola trabalhavam sob a perspectiva humanista e, logo, com essa visão de sociedade idealizada. Mas na prática esse modelo sob o qual a escola preparava as crianças não existia no mundo real. Além disso, a escola, associada ao Estado, à política, à moral, à igreja se preocupava em "amoldar" o futuro cidadão sob a égide da religião judaico-cristã e da cultura greco-romana. Autores como Piaget perceberam que aquele modelo de escola deixava um espaço mínimo ou quase nenhum para o exercício da criatividade.
Outro fator importante sobre a escola tradicional era que, naquele momento (se fosse voltada para as pessoas pobres), ensinava conhecimentos profissionalizantes e as primeiras letras, além de contar. Caso fosse voltada para os mais ricos, ensinava conhecimentos clássicos (filosóficos, do âmbito do Direito, da Economia e outros). Logo, além da distinção entre as pessoas pelo quesito renda pessoal e origem social, a escola não respondia satisfatoriamente àquela sociedade em cujo seio o capitalismo necessitava, a cada novo dia, de um tipo de cidadão mais eficaz, eficiente, criativo, capaz de resolver problemas práticos, para executar toda a complexidade das tarefas burocráticas do Estado, da política, da administração mais racional e das atividades militares e industriais.
Em 1932 é que, pouco a pouco, desponta a figura de Piaget com sua obra "O juízo moral na criança". Não menos importantes são: "A gênese do número na criança" (1941), a "Representação do espaço na criança" (1948), "Introdução à epistemologia genética" (1950), "O estruturalismo" (1968) e "As ciências humanas" (1970).
Piaget inicia seus estudos em busca de uma teoria de como o homem é capaz de pensar. Quais as estruturas cerebrais são responsáveis por esse fenômeno, como o homem pode aprender as coisas? É por isso que ele foi o teórico da "epistemologia genética" "que é um ramo da psicologia que estuda as estruturas lógicas da mente humana e os processos cognitivos pelos quais elas amadurecem" (CAMBI, 1999, p. 609).
Para Piaget, na obra "Sabedoria e Ilusões da Filosofia" (1975), o conhecimento se baseia na experiência dos indivíduos. Por isso Cambi (1999, p. 610) afirma que ele dá um caráter mais técnico à pedagogia, separando-a da psicologia. Piaget se preocupa com a didática, com a aplicação das novas tecnologias à educação e com a cientificização da pesquisa educativa (Id. p, 609).



Dentre suas descobertas está a de que a mente da criança se caracteriza por uma inteligência que parte do comportamento animista e subjetivista e que, gradativamente, se adapta à objetividade e ao uso formal dos conceitos lógicos (CAMBI, 1999). A partir de suas pesquisas, Piaget descobriu que o ser humano em geral, em seu desenvolvimento, passa por quatro grandes estágios. O primeiro deles se dá nos domínios da motricidade; o segundo, na atividade representativa e o terceiro e o quarto no pensamento operatório.
Embora, nos dois últimos estágios o desenvolvimento cognitivo transcorra no âmbito do pensamento operatório, a diferença entre eles é constatada pelo fato de que no terceiro, o pensamento operatório ainda está ligado ao concreto, enquanto que no quarto, o mesmo pensamento tem ligação ao abstrato e formal. Os quatro estágios foram denominados de sensório-motor, pré-operatório, operatório concreto e operatório formal.
Segundo Piaget a inteligência dá saltos – muda de qualidade – e cada estágio representa uma qualidade da inteligência. Os estágios significam ainda que existe uma sequência e uma sucessão no desenvolvimento da inteligência e que esse desenvolvimento passa, necessariamente, por cada um desses estágios.
Piaget descobre que as crianças (do zero aos três anos) passam pela fase "sensório-motora" que é caracterizada pelo pensamento egocêntrico e pela indistinção entre seu corpo e os objetos. Dos dois aos sete anos de idade a criança vive a fase "intuitiva". Para ele, a criança desenvolve algumas habilidades como o domínio da linguagem e do desenho. No estágio dos sete aos onze anos (chamada de "operatório-concreta"), a criança aprende a pensar logicamente, distingue entre si e o mundo, aprende a reconhecer as regras. E, por fim, há a fase "hipotético-dedutiva" (dos onze aos catorze anos) que é crucial porque é nela que a criança começa a lidar com as abstrações e raciocinar acerca do futuro, categorizar os objetos e ser capaz de elaborar hipóteses e de proceder por via dedutiva. É aí que o pensamento se torna adulto (PIAGET, 1999).
Também, na concepção piagetiana, a construção do conhecimento se dá devido à interação do sujeito com o meio físico e social. A essa teoria deu-se o nome de "Construtivismo". No Construtivismo o que mais importa não é que o aluno repita frases e fórmulas prontas para reproduzi-las, como era na escola tradicional. Importa é que ele, diante do conhecimento formal – que Piaget chama de "tradicional" – reinvente esse saber, almejando produzir e criar coisas novas. Foi essa dinâmica, segundo Piaget, que permitiu o desenvolvimento, ao longo dos séculos, da ciência. Por isso, para ele, a escola tem como dever fazer a ciência avançar por meio da pesquisa (PIAGET, 1988).


