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quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

ESCOLA "LIVRE" FRIEDRICH NIETZSCHE





GERSON NEI LEMOS SCHULZ

FILÓSOFO

PROFESSOR DA REDE PÚBLICA
FEDERAL DO BRASIL

Texto publicado originalmente em:

COLEÇÃO GUIAS DE FILOSOFIA:
NIETZSCHE. ESCALA: 
SÃO PAULO, 2011, p. 22-30. V. III.


Como seria uma escola baseada
no modelo didático-pedagógico da
filosofia de Friedrich Nietzsche?


A Escola



Imagine uma escola que não fosse nem privada e nem pertencesse ao Estado. Uma escola que não reproduzisse o conhecimento preocupada com o mercado de trabalho ou com as coisas práticas do mundo. Uma escola que se preocupasse em formar um modelo de homem, qual? Fazer desabrochar nas pessoas aquilo que elas são, trazer a tona suas propensões naturais (seus dons). Imagine uma escola em que se ensinasse grego e latim, se ensinasse a cultura aos moldes da Grécia pré-socrática. Um lugar em que se fomentasse nas crianças e adolescentes um espírito de criação do indivíduo no sentido de buscar aquilo que cada um tem dentro de si enquanto ser humano tendo, para isso, acesso às bases originais da cultura Ocidental para, a partir delas, perguntar-se: "Como cheguei a ser o que sou?" "Por que estou neste mundo?" "Qual papel me cabe na sociedade em que vivo?" "Qual minha responsabilidade frente ao meu país?"

Uma escola em que não se valorize o individualismo meramente consumista de hoje em dia do ser igual ao ter (como diz Fromm em Ter ou Ser?), mas onde os jovens fossem levados a se perceber enquanto seres que são responsáveis pela construção do mundo a sua volta a partir da análise e da percepção das contradições da cultura (Bildung) na qual estão imersos desde que nasceram. Em que as frases motivadoras às crianças de jovens fossem: "Não há nenhum Deus para salvar você". "Deixar os outros pensarem por você é covardia". "O único responsável por você é você mesmo". "Inevitavelmente você morrerá, mas e aí... o que fará com a vida enquanto a tem?" Assim, provavelmente, seria a escola fundada por Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900).


O Professor


Janz (1987, p. 199) nos diz que por meio dos relatos de alguns ex-alunos Nietzsche costumava dar aulas ouvindo atentamente cada um de seus alunos. Ele também relata que Nietzsche não era um professor que impunha suas idéias aos alunos, mas procurava fazer nascer neles o interesse pelo assunto tratado, desenvolver o respeito pelas grandes figuras do passado, pelos grandes problemas da existência humana e pela seriedade no pensar.


Neukamp (2008, p. 48 et seq.) descreve o professor Nietzsche, citando relatos de Ludwig W. Kelterborn onde afirma que os alunos, de forma geral, "achavam o jovem professor amável e educado em todas as ocasiões, alguém que quando lançava uma pergunta aos alunos fazia questão que estes respondessem de acordo com aquilo que pensavam e jamais com informações memorizadas em livros". Quer dizer, por aí se tem uma pista do que Nietzsche pensava que deveria ser o papel do professor, valorizar a autonomia dos alunos, que não deve ser confundida com liberdade, pois o mesmo Neukamp (Idid, p. 50) alerta que ele exigia disciplina, e no programa que propôs às autoridades prussianas no século XIX estavam entre as leituras obrigatórias 1) A obra de Homero; 2) Três obras dos poetas trágicos; 3) Fragmentos escolhidos de Platão; 4) Tucídides; 5) Heródoto e Xenofonte; 6) Discurso de Lísias ou Demóstenes. Isso sugere o currículo das aulas de Filosofia, ao menos proposto por Nietzsche.


