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segunda-feira, 9 de março de 2015

ANÁLISE FILOSÓFICA DO FILME: "TROPA DE ELITE 2"



Gerson Nei Lemos Schulz
Professor de Filosofia
na Rede Pública Federal do Brasil

"Este artigo contem spoilers"



Ator Wagner Moura
(Tenente-coronel Nascimento)
Zazem Produções e Globo Filmes, 2010.
"Tropa de Elite 2", produção brasileira de 2010 da "Zazem Produções" e da "Globo Filmes", dirigido por José Padilha, com Wagner Moura (Tenente-coronel Nascimento), André Ramiro (Capitão Matias), Milhem Cortaz (Tenente-coronel Fábio), Irandhir Santos (Deputado Fraga), Seu Jorge (presidiário Beirada), Sandro Rocha (o miliciano Major Rocha), André Mattos (Deputado Fortunato) e Tainá Müller (repórter Clara) além de outros personagens, é um filme que mostra as atividades de um tipo de braço armado (ou paramilitar) conhecida nos morros cariocas como "milícias".


O filme argumenta que a origem de parte da violência é a corrupção instalada não só no dia a dia das pessoas, mas nas esferas do Estado onde a força policial é dividida entre os policiais honestos e os corruptos – estes últimos a serviço ou associados da classe política corrupta – tanto no Executivo quanto no Legislativo. O filme de Padilha mostra a cultura da promiscuidade político-partidária quando aponta que vários são os políticos que se beneficiam do dinheiro das drogas e oriundo de outros serviços controlados pela milícia na periferia carioca como a venda de sinais de internet e TV a cabo piratas, distribuição de gás, água e outras mercadorias dentro das favelas com ágio ou impostos – inexistentes legalmente – que financiam as atividades da milícia. Também são cobradas (como faz há anos a Máfia italiana) mensalidades por "proteção" aos comerciantes.


A "milícia" é formada basicamente por policiais da ativa que, descontentes com seus salários e com as condições de trabalho (armas defasadas, viaturas decadentes e sobrecarga de trabalho), usam seu poder de "braço armado" do Estado (porque são agentes legalmente autorizados a usar sua arma e tem o poder de polícia) para praticar crimes contra o cidadão.



O ator Sandro Rocha
(Major Rocha), miliciano.
Porém, essa "milícia" mostrada no filme de Padilha tem um "modus operandi" bem diferente das quadrilhas clássicas de traficantes mostradas no primeiro filme. A "milícia" – como se comenta no "Programa Alerj Debate", exibido em 12/4/12 com a participação do Deputado carioca Marcelo Freixo, o ator Wagner Moura e o cineasta José Padilha: "em dez anos, conseguiu algo que os traficantes não conseguiram, conquistar o poder político. A milícia hoje financia políticos a cargos de vereadores e deputados estaduais ou federais."


"Tropa" mostra mais, explicita o círculo vicioso da relação entre a miséria, a esperteza (onde desde o pobre que quer assistir TV a cabo por um preço muito mais baixo, ao policial que quer ganhar dinheiro por fora, ao político que quer se perpetuar no poder ou ascender de cargo) e a dinâmica da prática da conivência de uns grupos com os outros por interesses comuns. Essa é a lógica onde todos querem sair na vantagem, perdendo-se, assim, os valores da ética tradicional. A violência e a política se unem onde a violência (não só simbólica, mas física mesmo) é praticada cotidianamente e vai se banalizando.


A política e os políticos fracassam (ou é proposital?) quando agentes do Estado não se responsabilizam pela execução eficiente das políticas públicas cujo dinheiro do Governo Federal na maioria das vezes é enviado, porém, em parte é desviado pelos caminhos da burocracia no pagamento de propinas ou nos superfaturamentos em estados ou prefeituras.



Outra perspectiva mostrada no filme aponta que a "grande corrupção" nasce da "pequena corrupção", pois quando alguém que mora na favela compra o sinal de internet ou da TV a cabo pirata e paga pelo "serviço" aos milicianos que o vendem está financiando diretamente a compra de armas necessária para os criminosos para exercer suas atividades que são, na própria dinâmica dessas organizações, violentas e que acarretam a eliminação de pessoas que são contra essas atividades ou nas trocas de tiros com as forças armadas oficiais. O resultado são assassinatos, sequestros, estupros, exploração de toda ordem das pessoas com menor poder aquisitivo, porém são essas mesmas pessoas exploradas que mantêm o sistema do crime na mesma lógica do consumidor de drogas que, ao comprar do traficante, sustenta o tráfico.


A "grande corrupção" se alimenta da "pequena corrupção" e vice-versa quando o Estado paga mal seus policiais, quando alguns cidadãos compactuam (por 'n' motivos) com o tráfico ou com a milícia e obstruem a justiça ao hostilizar policiais ainda sérios que querem investigar tais crimes praticados pelos milicianos. Nas favelas cariocas – mostra o filme – o crime compensa, sim. O crime alimenta o tráfico de armas, a violência, as mortes de inocentes. Há lá uma justiça paralela que julga, cria penas (inclusive a de morte) e as executa a margem da Lei oficial e, por enquanto, livremente com a pouca eficácia das Unidades de Polícia Pacificadora – UPPs, que não conseguiram acabar com o tráfico ou atividades de milicianos.


Assim como no primeiro filme também não é esquecida a "pequena corrupção" praticada, como dito acima, pelo cidadão consumidor de drogas que financia o tráfico e nem o tema do tráfico de armas, movimento que se inicia nas fronteiras do Brasil com países como Paraguay, Bolívia, Peru, Colômbia e Venezuela.

O Cantor "Seu Jorge" (Beirada) e
Irandhir Santos (Deputado Fraga)

Padilha mostra também os resultados da corrupção praticada pelo cidadão eleitor que vende seu voto para pessoas que sabe que são criminosas. Mas o filme não aponta apenas (maniqueisticamente) o bom e o mau. Mostra também o oportunismo de arautos que usam causas sociais em benefício político próprio (como a causa dos "direitos humanos") defendida pelo personagem "Fraga" que se elege deputado em nome dessa causa apesar de – no exercício do mandato – ter tido papel importante no combate à corrupção, mas que apesar disso, consegue uma cadeira (na ficção) na Câmara Federal dos Deputados.