Com base em tais ideias, Piaget e seus discípulos como Montessori (1870-1952) e Claparède (1873-1940), elaboraram uma proposta filosófica no campo da educação em que o ensino deve respeitar as etapas do desenvolvimento da criança porque isso faria com que elas obtivessem melhores resultados em seu processo de aprendizagem. Mas a novidade piagetiana não se deu apenas no campo da teoria pura. A novidade está no fato de que ele teorizou exatamente como faz o cientista das áreas duras, ele investigou a partir do campo empírico (o que de fato se passava com as crianças desde sua mais tenra infância) e fez isso com o uso de um laboratório, portanto, da experimentação para, daí, estabelecer, a partir de seus experimentos, as leis universais que regem a construção do pensamento.
É daí que ele pretende garantir que suas conclusões – expostas em livros ou artigos – são, de fato, verossímeis, pois que não partem da simples especulação (como partiam todas as filosofias da educação anteriores), partem da experiência, do estabelecimento de hipóteses, de sua comprovação ou não e, se comprovadas, da formulação de leis universais.



Por conseguinte, para Piaget, mais importante que o intelectualismo é a atividade experimental porque é por meio dela que se pode investigar a verdade e chegar à universalidade, modus operandi que se configura exatamente dentro da prática das ciências formais.
Para encerrar, Piaget chama essa proposta de "escola ativa" porque, ao contrário da "escola passiva" (que é como ele se refere à escola tradicional), sua metodologia serviria para toda a vida da criança e não apenas para essa criança "passar" com sucesso pelo sistema escolar. Em síntese, o ensino de qualquer assunto deve ir do experimental ao conceito e jamais vice-versa. Em última instância, a escola deve não só ensinar a ciência a todas às pessoas, o método, mas também respeitar as fases biológicas pelas quais passa qualquer ser humano a caminho do que há, para Piaget, de mais alto na escala evolutiva da humanidade, o desenvolvimento da racionalidade.

Referências:


CAMBI, Franco. História da Pedagogia. São Paulo: Unesp, 1999.

PIAGET, Jean. Para onde vai a educação? Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 1988.

______. Seis Estudos de Psicologia. 24. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999.


______. Sagesse et illusions de la philosophie. Paris: Presses Universitaires de France, 1969. Sabedoria e ilusões da filosofia. Traduzido por Zilda Abujamra Daeir. Coleção Os Pensadores. v. LI. São Paulo: Abril, 1975.

5 comentários :

  1. Parabéns, professor Gerson. O senhor conseguiu fazer algo muito difícil, sintetizar em um único texto o contexto histórico e a obra teórica de Piaget. Texto excelente! Marco Aurélio

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  2. Olá, parabéns pelo espaço criado aqui para divulgar a filosofia e a ciência. Gostei muito de seu texto. Vou compartilhar. Fiquei pensando sobre o Piaget, será que a única possibilidade da área de humanas ser reconhecida como ciência é o experimentalismo? Obrigado.

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  3. Ao anônimo de 30/08.

    Agradeço seu comentário e sua pergunta. Eu sou da opinião que, primeiro, é preciso saber se as "humanidades" seguem (ou deveriam seguir) o mesmo modelo de ciência que se tem a partir da modernidade. Isto posto, se seus estudiosos a definissem - consensualmente - como um tipo de saber que está dentro do mesmo modelo das ciências modernas, restaria às humanidades se tornarem experimentais para "merecer" o título de ciência. E, nesse caso, eu citaria vários outros além de Piaget, mas para não nos alongarmos, mereceria destaque também J. Dewey. Caso os estudiosos não conseguissem se decidir (o que tem ocorrido até agora) se às humanidades é ou não possível se "enquadrarem" no modelo moderno de ciência (e a discussão de hoje nos leva a crer que elas se enquadram mais naquilo que diz Boaventura de Sousa Santos: que as humanidades são ciências pós-modernas), o experimentalismo ficaria em outro plano. De acordo com Santos, na ciência pós-moderna é possível a convivência de leis da física com conhecimentos do senso-comum. Um tipo de conhecimento, para ele, não exclui o outro. Conviveriam os conhecimentos clássicos com os conhecimentos empíricos. Aí, ouso dizer, a filosofia teria chance de ser "ciência", uma vez que ela se produz na abstração e na subjetividade de um autor que interpreta o mundo. Veja, a discussão é longa, mas - desse modo - seria possível que algo que não possui leis como as da física, da química (ou de outras ciências 'duras') também se chame 'ciência' (porque é conhecimento). Mas isso não elimina a pergunta: teria a mesma validade um conhecimento empírico e não aprofundado que as experiências de laboratório da física, da química, da astrofísica? O debate permanece!

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  4. Boa noite. O velho Piaget... parabens. A proposito, eu li Boaventura. Pra mim ele so quer vender livro. Dizer que horóscopo e física nuclear podem se complementam!!! Não tenho identidade virtual, me chamo Bianca M. Bitencourt.

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