Cada Estudante deve Eleger seu Modelo de Homem


Nietzsche exigia do filósofo coerência entre vida e obras, e para ele os jovens deveriam escolher um mestre para servir de inspiração pessoal na vida dentre os vultos da história. Nessa época um exemplo de gênio – para Nietzsche – era Arthur Schopenhauer (1788-1860). De acordo com Danelon (2003), Nietzsche via em Schopenhauer o modelo de homem e de gênio porque foi o único a renegar o Ocidente com seu pessimismo em O Mundo como Vontade e Representação de 1819, servindo de exemplo para toda a humanidade que deveria elevar-se acima da cultura Ocidental (para Nietzsche contaminada pelo utilitarismo capitalista que transformava tudo em dinheiro – como queria o Positivismo de Comte, 1798/1857).


Schopenhauer
Por isso Nietzsche se encanta com Schopenhauer quando toma em mãos sua obra que despertou nele uma profunda admiração pelas idéias contrárias aos modismos culturais da época que Nietzsche chamava de "cultura filistéia". A cultura filistéia, citada por Marton (1983), foi descrita por Nietzsche numa carta a Carl von Gesdorff na noite de 11 de abril de 1869, onde, em síntese, ele diz que está indo trabalhar na "instituição universitária", descrita por ele como um ambiente pesado, cheio de obrigações e onde é vendido o conhecimento, o que o transformará – conclui entristecido – num 'filisteu da cultura', isto é, num homem especializado. Para Scarlet Marton os filisteus da cultura são:

[...] aqueles que, estritos cumpridores das leis e dedicados executores dos deveres, execravam a liberdade gozada pelos estudantes. O 'filisteu' era uma personagem de bom senso, inculta em questões de arte e crédula na ordem natural das coisas. Usava o mesmo raciocínio para abordar as riquezas mundanas e as riquezas culturais [...] Os filisteus da cultura além de não serem cultos, têm a ilusão de sê-lo. Incapazes de criar, limitam-se a imitar ou consumir. Fizeram da cultura algo venal, puseram-na à venda, submeteram-na às leis que regem as relações comerciais 'quem e quantos consomem' é a questão fundamental a ser respondida. (MARTON, 1983, p.32)

É por isso que no livro Ecce Homo Nietzsche declara que a sua tarefa enquanto filósofo é educar e derrubar ídolos: "Eu não construo novos ídolos, os velhos que aprendam o que significa ter pés de barro. Derrubar ídolos (minha palavra para 'ideais') – isto sim é meu ofício." (NIETZSCHE, 1995, § 2). Era isso também que ele desejava de seus alunos.


A Transvaloração da Cultura por meio da Educação


As idéias apresentadas em Sobre o Futuro de Nossos Estabelecimentos de Ensino (Sobre el Porvenir de Nuestras Escolas, 2000; que se trata de uma palestra onde Nietzsche narra uma longa conversa com um amigo, um filósofo e um acompanhante de 1872) é a metade do caminho para se compreender o Nietzsche filósofo e professor. Ali ele aprofunda o que entende por cultura e educação e o que entende por pensamento crítico.

Sua primeira idéia é que a o homem novo (Übermensch) é aquele que é capaz de violar de qualquer forma as crenças que se tornaram a tradição. A respeito da violação das crenças, diz Nietzsche:

– Essa 'malignidade' é reencontrada em todo professor do novo, em todo pregador de novas coisas, a mesma ‘malignidade’ que desacredita o conquistador, ainda que se manifeste mais sutilmente e não mobilize imediatamente o músculo – o que faz, por outro lado, que desacredite com menos força! O novo, de qualquer forma, é o mal, pois é o que quer conquistar, derrubar os limites, destruir as antigas crenças; só o velho é o bem! Os homens de bem de todos os tempos são aqueles que plantam profundamente velhas idéias a fim de fazê-las frutificar, esses são os cultivadores do espírito. Mas todo terreno acaba por se esgotar, é preciso que o arado do mal o revolva. (NIETZSCHE, 1976, p. 41)