André Mattos (Deputado Fortunato),
chefe das milícias cariocas.
Ao término do filme há aquela sensação de impotência frente a uma realidade distorcida pela corrupção. E essa corrupção é cotidiana, ocorre nas menores coisas como na venda de votos (será que quem vende seu voto se pergunta de onde vem o dinheiro do pagamento?). – Pode ser o dinheiro que compraria a merenda para escola de seu filho; do curativo do posto de saúde da comunidade ou não?


Para concluir, várias são as perguntas que se pode induzir nas entrelinhas dos diálogos do filme como: "Por que os corruptos são eleitos?" "Por que as pessoas toleram a corrupção no Brasil?" "Quais são as causas mais diretas da corrupção?" "Essa estrutura de poder que se instaurou – e que perpassa toda a sociedade brasileira – deve ser mantida, é a mais saudável?" A corrupção não é um mau brasileiro, apenas; é mundial e existe há séculos, porém aqui parece ser sábia a definição de Thomas Hobbes quando ele diz, na obra "Leviatã" que: "o homem é o lobo do homem". Ao aplicar essa máxima à forma como a realidade é mostrada no filme "Tropa de Elite", pode-se facilmente perceber que, em uma sociedade em que todos querem se "dar bem" a qualquer custo, não levará muito tempo para que todos estejam contra todos!


Com "Tropa 2" é difícil sair do cinema sem a crença de que o que está expresso na letra do "Rap das Armas", de "Cidinho" e "Doca", seja verdadeiro, por enquanto...!
Parapapapapapapapapa
Paparapaparapapara clack bum
Parapapapapapapapapa
Morro do Dendê é ruim de invadir
Nois, com os Alemão, vamo se divertir
Porque no Dendê eu vô dizer como é que é
Lá não tem mole nem pra DRE
Pra subir aqui no morro até a BOPE treme
Não tem mole pro exército, civil nem pra PM
Eu dou o maior conceito para os amigos meus
Mas Morro Do Dendê também é terra de Deus
Fé em Deus, DJ
Vamo lá
[...] Vem um de AR-15 e outro de 12 na mão
Vem mais dois de pistola e outro com 2-oitão
Um vai de URU na frente, escoltando o camburão
Tem mais dois na retaguarda, mas tão de Glock na mão
Amigos que eu não esqueço, nem deixo pra depois
Lá vem dois irmãozinhos de 762
Dando tiro pro alto só pra fazer teste
De INA-Ingratek, Pisto-UZI ou de Winchester
É que eles são bandido ruim, e ninguém trabalha
De AK-47 e na outra mão a metralha
Esse rap é maneiro, eu digo pra vocês
Quem é aqueles cara de M-16
A vizinhança dessa massa já diz que não aguenta
Nas entradas da favela já tem .50
E se tu toma um pá, será que você grita
Seja de .50 ou então de .30
Mas se for Alemão eu não deixo pra amanhã
Acabo com o safado dou-lhe um tiro de Pazã
Porque esses Alemão são tudo safado
Vem de garrucha velha dá dois tiro e sai voado
E se não for de revolver eu quebro na porrada
E finalizo o rap detonando de granada
Parapapapapapapapapa, valeu
Paparapaparapapara clack bum [...]

REFERÊNCIAS

ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – ALERJ. ALERJ DEBATE. Com: Marcelo Freixo, o ator Wagner Moura e o cineasta José Padilha. ALERJ: Rio de Janeiro, 12/4/12. Disponível em:< https://www.youtube.com/watch?v=YEyyiwmqJw8>. Acessado em: 09/03/2015, 5:00:00.

MC Júnior; MC Leonardo. Rap das Armas. Formato(s) Airplay. Gênero Funk Carioca. Rio de Janeiro: Columbia (gravadora), 1995.

HOBBES, Thomas. Leviatã – ou Matéria, Forma e Poder De Uma República Eclesiástica e Civil. São Paulo: Martin Claret, 2001.


quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

ESCOLA "LIVRE" FRIEDRICH NIETZSCHE





GERSON NEI LEMOS SCHULZ

FILÓSOFO

PROFESSOR DA REDE PÚBLICA
FEDERAL DO BRASIL

Texto publicado originalmente em:

COLEÇÃO GUIAS DE FILOSOFIA:
NIETZSCHE. ESCALA: 
SÃO PAULO, 2011, p. 22-30. V. III.


Como seria uma escola baseada
no modelo didático-pedagógico da
filosofia de Friedrich Nietzsche?


A Escola



Imagine uma escola que não fosse nem privada e nem pertencesse ao Estado. Uma escola que não reproduzisse o conhecimento preocupada com o mercado de trabalho ou com as coisas práticas do mundo. Uma escola que se preocupasse em formar um modelo de homem, qual? Fazer desabrochar nas pessoas aquilo que elas são, trazer a tona suas propensões naturais (seus dons). Imagine uma escola em que se ensinasse grego e latim, se ensinasse a cultura aos moldes da Grécia pré-socrática. Um lugar em que se fomentasse nas crianças e adolescentes um espírito de criação do indivíduo no sentido de buscar aquilo que cada um tem dentro de si enquanto ser humano tendo, para isso, acesso às bases originais da cultura Ocidental para, a partir delas, perguntar-se: "Como cheguei a ser o que sou?" "Por que estou neste mundo?" "Qual papel me cabe na sociedade em que vivo?" "Qual minha responsabilidade frente ao meu país?"

Uma escola em que não se valorize o individualismo meramente consumista de hoje em dia do ser igual ao ter (como diz Fromm em Ter ou Ser?), mas onde os jovens fossem levados a se perceber enquanto seres que são responsáveis pela construção do mundo a sua volta a partir da análise e da percepção das contradições da cultura (Bildung) na qual estão imersos desde que nasceram. Em que as frases motivadoras às crianças de jovens fossem: "Não há nenhum Deus para salvar você". "Deixar os outros pensarem por você é covardia". "O único responsável por você é você mesmo". "Inevitavelmente você morrerá, mas e aí... o que fará com a vida enquanto a tem?" Assim, provavelmente, seria a escola fundada por Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900).


O Professor


Janz (1987, p. 199) nos diz que por meio dos relatos de alguns ex-alunos Nietzsche costumava dar aulas ouvindo atentamente cada um de seus alunos. Ele também relata que Nietzsche não era um professor que impunha suas idéias aos alunos, mas procurava fazer nascer neles o interesse pelo assunto tratado, desenvolver o respeito pelas grandes figuras do passado, pelos grandes problemas da existência humana e pela seriedade no pensar.


Neukamp (2008, p. 48 et seq.) descreve o professor Nietzsche, citando relatos de Ludwig W. Kelterborn onde afirma que os alunos, de forma geral, "achavam o jovem professor amável e educado em todas as ocasiões, alguém que quando lançava uma pergunta aos alunos fazia questão que estes respondessem de acordo com aquilo que pensavam e jamais com informações memorizadas em livros". Quer dizer, por aí se tem uma pista do que Nietzsche pensava que deveria ser o papel do professor, valorizar a autonomia dos alunos, que não deve ser confundida com liberdade, pois o mesmo Neukamp (Idid, p. 50) alerta que ele exigia disciplina, e no programa que propôs às autoridades prussianas no século XIX estavam entre as leituras obrigatórias 1) A obra de Homero; 2) Três obras dos poetas trágicos; 3) Fragmentos escolhidos de Platão; 4) Tucídides; 5) Heródoto e Xenofonte; 6) Discurso de Lísias ou Demóstenes. Isso sugere o currículo das aulas de Filosofia, ao menos proposto por Nietzsche.


Cada Estudante deve Eleger seu Modelo de Homem


Nietzsche exigia do filósofo coerência entre vida e obras, e para ele os jovens deveriam escolher um mestre para servir de inspiração pessoal na vida dentre os vultos da história. Nessa época um exemplo de gênio – para Nietzsche – era Arthur Schopenhauer (1788-1860). De acordo com Danelon (2003), Nietzsche via em Schopenhauer o modelo de homem e de gênio porque foi o único a renegar o Ocidente com seu pessimismo em O Mundo como Vontade e Representação de 1819, servindo de exemplo para toda a humanidade que deveria elevar-se acima da cultura Ocidental (para Nietzsche contaminada pelo utilitarismo capitalista que transformava tudo em dinheiro – como queria o Positivismo de Comte, 1798/1857).


Schopenhauer
Por isso Nietzsche se encanta com Schopenhauer quando toma em mãos sua obra que despertou nele uma profunda admiração pelas idéias contrárias aos modismos culturais da época que Nietzsche chamava de "cultura filistéia". A cultura filistéia, citada por Marton (1983), foi descrita por Nietzsche numa carta a Carl von Gesdorff na noite de 11 de abril de 1869, onde, em síntese, ele diz que está indo trabalhar na "instituição universitária", descrita por ele como um ambiente pesado, cheio de obrigações e onde é vendido o conhecimento, o que o transformará – conclui entristecido – num 'filisteu da cultura', isto é, num homem especializado. Para Scarlet Marton os filisteus da cultura são:

[...] aqueles que, estritos cumpridores das leis e dedicados executores dos deveres, execravam a liberdade gozada pelos estudantes. O 'filisteu' era uma personagem de bom senso, inculta em questões de arte e crédula na ordem natural das coisas. Usava o mesmo raciocínio para abordar as riquezas mundanas e as riquezas culturais [...] Os filisteus da cultura além de não serem cultos, têm a ilusão de sê-lo. Incapazes de criar, limitam-se a imitar ou consumir. Fizeram da cultura algo venal, puseram-na à venda, submeteram-na às leis que regem as relações comerciais 'quem e quantos consomem' é a questão fundamental a ser respondida. (MARTON, 1983, p.32)

É por isso que no livro Ecce Homo Nietzsche declara que a sua tarefa enquanto filósofo é educar e derrubar ídolos: "Eu não construo novos ídolos, os velhos que aprendam o que significa ter pés de barro. Derrubar ídolos (minha palavra para 'ideais') – isto sim é meu ofício." (NIETZSCHE, 1995, § 2). Era isso também que ele desejava de seus alunos.


A Transvaloração da Cultura por meio da Educação


As idéias apresentadas em Sobre o Futuro de Nossos Estabelecimentos de Ensino (Sobre el Porvenir de Nuestras Escolas, 2000; que se trata de uma palestra onde Nietzsche narra uma longa conversa com um amigo, um filósofo e um acompanhante de 1872) é a metade do caminho para se compreender o Nietzsche filósofo e professor. Ali ele aprofunda o que entende por cultura e educação e o que entende por pensamento crítico.

Sua primeira idéia é que a o homem novo (Übermensch) é aquele que é capaz de violar de qualquer forma as crenças que se tornaram a tradição. A respeito da violação das crenças, diz Nietzsche:

– Essa 'malignidade' é reencontrada em todo professor do novo, em todo pregador de novas coisas, a mesma ‘malignidade’ que desacredita o conquistador, ainda que se manifeste mais sutilmente e não mobilize imediatamente o músculo – o que faz, por outro lado, que desacredite com menos força! O novo, de qualquer forma, é o mal, pois é o que quer conquistar, derrubar os limites, destruir as antigas crenças; só o velho é o bem! Os homens de bem de todos os tempos são aqueles que plantam profundamente velhas idéias a fim de fazê-las frutificar, esses são os cultivadores do espírito. Mas todo terreno acaba por se esgotar, é preciso que o arado do mal o revolva. (NIETZSCHE, 1976, p. 41)

Quem é o professor do novo? Para ele é o filósofo, mas não no sentido absoluto. Nietzsche quis dizer que todos os profissionais deveriam pensar como filósofos até se tornarem um, pois, de acordo com a teoria do gênio de Nietzsche, este não é predestinado a nascer filósofo. Portanto, a transformação da cultura deve começar por quem lida com ela, por professores e alunos. O estudante deve sempre buscar além daquilo que o professor expõe em sala de aula. Somente assim ele poderá percorrer o caminho para se superar a si e ao próprio professor, escapando da mediocridade. No sentido nietzschiano, as atividades corriqueiras realizadas sem reflexão, a cultura do senso-comum, a linguagem jornalística que apenas narra o fato sem crítica própria, a "fofoca".

Nietzsche supõe possível criar um novo projeto de homem realizando uma crítica à modernidade cartesiana que separou natureza e homem em res cogitans e res extensa privilegiando o mecanicismo. Para Nietzsche foi essa idéia de separação mecânica operada no homem (privilegiando as idéias inatas, portanto o intelecto) que fez os indivíduos renegarem outras faculdades humanas como sentimentos e instintos.