Quem é o professor do novo? Para ele é o filósofo, mas não no sentido absoluto. Nietzsche quis dizer que todos os profissionais deveriam pensar como filósofos até se tornarem um, pois, de acordo com a teoria do gênio de Nietzsche, este não é predestinado a nascer filósofo. Portanto, a transformação da cultura deve começar por quem lida com ela, por professores e alunos. O estudante deve sempre buscar além daquilo que o professor expõe em sala de aula. Somente assim ele poderá percorrer o caminho para se superar a si e ao próprio professor, escapando da mediocridade. No sentido nietzschiano, as atividades corriqueiras realizadas sem reflexão, a cultura do senso-comum, a linguagem jornalística que apenas narra o fato sem crítica própria, a "fofoca".

Nietzsche supõe possível criar um novo projeto de homem realizando uma crítica à modernidade cartesiana que separou natureza e homem em res cogitans e res extensa privilegiando o mecanicismo. Para Nietzsche foi essa idéia de separação mecânica operada no homem (privilegiando as idéias inatas, portanto o intelecto) que fez os indivíduos renegarem outras faculdades humanas como sentimentos e instintos.

Resgatar as faculdades instintivas e sentimentais sem negar a razão é o projeto de Nietzsche. Por isso ele propõe a transvaloração dos valores da lógica platônica/aristotélica, da moral cristã (moral das massas que se deixam guiar louca e cegamente por um líder, o messias, na esperança de ganhar o mundo do além) e o rompimento epistemológico com a ciência de sua época (que para ele era a 'gaia ciência'). Logo, ele afirma que o Universo e os fatos – como queria o Positivismo – não têm sentido e, por isso mesmo, estão condicionados ao seu tempo e aos olhos de quem os lê, e não à eternidade, não sendo verdades absolutas.

Nietzsche também propõe transvalorar a organização sócio-cultural e política de seu tempo, assim é possível afirmar que ele não concordava com o modo de produção industrial capitalista como afirma no aforismo 21 de A Gaia Ciência (1976). Nietzsche também não é a favor da democracia quando a considera uma decadência no sentido de que ela adula o Estado (Prussiano) que pensava em si e não na cultura. Também não era a favor do autoritarismo, visto que detestava as políticas de massa porque, para ele, elas diluem o indivíduo. Também não se fez simpático ao socialismo nem ao anarquismo, como se observa nos aforismos 34 e 473 das obras: Crepúsculo dos Ídolos (1999) e Humano, demasiado humano (2005), respectivamente.

Por fim, não se pode afirmar que ele fosse um liberal quando ressalta que

[...] a mais forte espécie de homem que houve até agora, as comunidades aristocráticas ao modo de Roma e Veneza, entendiam liberdade exatamente no sentido que eu entendo a palavra liberdade: como algo que se tem e não se tem, que se quer, e que se conquista [...]'.(NIETZSCHE, 1974, p. 349).

Assim se constata que Nietzsche apoiava um governo de aristocratas (o governo dos melhores), mas um governo formado por homens "geniais" (que se destacassem por sua inteligência) e não porque pertencessem à classe mais abastada. A dificuldade aí é saber quais seriam os critérios para se saber quem são os mais aptos!

Em relação à educação ele afirma:

[...] procede geralmente desta maneira: tentar determinar no indivíduo, com o engodo de inúmeras vantagens, maneira de pensar e agir que, tornada finalmente hábito, instinto, paixão, dominará nele e sobre ele, contra seus interesses supremos, mas em benefício de todos. Quantas vezes não observei que se o trabalho devotado, o zelo cego atribuem a riqueza, as honras fazem, por outro lado, com que os órgãos percam a sensibilidade que lhe permitiria fruir essa riqueza [...] Quantas vezes não constatei que esse remédio radical contra o aborrecimento e as paixões amolece os sentidos e torna o espírito rebelde a toda nova excitação (a mais laboriosa das épocas, a nossa, não sabe o que fazer de seu trabalho e de seu dinheiro, a não ser cada vez mais trabalho e mais dinheiro; [...] Adiante, deveremos ter 'netos'... A educação logra sucesso, qualquer virtude individual se torna utilidade pública e desvantagem privada tendo em vista o fim supremo do indivíduo; consegue apenas um enfraquecimento do espírito e dos sentidos [...],'Deves procurar teu proveito pessoal mesmo à custa dos demais', apregoam portanto com o mesmo fôlego, o 'tu deves' e o 'tu não deves'. (NIETZSCHE, 1976, p. 55-56)



A partir dessa citação, pode-se ter uma idéia do que Nietzsche pensa que deveria ser a educação. O oposto do que ele descreve. Isto é, uma forma de pensamento crítico (uma reflexão) sobre a cultura dada, ou seja, construída antes do indivíduo nascer e transmitida a ele pelas instituições civis ou religiosas. Inclui-se ai os maiores valores estabelecidos: "deus" e o "bem" que, para Nietzsche, foram construções humanas e não divinas. Logo, o modelo de educação apregoado pelo filósofo é humanista e deve permitir que o indivíduo libere seus instintos, suas habilidades, talentos (SCHULZ, 2007, p. 19).

Os fatos não devem ser ensinados ao aprendiz da forma como o Positivismo ensinava (tecnicista/mecânica/repetitiva), mas deve, isto sim, apresentar como e onde o indivíduo poderá utilizar aquele conhecimento adquirido em sua vida pública e privada.

Portanto, a educação, em última instância, deve ser estética, permitindo ao homem desenvolver a criatividade sobre o fato. Só assim poderá se revelar algum gênio e, então, para Nietzsche, o homem escapará do niilismo, do sem sentido e da mediocridade causados pela vida maquinal, automática que o modo de vida proposto pela Modernidade trouxe. Esta é sua idéia filosófica do dizer "não" para a cultura Ocidental.

[...] Em que medida, também entre nós, capacitar-se para ganhar dinheiro não se converteu em sinônimo de adquirir cultura? Em que medida o ensino profissionalizante e a especialização dos cursos superiores não se fazem em detrimento da formação humanística? Em que medida a massificação e o utilitarismo não se impõem à custa do aprimoramento individual? A estas questões nenhum educador pode furtar-se. Nietzsche combate, com veemência, a difusão inescrupulosa dos ditos bens culturais e os interesses imediatos que ela visa satisfazer. Longe, porém, de defender a cultura formal, que se limita a acumular dados e informações, opõe a erudição à vida, mas não nos deixemos enganar. Isso não revela traço algum de antiacademicismo, e sim a existência de um projeto: fazer dos estabelecimentos de ensino o lugar apropriado para a reflexão, o espírito crítico e a atividade criadora. É preciso, pois, devolver aos estabelecimentos de ensino a vocação que lhes é própria: 'fazer do homem um homem'. (DIAS, Sd., Prefácio)


Nietzsche assinala o equívoco em se pensar que cultura é trabalho árduo, apenas. Para ele a cultura é o aprendizado não utilitarista de tudo o que o ser humano realizou na história sem desvincular-se da vida real. A cultura não é uma erudição, mas um cabedal de conhecimentos vivos que deve ser ensinada de forma tal que os indivíduos possam criar coisas novas sobre as que aprendem. Nietzsche considera a produção da cultura industrializada moda meramente intelectualista, uma farsa. Assim, é tomando esse pressuposto que se pode explorar a possibilidade de construir hoje uma pedagogia crítica do dizer "não" aos modismos, aos intelectualismos, aos capitalistas da cultura e até mesmo às ideologias do Estado que defendem a idéia de que a educação é um serviço, portanto, uma mercadoria.

A partir daí pode-se pensar a idéia de que o verdadeiro estudante, tal qual o verdadeiro mestre, também pode ser autêntico dentro de sua escola sendo um crítico da própria cultura e auxiliando a podá-la de seus desvios utilitaristas patrocinados pelas classes econômicas dirigentes (aristocracia burguesa) que têm interesse em manter essa lógica de utilidade sobre tudo o que é produzido para transformá-la em mercadoria e gerar lucro.