Resgatar as faculdades instintivas e sentimentais sem negar a razão é o projeto de Nietzsche. Por isso ele propõe a transvaloração dos valores da lógica platônica/aristotélica, da moral cristã (moral das massas que se deixam guiar louca e cegamente por um líder, o messias, na esperança de ganhar o mundo do além) e o rompimento epistemológico com a ciência de sua época (que para ele era a 'gaia ciência'). Logo, ele afirma que o Universo e os fatos – como queria o Positivismo – não têm sentido e, por isso mesmo, estão condicionados ao seu tempo e aos olhos de quem os lê, e não à eternidade, não sendo verdades absolutas.

Nietzsche também propõe transvalorar a organização sócio-cultural e política de seu tempo, assim é possível afirmar que ele não concordava com o modo de produção industrial capitalista como afirma no aforismo 21 de A Gaia Ciência (1976). Nietzsche também não é a favor da democracia quando a considera uma decadência no sentido de que ela adula o Estado (Prussiano) que pensava em si e não na cultura. Também não era a favor do autoritarismo, visto que detestava as políticas de massa porque, para ele, elas diluem o indivíduo. Também não se fez simpático ao socialismo nem ao anarquismo, como se observa nos aforismos 34 e 473 das obras: Crepúsculo dos Ídolos (1999) e Humano, demasiado humano (2005), respectivamente.

Por fim, não se pode afirmar que ele fosse um liberal quando ressalta que

[...] a mais forte espécie de homem que houve até agora, as comunidades aristocráticas ao modo de Roma e Veneza, entendiam liberdade exatamente no sentido que eu entendo a palavra liberdade: como algo que se tem e não se tem, que se quer, e que se conquista [...]'.(NIETZSCHE, 1974, p. 349).

Assim se constata que Nietzsche apoiava um governo de aristocratas (o governo dos melhores), mas um governo formado por homens "geniais" (que se destacassem por sua inteligência) e não porque pertencessem à classe mais abastada. A dificuldade aí é saber quais seriam os critérios para se saber quem são os mais aptos!

Em relação à educação ele afirma:

[...] procede geralmente desta maneira: tentar determinar no indivíduo, com o engodo de inúmeras vantagens, maneira de pensar e agir que, tornada finalmente hábito, instinto, paixão, dominará nele e sobre ele, contra seus interesses supremos, mas em benefício de todos. Quantas vezes não observei que se o trabalho devotado, o zelo cego atribuem a riqueza, as honras fazem, por outro lado, com que os órgãos percam a sensibilidade que lhe permitiria fruir essa riqueza [...] Quantas vezes não constatei que esse remédio radical contra o aborrecimento e as paixões amolece os sentidos e torna o espírito rebelde a toda nova excitação (a mais laboriosa das épocas, a nossa, não sabe o que fazer de seu trabalho e de seu dinheiro, a não ser cada vez mais trabalho e mais dinheiro; [...] Adiante, deveremos ter 'netos'... A educação logra sucesso, qualquer virtude individual se torna utilidade pública e desvantagem privada tendo em vista o fim supremo do indivíduo; consegue apenas um enfraquecimento do espírito e dos sentidos [...],'Deves procurar teu proveito pessoal mesmo à custa dos demais', apregoam portanto com o mesmo fôlego, o 'tu deves' e o 'tu não deves'. (NIETZSCHE, 1976, p. 55-56)



A partir dessa citação, pode-se ter uma idéia do que Nietzsche pensa que deveria ser a educação. O oposto do que ele descreve. Isto é, uma forma de pensamento crítico (uma reflexão) sobre a cultura dada, ou seja, construída antes do indivíduo nascer e transmitida a ele pelas instituições civis ou religiosas. Inclui-se ai os maiores valores estabelecidos: "deus" e o "bem" que, para Nietzsche, foram construções humanas e não divinas. Logo, o modelo de educação apregoado pelo filósofo é humanista e deve permitir que o indivíduo libere seus instintos, suas habilidades, talentos (SCHULZ, 2007, p. 19).

Os fatos não devem ser ensinados ao aprendiz da forma como o Positivismo ensinava (tecnicista/mecânica/repetitiva), mas deve, isto sim, apresentar como e onde o indivíduo poderá utilizar aquele conhecimento adquirido em sua vida pública e privada.

Portanto, a educação, em última instância, deve ser estética, permitindo ao homem desenvolver a criatividade sobre o fato. Só assim poderá se revelar algum gênio e, então, para Nietzsche, o homem escapará do niilismo, do sem sentido e da mediocridade causados pela vida maquinal, automática que o modo de vida proposto pela Modernidade trouxe. Esta é sua idéia filosófica do dizer "não" para a cultura Ocidental.

[...] Em que medida, também entre nós, capacitar-se para ganhar dinheiro não se converteu em sinônimo de adquirir cultura? Em que medida o ensino profissionalizante e a especialização dos cursos superiores não se fazem em detrimento da formação humanística? Em que medida a massificação e o utilitarismo não se impõem à custa do aprimoramento individual? A estas questões nenhum educador pode furtar-se. Nietzsche combate, com veemência, a difusão inescrupulosa dos ditos bens culturais e os interesses imediatos que ela visa satisfazer. Longe, porém, de defender a cultura formal, que se limita a acumular dados e informações, opõe a erudição à vida, mas não nos deixemos enganar. Isso não revela traço algum de antiacademicismo, e sim a existência de um projeto: fazer dos estabelecimentos de ensino o lugar apropriado para a reflexão, o espírito crítico e a atividade criadora. É preciso, pois, devolver aos estabelecimentos de ensino a vocação que lhes é própria: 'fazer do homem um homem'. (DIAS, Sd., Prefácio)


Nietzsche assinala o equívoco em se pensar que cultura é trabalho árduo, apenas. Para ele a cultura é o aprendizado não utilitarista de tudo o que o ser humano realizou na história sem desvincular-se da vida real. A cultura não é uma erudição, mas um cabedal de conhecimentos vivos que deve ser ensinada de forma tal que os indivíduos possam criar coisas novas sobre as que aprendem. Nietzsche considera a produção da cultura industrializada moda meramente intelectualista, uma farsa. Assim, é tomando esse pressuposto que se pode explorar a possibilidade de construir hoje uma pedagogia crítica do dizer "não" aos modismos, aos intelectualismos, aos capitalistas da cultura e até mesmo às ideologias do Estado que defendem a idéia de que a educação é um serviço, portanto, uma mercadoria.