Para Nietzsche o niilismo ante a vida levou boa parcela da humanidade a crer que a história acabou e nada mais pode ser mudado. A idéia de massificação ganha espaço e surge o conceito do padrão (todos devem ser iguais). Mas com isso aparece um "mal-estar" dentro do núcleo da civilização porque as coisas perdem o sentido (niilismo). Não há mais o que inventar, o que fazer. A vida fica autômata (SCHULZ, 2003, p. 137).


E como Nietzsche entende a cultura de seu tempo?

As águas da religião refluem e deixam para trás pântanos ou poças; as nações se separam outra vez com a maior das hostilidades e querem esquartejar-se. As ciências, praticadas sem nenhuma medida e no mais cego laissez faire, estilhaçam-se e dissolvem toda crença firme; as classes cultas e os Estados civilizados são varridos por uma economia monetária grandiosamente desdenhosa. Nunca o mundo foi mais mundo, nunca foi mais pobre em amor e bondade. As classes eruditas não são mais faróis ou asilos, em meio a toda essa intranqüilidade da mundanização; elas mesmas se tornam dia a dia mais intranqüilas, desprovidas de pensamento e de amor. Tudo está a serviço da barbárie que vem vindo, inclusive arte e a ciência de agora. O homem culto degenerou no pior inimigo da cultura, pois quer negar com mentiras a doença geral e é um empecilho para os médicos. (NIETZSCHE, 1974, trechos dos aforismos 4 e 6. p. 81-4)

É por isso que, para ele, a educação deve criticar permanentemente a cultura para que ela não se desvie de seu real papel, formar (Paidéia) o homem novo.


Conclusão


Por fim, diante da crise que Nietzsche percebe que existe na cultura ele concebe a idéia de que o filósofo não deve apenas ser professor, dever ser o "médico da civilização" (em "O livro do Filósofo, Sd). Para Nietzsche é o filósofo que tem o papel preponderante de alertar as demais categorias profissionais (eruditos, médicos, cientistas) para os perigos da extirpação do conhecimento e sua fragmentação em especializações. Para o filósofo alemão não é especializando o homem aos "pedaços" (fragmentos) que ele saberá o todo, como se o todo fosse desprovido de sua própria totalidade, mas unindo o homem com seus vínculos fortes (instinto e paixão) que ele poderá tornar-se filósofo e ter o verdadeiro amor à sabedoria. Transformando conhecimento em sabedoria, só assim se poderá criar uma "nova cultura" que seja a realização plena do indivíduo enquanto Homem.

Referências

DANELON, Márcio. Nietzsche Educador: Uma Leitura de "Schopenhauer como Educador". Unimep. http://www.marabrum.hpg.ig.com.br/artigo15.html, acessado em 15/05/2011.

DIAS, Rosa Maria. Nietzsche Educador. São Paulo: Editora Scipione, S.d.

FROMM, ERICH. Ter ou Ser? São Paulo: Editora LTC, 1987.

JANZ, Kurt Paul. Friedrich Nietzsche: Los diez años de Basileia. (1869-1879). Madrid: Alianca Editorial, 1987.

MARTON, Scarlet. Nietzsche. São Paulo: Brasiliense, 1983.

NEUKAMP, Elenilton. Nietzsche o professor. São Leopoldo: Editora Oikos, 2008.

NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. São Paulo: Hemus, 1976.

______. Humano, demasiado humano. São Paulo: Cia de Bolso, 2005.

_____. Sobre el Porvenir de Nuestras Escolas. Barcelona: Tusquets, 2000.

______. Crepúsculo dos Ídolos. 4. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999.
(Os pensadores)

______. Considerações Extemporâneas. In: Nietzsche. v. XXXII. 1. ed. São Paulo: Abril, 1974. (Os pensadores)

______. Ecce Homo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

______. O último filósofo. In: O livro do Filósofo. Porto: Rés, Sd.

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. São Paulo: Unesp, 2007.