A partir daí pode-se pensar a idéia de que o verdadeiro estudante, tal qual o verdadeiro mestre, também pode ser autêntico dentro de sua escola sendo um crítico da própria cultura e auxiliando a podá-la de seus desvios utilitaristas patrocinados pelas classes econômicas dirigentes (aristocracia burguesa) que têm interesse em manter essa lógica de utilidade sobre tudo o que é produzido para transformá-la em mercadoria e gerar lucro.

Para Nietzsche o niilismo ante a vida levou boa parcela da humanidade a crer que a história acabou e nada mais pode ser mudado. A idéia de massificação ganha espaço e surge o conceito do padrão (todos devem ser iguais). Mas com isso aparece um "mal-estar" dentro do núcleo da civilização porque as coisas perdem o sentido (niilismo). Não há mais o que inventar, o que fazer. A vida fica autômata (SCHULZ, 2003, p. 137).


E como Nietzsche entende a cultura de seu tempo?

As águas da religião refluem e deixam para trás pântanos ou poças; as nações se separam outra vez com a maior das hostilidades e querem esquartejar-se. As ciências, praticadas sem nenhuma medida e no mais cego laissez faire, estilhaçam-se e dissolvem toda crença firme; as classes cultas e os Estados civilizados são varridos por uma economia monetária grandiosamente desdenhosa. Nunca o mundo foi mais mundo, nunca foi mais pobre em amor e bondade. As classes eruditas não são mais faróis ou asilos, em meio a toda essa intranqüilidade da mundanização; elas mesmas se tornam dia a dia mais intranqüilas, desprovidas de pensamento e de amor. Tudo está a serviço da barbárie que vem vindo, inclusive arte e a ciência de agora. O homem culto degenerou no pior inimigo da cultura, pois quer negar com mentiras a doença geral e é um empecilho para os médicos. (NIETZSCHE, 1974, trechos dos aforismos 4 e 6. p. 81-4)

É por isso que, para ele, a educação deve criticar permanentemente a cultura para que ela não se desvie de seu real papel, formar (Paidéia) o homem novo.


Conclusão


Por fim, diante da crise que Nietzsche percebe que existe na cultura ele concebe a idéia de que o filósofo não deve apenas ser professor, dever ser o "médico da civilização" (em "O livro do Filósofo, Sd). Para Nietzsche é o filósofo que tem o papel preponderante de alertar as demais categorias profissionais (eruditos, médicos, cientistas) para os perigos da extirpação do conhecimento e sua fragmentação em especializações. Para o filósofo alemão não é especializando o homem aos "pedaços" (fragmentos) que ele saberá o todo, como se o todo fosse desprovido de sua própria totalidade, mas unindo o homem com seus vínculos fortes (instinto e paixão) que ele poderá tornar-se filósofo e ter o verdadeiro amor à sabedoria. Transformando conhecimento em sabedoria, só assim se poderá criar uma "nova cultura" que seja a realização plena do indivíduo enquanto Homem.

Referências

DANELON, Márcio. Nietzsche Educador: Uma Leitura de "Schopenhauer como Educador". Unimep. http://www.marabrum.hpg.ig.com.br/artigo15.html, acessado em 15/05/2011.

DIAS, Rosa Maria. Nietzsche Educador. São Paulo: Editora Scipione, S.d.

FROMM, ERICH. Ter ou Ser? São Paulo: Editora LTC, 1987.

JANZ, Kurt Paul. Friedrich Nietzsche: Los diez años de Basileia. (1869-1879). Madrid: Alianca Editorial, 1987.

MARTON, Scarlet. Nietzsche. São Paulo: Brasiliense, 1983.

NEUKAMP, Elenilton. Nietzsche o professor. São Leopoldo: Editora Oikos, 2008.

NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. São Paulo: Hemus, 1976.

______. Humano, demasiado humano. São Paulo: Cia de Bolso, 2005.

_____. Sobre el Porvenir de Nuestras Escolas. Barcelona: Tusquets, 2000.

______. Crepúsculo dos Ídolos. 4. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999.
(Os pensadores)

______. Considerações Extemporâneas. In: Nietzsche. v. XXXII. 1. ed. São Paulo: Abril, 1974. (Os pensadores)

______. Ecce Homo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

______. O último filósofo. In: O livro do Filósofo. Porto: Rés, Sd.

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. São Paulo: Unesp, 2007.

SCHULZ, Gerson N. L. Nietzsche e a educação: uma perspectiva de transvaloração para a pós-modernidade. Pelotas: 2003. Dissertação de Mestrado (Educação)

______. Educação: ser, saber, fazer. Porto Alegre: Editora Alcance, 2007.

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

UM ÍCONE DO CONSERVADORISMO: O PENSAMENTO DO FILÓSOFO E POLÍTICO BRITÂNICO EDMUND BURKE





GERSON NEI LEMOS SCHULZ

Professor de
Filosofia na Rede
Pública Federal no Rio Grande do Sul

TEXTO PUBLICADO ORIGINALMENTE NA REVISTA CONHECIMENTO PRÁTICO
FILOSOFIA - EDIÇÃO N. 51. O título original era: Um Ícone do Conservadorismo. Ele foi alterado, arbitrariamente e sem o meu conhecimento, pelo editor da extinta revista, para Um gênio conservador... Nem de longe eu considero Burke um gênio.
EM:



Você é um conservador?


O Dicionário Brasileiro Globo da língua portuguesa afirma que conservador é o adjetivo que deriva do latim "conservatore" e que é aquilo que: "conserva; que ajuda a conservar; que se opõe a mudanças políticas; sm. Aquele que conserva [...]; aquele que, em política, é pela conservação da situação vigente, opondo-se a inovações que venham modificar a ordem social" (1992, p. 434).

Essa tradição vem desde o início dos Estados modernos, especialmente a partir dos escritos do filósofo Edmund Burke (1729-1797) que foi secretário do Primeiro-Ministro, e líder do partido Whig. O conservadorismo – enquanto filosofia política e corrente de pensamento filosófico – aparece no século XVIII na Inglaterra como uma reação específica à Revolução Francesa que espalhou grande instabilidade política na França e, após, se lavrou pela Europa, perturbando diversos regimes monárquicos cujos reis se preocuparam com o fim dado ao rei Luis XVI, decapitado na guilhotina. De acordo com o historiador gaúcho, Voltaire Schilling (2014), no dia 21 de janeiro de 1793, um dia de inverno, Luís XVI foi levado ao cadafalso para ser decapitado por Charles Henri Sanson, o carrasco oficial da república convencional francesa.

Decapitação do Rei
Luis XVI


A decapitação do rei, após um julgamento levado a cabo por seus opositores, mas não apenas simples opositores e sim, também pessoas de todas as classes sociais unidas por uma vontade comum – a luta contra o regime monárquico despótico, e cujo julgamento foi arquitetado no calor de uma revolução armada que lutava contra a tirania absolutista em toda a Europa – fez estremecer todos os reis do continente cujos conselheiros temiam que o movimento impulsionado pelo grito de liberdade, igualdade e fraternidade para todos, "contaminasse" também cidadãos de outras nações. Para Schilling, "a cabeça cortada e sangrada do rei, erguida na praça pública lotada, foi o aviso que a França revolucionária enviou aos soberanos do velho continente, junto com o grito 'Morte aos tiranos!'" (2014).

Outra possível vertente que incentivou posturas conservadoras na política, especialmente inglesa, foi o período do "Terror", imposto à França revolucionária pelos jacobinos, liderados por Maximilien François Marie Isidore de Robespierre (1758-1794) ou simplesmente Robespierre, advogado e deputado francês. Conforme diz Furet (1978) esse grupo era uma organização política criada no ano de 1789 na França durante o processo da Revolução. Os jacobinos inicialmente adotaram uma postura "moderada" no que diz respeito à Revolução, mas com o passar do tempo, Robespierre determinou posições muito mais radicais às diretrizes do grupo. A maioria das pessoas que compunha os jacobinos era de pequenos comerciantes, profissionais liberais e pessoas pertencentes às classes mais desfavorecidas econômica e politicamente, daí suas diretrizes pregarem premissas dirigidas para essas pessoas como, por exemplo, a eliminação da monarquia na França, a abolição da escravidão em todas as colônias francesas, a educação para todos, a garantia do uso da força bruta contra os opositores da revolução; o fim de todos os privilégios do clero e da nobreza, a ajuda econômica aos mais necessitados, o controle dos preços dos produtos de primeira necessidade. Medidas que agradavam ao povo em geral mais pobre, mas que, por outro lado, desagradava aos girondinos, liderados por Jacques Pierre Brissot (1754-1793) e que era formado por membros da alta burguesia francesa.

Os Girondinos eram um grupo político "moderado" durante a Revolução Francesa e seus integrantes faziam parte da classe que financiou boa parte da revolução, a burguesia antimonarquista. Eram chamados de Girondinos porque derivavam do partido político conhecido como Gironda. Os Girondinos compunham também o chamado "Terceiro Estado", juntamente com os Jacobinos e os Cordeliers.


Robespierre
Opositores ferrenhos dos Jacobinos os Girondinos defenderam, durante o processo da Revolução Francesa, a instalação de uma monarquia constitucional na França após a queda do absolutismo. Assim eram, logicamente, opostos ao radicalismo dos Jacobinos.

Mas os girondinos também usaram a violência para reagir às medidas radicais tomadas pelos Jacobinos durante a fase da "Convenção Nacional". Eles também promoveram perseguições políticas, conspirações e assassinatos de seus opositores. Em contraposição aos Jacobinos, os Girondinos – em termos econômicos e políticos – eram a favor da grande liberdade das atividades econômicas sem a intervenção governamental nessas atividades. Num segundo momento eles se tornaram defensores de um sistema republicano moderado, sendo também favoráveis à exclusão dos mais pobres das eleições por meio da implantação do voto censitário que era baseado na renda dos cidadãos franceses.

Foi entre 1792 e 1794 que os Jacobinos tomaram a frente do processo revolucionário na França. E este período se denomina "Terror" em função dos assassinatos de opositores políticos, principalmente de monarquistas e Girondinos. Robespierre, principal líder dos jacobinos, era defensor da violência como forma de garantir a continuidade da Revolução e um de seus principais objetivos era garantir a transformação da França em uma república baseada nos princípios da igualdade e da virtude com forte apelo social. Seu projeto, porém, não foi a cabo visto que em 1794 o próprio Robespierre foi preso por seus inimigos e executado na guilhotina.

A Queda da Bastilha
Além dessa "revolução marcante", especificamente Edmund Burke, também viveu em um mundo que passava por outras revoltas. Ele teve a oportunidade de vivenciar indiretamente quatro revoluções – a Americana (que levou a formação dos Estados Unidos da América em 1776), a revolta dos Bengalis (na Índia), as revoltas dos católicos irlandeses e a Revolução Francesa. Além disso, em seu próprio território, Burke (que era líder dos Whigs, o grupo que, na ocasião, era considerado 'pró-esquerda' por ser progressista e contrário a intervenção do Rei na Política) enfrentava os Tories.

Mas o que seria um conservador? E se Burke era partícipe de um grupo considerado progressista, o que o leva a ser conhecido como autor conservador e de "direita"?

Em filosofia política o conservadorismo, de forma geral, aposta nas diretrizes opostas as dos Jacobinos em termos políticos e sociais. Assim, para Abbagnano (2007), para um conservador, a sociedade e suas instituições são o resultado de um processo de crescimento cumulativo ao longo do tempo onde a ordem social vigente é mero produto dessa interação entre as instituições, os costumes, os hábitos, a Lei e as forças sociais impessoais que regem os períodos sociais. Dessa forma, não se pode tolerar uma revolução que, para os conservadores como Burke, se trata de um momento de rompimento com as estruturas já estabelecidas e "maduras" de determinada sociedade que não são ações arbitrárias, mas culturais, fruto de discussões amplas, das leis e da tradição.

Em uma revolução há vários grupos e pessoas, inclusive agindo por meio da violência, lutando para transtornar arbitrariamente toda a organização social pré-existente, isso, para Burke, é errado e imoral, porque favorece a arbitrariedade e, ademais, é um equívoco porque as revoluções sempre se propõem modelos para todos os povos, algo impossível na visão do filósofo porque os povos são diferentes devido a sua cultura e costumes.

Immanuel Kant
Na Filosofia clássica se têm alguns exemplos de autores famosos considerados "conservadores" como o próprio Edmund Burke, George Hegel e Immanuel Kant. O pensamento desses autores endossa a tradição das instituições políticas, econômicas, sociais que – para eles – tem por essência defender a ordem social, consequentemente, manter as classes sociais dentro de fronteiras bem distintas e propagar que o Estado deve, de alguma forma, ser preponderante sobre o indivíduo por ser aquele não uma manifestação qualquer, mas a solidificação de toda a vontade soberana de um povo e de suas tradições.