SCHULZ, Gerson N. L. Nietzsche e a educação: uma perspectiva de transvaloração para a pós-modernidade. Pelotas: 2003. Dissertação de Mestrado (Educação)

______. Educação: ser, saber, fazer. Porto Alegre: Editora Alcance, 2007.

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

UM ÍCONE DO CONSERVADORISMO: O PENSAMENTO DO FILÓSOFO E POLÍTICO BRITÂNICO EDMUND BURKE





GERSON NEI LEMOS SCHULZ

Professor de
Filosofia na Rede
Pública Federal no Rio Grande do Sul

TEXTO PUBLICADO ORIGINALMENTE NA REVISTA CONHECIMENTO PRÁTICO
FILOSOFIA - EDIÇÃO N. 51. O título original era: Um Ícone do Conservadorismo. Ele foi alterado, arbitrariamente e sem o meu conhecimento, pelo editor da extinta revista, para Um gênio conservador... Nem de longe eu considero Burke um gênio.
EM:



Você é um conservador?


O Dicionário Brasileiro Globo da língua portuguesa afirma que conservador é o adjetivo que deriva do latim "conservatore" e que é aquilo que: "conserva; que ajuda a conservar; que se opõe a mudanças políticas; sm. Aquele que conserva [...]; aquele que, em política, é pela conservação da situação vigente, opondo-se a inovações que venham modificar a ordem social" (1992, p. 434).

Essa tradição vem desde o início dos Estados modernos, especialmente a partir dos escritos do filósofo Edmund Burke (1729-1797) que foi secretário do Primeiro-Ministro, e líder do partido Whig. O conservadorismo – enquanto filosofia política e corrente de pensamento filosófico – aparece no século XVIII na Inglaterra como uma reação específica à Revolução Francesa que espalhou grande instabilidade política na França e, após, se lavrou pela Europa, perturbando diversos regimes monárquicos cujos reis se preocuparam com o fim dado ao rei Luis XVI, decapitado na guilhotina. De acordo com o historiador gaúcho, Voltaire Schilling (2014), no dia 21 de janeiro de 1793, um dia de inverno, Luís XVI foi levado ao cadafalso para ser decapitado por Charles Henri Sanson, o carrasco oficial da república convencional francesa.

Decapitação do Rei
Luis XVI


A decapitação do rei, após um julgamento levado a cabo por seus opositores, mas não apenas simples opositores e sim, também pessoas de todas as classes sociais unidas por uma vontade comum – a luta contra o regime monárquico despótico, e cujo julgamento foi arquitetado no calor de uma revolução armada que lutava contra a tirania absolutista em toda a Europa – fez estremecer todos os reis do continente cujos conselheiros temiam que o movimento impulsionado pelo grito de liberdade, igualdade e fraternidade para todos, "contaminasse" também cidadãos de outras nações. Para Schilling, "a cabeça cortada e sangrada do rei, erguida na praça pública lotada, foi o aviso que a França revolucionária enviou aos soberanos do velho continente, junto com o grito 'Morte aos tiranos!'" (2014).

Outra possível vertente que incentivou posturas conservadoras na política, especialmente inglesa, foi o período do "Terror", imposto à França revolucionária pelos jacobinos, liderados por Maximilien François Marie Isidore de Robespierre (1758-1794) ou simplesmente Robespierre, advogado e deputado francês. Conforme diz Furet (1978) esse grupo era uma organização política criada no ano de 1789 na França durante o processo da Revolução. Os jacobinos inicialmente adotaram uma postura "moderada" no que diz respeito à Revolução, mas com o passar do tempo, Robespierre determinou posições muito mais radicais às diretrizes do grupo. A maioria das pessoas que compunha os jacobinos era de pequenos comerciantes, profissionais liberais e pessoas pertencentes às classes mais desfavorecidas econômica e politicamente, daí suas diretrizes pregarem premissas dirigidas para essas pessoas como, por exemplo, a eliminação da monarquia na França, a abolição da escravidão em todas as colônias francesas, a educação para todos, a garantia do uso da força bruta contra os opositores da revolução; o fim de todos os privilégios do clero e da nobreza, a ajuda econômica aos mais necessitados, o controle dos preços dos produtos de primeira necessidade. Medidas que agradavam ao povo em geral mais pobre, mas que, por outro lado, desagradava aos girondinos, liderados por Jacques Pierre Brissot (1754-1793) e que era formado por membros da alta burguesia francesa.

Os Girondinos eram um grupo político "moderado" durante a Revolução Francesa e seus integrantes faziam parte da classe que financiou boa parte da revolução, a burguesia antimonarquista. Eram chamados de Girondinos porque derivavam do partido político conhecido como Gironda. Os Girondinos compunham também o chamado "Terceiro Estado", juntamente com os Jacobinos e os Cordeliers.


Robespierre
Opositores ferrenhos dos Jacobinos os Girondinos defenderam, durante o processo da Revolução Francesa, a instalação de uma monarquia constitucional na França após a queda do absolutismo. Assim eram, logicamente, opostos ao radicalismo dos Jacobinos.

Mas os girondinos também usaram a violência para reagir às medidas radicais tomadas pelos Jacobinos durante a fase da "Convenção Nacional". Eles também promoveram perseguições políticas, conspirações e assassinatos de seus opositores. Em contraposição aos Jacobinos, os Girondinos – em termos econômicos e políticos – eram a favor da grande liberdade das atividades econômicas sem a intervenção governamental nessas atividades. Num segundo momento eles se tornaram defensores de um sistema republicano moderado, sendo também favoráveis à exclusão dos mais pobres das eleições por meio da implantação do voto censitário que era baseado na renda dos cidadãos franceses.

Foi entre 1792 e 1794 que os Jacobinos tomaram a frente do processo revolucionário na França. E este período se denomina "Terror" em função dos assassinatos de opositores políticos, principalmente de monarquistas e Girondinos. Robespierre, principal líder dos jacobinos, era defensor da violência como forma de garantir a continuidade da Revolução e um de seus principais objetivos era garantir a transformação da França em uma república baseada nos princípios da igualdade e da virtude com forte apelo social. Seu projeto, porém, não foi a cabo visto que em 1794 o próprio Robespierre foi preso por seus inimigos e executado na guilhotina.

A Queda da Bastilha
Além dessa "revolução marcante", especificamente Edmund Burke, também viveu em um mundo que passava por outras revoltas. Ele teve a oportunidade de vivenciar indiretamente quatro revoluções – a Americana (que levou a formação dos Estados Unidos da América em 1776), a revolta dos Bengalis (na Índia), as revoltas dos católicos irlandeses e a Revolução Francesa. Além disso, em seu próprio território, Burke (que era líder dos Whigs, o grupo que, na ocasião, era considerado 'pró-esquerda' por ser progressista e contrário a intervenção do Rei na Política) enfrentava os Tories.

Mas o que seria um conservador? E se Burke era partícipe de um grupo considerado progressista, o que o leva a ser conhecido como autor conservador e de "direita"?

Em filosofia política o conservadorismo, de forma geral, aposta nas diretrizes opostas as dos Jacobinos em termos políticos e sociais. Assim, para Abbagnano (2007), para um conservador, a sociedade e suas instituições são o resultado de um processo de crescimento cumulativo ao longo do tempo onde a ordem social vigente é mero produto dessa interação entre as instituições, os costumes, os hábitos, a Lei e as forças sociais impessoais que regem os períodos sociais. Dessa forma, não se pode tolerar uma revolução que, para os conservadores como Burke, se trata de um momento de rompimento com as estruturas já estabelecidas e "maduras" de determinada sociedade que não são ações arbitrárias, mas culturais, fruto de discussões amplas, das leis e da tradição.