O conservadorismo político, de forma geral, não aceita a intervenção do Estado na economia, pois pensa que a economia deve, também enquanto instituição social, se mover por si mesma de acordo com os agentes que nela operam. Em suma, o Estado não representaria, na visão conservadora, indivíduos, mas grupos; ele seria a síntese de outras instituições, por isso Burke simpatizava com a parte do programa do partido que propalava o liberalismo econômico.

Edmund Burke e o conservadorismo

Edmund Burke nasceu em 12 de janeiro de 1729 em Dublin na Irlanda e faleceu em 9 de julho de 1797 em Beaconsfield na Inglaterra. Este autor do campo da Filosofia Política foi um parlamentar e pensador político do século XVIII que desempenhou importante papel nos principais temas políticos por cerca de 30 anos depois de 1765. Burke era irlandês, o pai era advogado protestante e sua mãe uma católica praticante. Burke ingressou no Trinity College, em Dublin, em 1744 e foi para Londres no ano de 1750. Em 1757 ele se casou com Jane Burke Nugent, a filha de um médico católico irlandês.

Edmund Burke

A carreira política do filósofo iniciou-se no ano de 1765, quando se tornou secretário particular do marquês de Rockingham. Desde o início, Burke se envolveu na controvérsia constitucional na Grã-Bretanha sob o governo do rei James III, que na época estava tentando estabelecer um poder mais incisivo para a coroa e, por isso, enfrentava descontentamentos severos por parte dos colonos britânicos nos territórios de além-mar, especialmente na colônia norte-americana da Grã-Bretanha. Burke se preocupou com estes temas em sua filosofia política dando razão a algumas alegações dos colonos americanos que se negavam a pagar impostos para a Inglaterra cuja criação e cobrança não tinham chance de debater e impedir no Parlamento Britânico por não terem lá representação concreta, e os americanos alegavam tal direito porque embora colonos, eram ingleses também.

O autor discorreu longamente sobre o tema no panfleto "Thoughts on the Cause of the Present Discontents" de 1770, no qual argumenta que, embora as ações de James tivessem bases legais porque não estavam contra a Constituição, elas foram infelizes porque iam contra o espírito liberal britânico. Nesse mesmo panfleto Burke elabora uma nova definição de partido político: "[...] o Partido é um grupo de homens unidos para a promoção, pelo seu esforço conjunto, do interesse nacional com base em algum princípio com o qual todos concordam" (BURKE. 1982b, p. 29).



A principal polêmica que afligia os políticos e a monarquia britânica naquele ano era a questão do tratamento dispensado às Colônias de ultramar. O filósofo argumentou a respeito que o governo britânico tinha agido de forma imprudente e até mesmo pouco consistente para dirimir os problemas. Na concepção de Burke, a forma de a Grã-Bretanha tratar a questão colonial era estritamente legal, porém não moral.

Para Burke, os britânicos precisavam oferecer mais respeito e consideração pelas reivindicações dos colonos da América do Norte. O autor chamou a isso de "razão legislativa" em dois de seus discursos parlamentares sobre o assunto, um chamado "On American Taxation", de 1774; e o outro de "On Moving His Resolutions for Conciliation With America", de 1775 (BURKE, 1982b). Mesmo assim, a política imperial britânica seguiu não sabendo resolver os problemas com suas colônias.

As ideias de Edmund Burke

As ideias de Edmund Burke estão espalhadas em discursos no Parlamento Inglês, cartas e em alguns opúsculos. Em termos políticos uma de suas obras mais conhecidas é: "Reflexões sobre a revolução na França e sobre o comportamento de certas comunidades em Londres relativo a esse acontecimento" de 1790. Traduzido no Brasil em duas versões: "Reflexões Sobre a Revolução na França", traduzido por Francisco Eduardo Alves e publicado pela editora Topbooks e "Reflexões sobre a Revolução em França" [1790], editora da UnB.

Para entender as "Reflexões sobre a Revolução em França" é imprescindível compreender um pouco da vida política e algumas das razões que o levaram a escrever o livro. Burke, particularmente, mantinha certa "aversão" ao exercício do chamado "poder arbitrário". Assim, o objetivo da obra é, antes de tudo, criticar os defensores ingleses da Revolução Francesa, entre os quais estava o pastor dissidente da Igreja Anglicana, Richard Price (1723-1791), defensor da liberdade de pensamento e do ideal de governo do "povo pelo povo".

Parlamento Britânico

As Reflexões são apresentadas inicialmente como resposta a um sermão de 4 de novembro de 1789, feito pelo pregador por ocasião da comemoração do centenário da Revolução Inglesa, no qual Price exaltava a luta dos revolucionários franceses. Essa obra também estabelece o rompimento político e ideológico com os Whigs. Burke, avesso à arbitrariedade no exercício do poder, considerou o que acontecia na França como a encarnação daquele. Preocupado também com o que poderia acontecer na Inglaterra após a chegada das notícias sobre a Revolução na França, o filósofo tenta, no livro, mostrar os malefícios que algo semelhante traria a seu país, pois ele sabia que na Inglaterra havia muitos simpatizantes da Revolução Francesa. É por isso que essa obra de Burke é um marco histórico, pois ele é o primeiro filósofo que se propõe analisar o processo revolucionário da França e por isso é tido como o "pai" do conservadorismo.

Burke era também um cristão conservador e é por isso que ele projeta suas crenças igualmente na política. Suas obras são, antes de tudo, a reação de um cristão conservador à política revolucionária que se espalhava pelo mundo. Ele acreditava que a monarquia deveria existir (e que de fato existia) devido também ao poder divino. Para ele, a religião pode ser considerada a base da sociedade civil e a fonte de todo bem e de toda felicidade dos homens (BURKE 1982a, p. 112-113). Ele advoga que o homem é, por natureza, um animal religioso; o ateísmo não só é contra a razão, mas é contrário aos nossos instintos mais elementares (Idem). "A religião é não só a fonte de nossa glória e do nosso orgulho, isto é, é a fonte da glória e do orgulho dos ingleses, mas é também fonte de grande civilização entre nós e de muitas outras nações" (BURCKE, 1982a; 2004).

Assim, qualquer mudança sem discussão, sem levar em conta a cultura de determinado povo, e, especialmente, a vontade de grupos (e na visão de Burke a vontade de um grupo está acima da vontade dos indivíduos particulares que o compõem) é imoral porque busca o poder pelo poder como satisfação não da política ou da vontade da maioria, mas está cooptado pela vontade de líderes "vaidosos".

Burke via na manutenção de instituições já consagradas como a família, o Estado, a Igreja, os costumes – a garantia de continuidade da sociedade e de sua harmonia. O autor não era radicalmente contra "mudanças", mas defendia que elas acontecessem em escalas que deveriam ser amplamente discutidas por grupos e confrontadas no Parlamento. É por isso que ele critica veementemente o Estado revolucionário. A Revolução, segundo ele, era uma prática contra as esferas legitimadas pela autoridade e pela vontade dos grupos em prol da vontade particular, e por isso ilegítima, de poucas pessoas que se autoafirmavam como portadoras da verdade.

Burke não admite mudanças na sociedade?

Para Burke, partindo da ideia que cada sociedade é diferente porque tem culturas e leis diferentes, qualquer proposta de revolução realizada por um determinado povo não pode servir de modelo para todos os outros. Além disso, Burke considera que não se pode partir da premissa que a política seja feita apenas com a razão e por entes que têm a razão a plenos poderes, o homem é também formado por sentimentos. O autor leva em consideração o fato que na política nem sempre as decisões são racionais, mas elas estão ligadas às necedades diretas dos indivíduos em determinado período histórico, porém Burke não admite, com isso, que então a história seja a grande determinante da vida dos indivíduos, o que ele admite é que a história está ligada à natureza e que, portanto o que acontece com a vida humana e as suas instituições, é "natural" e não deve ser questionado, muito menos por revolucionários que tentam estabelecer uma "contraordem" social e, por isso – por ser um "transtorno" das convenções estabelecidas ao longo do tempo – é que são antinaturais.

Se os princípios da Revolução estão inscritos em algum lugar, certamente, este lugar será o estatuto chamado Declaração de Direitos. Nesta declaração cheia de sabedoria, moderação e prudência, elaborada por grandes juristas e grandes estadistas, e não por mornos e inexperientes entusiastas, não há nenhuma palavra, nenhuma alusão que se relacione a um direito geral de escolher nossos próprios governantes, de depô-los por indignidade e de estabelecer um governo para nós mesmos (BURKE, 1982a, p. 57).

Com tal postura, pode-se inferir porque Burke é considerado um político aristocrático e conservador. Em política ele defendia a monarquia e a autoridade do Rei, porém o Rei reina, mas não governa porque é limitado pelos poderes do Parlamento.

Ao analisar a "Assembleia" estabelecida na França pós-revolucionária ele critica abertamente o que chama de "abolição das ordens", pois sem a ordem social não há nada que a possa frear o exercício do poder (BURKE, 1982a; 2004).

[...] a França tivera a possibilidade de aproveitar o exemplo britânico, de ter: uma Constituição livre, uma monarquia poderosa, um exército disciplinado, um clero reformado e venerado, uma nobreza menos orgulhosa, mas mais digna, capaz de lhes ensinar a virtude e não de abafá-la, uma burguesia liberal imitando esta nobreza e oferecendo-lhes recrutas, um povo, enfim, protegido, satisfeito, laborioso e obediente, habituado a procurar e a apreciar a felicidade (BURKE, 1982a, p. 72).

A Grã-Bretanha, para ele, se tratava do modelo a ser seguido e a França, em sua visão, tomara o "caminho errado" porque: "os franceses possuíam todas estas vantagens em seus antigos Estados [...], mas preferiram agir como se nunca tivessem sido moldados em uma sociedade civil, como se pudessem tudo refazer a partir do nada" (ibid., p. 71).

Por fim, para Burke o que garantiria a liberdade de um povo é a existência de um Rei e de um Parlamento. Ele abominava, assim, o argumento sobre a existência de "direitos inatos". Para ele a liberdade deveria ser conquistada e a classe que mais tinha, naturalmente, conquistado a liberdade (e a merecia) era a aristocracia, para ele era essa classe que garantiria a ordem social. É por aí também que ele aproveita para criticar o ceticismo racionalista do cientificismo francês adotado pelos revolucionários do continente que, segundo ele, traria mais dúvidas (ao questionar as autoridades e seu poder) do que certezas – e as certezas segundo ele – são imprescindíveis para um bom governo e para a manutenção da ordem.

Para Burke a herança é uma manifestação da natureza e se a manutenção da aristocracia se dá por herança, sua extinção pode ser vista como uma usurpação. Assim, a exclusão do povo da vida política e a submissão ao rei e à aristocracia são sentimentos naturais e muito antigos ligados aos ancestrais que devem ser preservados. Para o autor, o que não é natural é a indignação dos revolucionários e a igualdade que poderia subverter a ordem das coisas acabando com um hábito criado naturalmente pela história. Portanto, as transformações, mesmo que lentas, são naturais e a declaração dos direitos do homem, a supressão da nobreza, a nacionalização dos bens eclesiásticos e todas as demais alterações trazidas pela Revolução Francesa demonstram a pressa e a desconfiança dos políticos franceses quanto à marcha da natureza. Ou seja, Burke alega que questionar a ordem estabelecida pelos ancestrais, pela cultura, pelos costumes é antinatural e levará o Estado à ruína o que, consequentemente, levará, também, a civilização e o homem à destruição. Eis os motivos que fizeram Edmund Burke se tornar um filósofo conservador.

REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

FERNANDES, Francisco et al. Dicionário Brasileiro Globo. São Paulo: Globo, 1992.

FURET, François. Penser la Révolution française. Paris: Gallimard, 1978.

BURKE, Edmund. Reflections on The Revolution In France And On The Proceedings In Certain Societies In London Relative to that Event In a Letter Intended To Have Been Sent To a Gentleman In Paris. 1790. Disponível em:< http://portalconservador.com/edmund-burke>, 2004. Acesso em: 25 de agosto de 2014, 12:45:43.

______. Reflexões sobre a Revolução em França [1790]. Brasília: Ed. UnB, 1982a.

______. Thoughts In The Cause Of The Present Discontents (1770). In: CHARLOT, Jean. Os Partidos Políticos. Brasília: UnB, 1982b.

SCHILLING, VOLTAIRE. A revolução é salva. Disponível em: <http://educaterra.terra.com.br/voltaire/mundo/rev_francesa_dois4.htm>. Acessado em: 04 de agosto de 2014, às 15:09:45.