Em uma revolução há vários grupos e pessoas, inclusive agindo por meio da violência, lutando para transtornar arbitrariamente toda a organização social pré-existente, isso, para Burke, é errado e imoral, porque favorece a arbitrariedade e, ademais, é um equívoco porque as revoluções sempre se propõem modelos para todos os povos, algo impossível na visão do filósofo porque os povos são diferentes devido a sua cultura e costumes.

Immanuel Kant
Na Filosofia clássica se têm alguns exemplos de autores famosos considerados "conservadores" como o próprio Edmund Burke, George Hegel e Immanuel Kant. O pensamento desses autores endossa a tradição das instituições políticas, econômicas, sociais que – para eles – tem por essência defender a ordem social, consequentemente, manter as classes sociais dentro de fronteiras bem distintas e propagar que o Estado deve, de alguma forma, ser preponderante sobre o indivíduo por ser aquele não uma manifestação qualquer, mas a solidificação de toda a vontade soberana de um povo e de suas tradições.

O conservadorismo político, de forma geral, não aceita a intervenção do Estado na economia, pois pensa que a economia deve, também enquanto instituição social, se mover por si mesma de acordo com os agentes que nela operam. Em suma, o Estado não representaria, na visão conservadora, indivíduos, mas grupos; ele seria a síntese de outras instituições, por isso Burke simpatizava com a parte do programa do partido que propalava o liberalismo econômico.

Edmund Burke e o conservadorismo

Edmund Burke nasceu em 12 de janeiro de 1729 em Dublin na Irlanda e faleceu em 9 de julho de 1797 em Beaconsfield na Inglaterra. Este autor do campo da Filosofia Política foi um parlamentar e pensador político do século XVIII que desempenhou importante papel nos principais temas políticos por cerca de 30 anos depois de 1765. Burke era irlandês, o pai era advogado protestante e sua mãe uma católica praticante. Burke ingressou no Trinity College, em Dublin, em 1744 e foi para Londres no ano de 1750. Em 1757 ele se casou com Jane Burke Nugent, a filha de um médico católico irlandês.

Edmund Burke

A carreira política do filósofo iniciou-se no ano de 1765, quando se tornou secretário particular do marquês de Rockingham. Desde o início, Burke se envolveu na controvérsia constitucional na Grã-Bretanha sob o governo do rei James III, que na época estava tentando estabelecer um poder mais incisivo para a coroa e, por isso, enfrentava descontentamentos severos por parte dos colonos britânicos nos territórios de além-mar, especialmente na colônia norte-americana da Grã-Bretanha. Burke se preocupou com estes temas em sua filosofia política dando razão a algumas alegações dos colonos americanos que se negavam a pagar impostos para a Inglaterra cuja criação e cobrança não tinham chance de debater e impedir no Parlamento Britânico por não terem lá representação concreta, e os americanos alegavam tal direito porque embora colonos, eram ingleses também.

O autor discorreu longamente sobre o tema no panfleto "Thoughts on the Cause of the Present Discontents" de 1770, no qual argumenta que, embora as ações de James tivessem bases legais porque não estavam contra a Constituição, elas foram infelizes porque iam contra o espírito liberal britânico. Nesse mesmo panfleto Burke elabora uma nova definição de partido político: "[...] o Partido é um grupo de homens unidos para a promoção, pelo seu esforço conjunto, do interesse nacional com base em algum princípio com o qual todos concordam" (BURKE. 1982b, p. 29).



A principal polêmica que afligia os políticos e a monarquia britânica naquele ano era a questão do tratamento dispensado às Colônias de ultramar. O filósofo argumentou a respeito que o governo britânico tinha agido de forma imprudente e até mesmo pouco consistente para dirimir os problemas. Na concepção de Burke, a forma de a Grã-Bretanha tratar a questão colonial era estritamente legal, porém não moral.

Para Burke, os britânicos precisavam oferecer mais respeito e consideração pelas reivindicações dos colonos da América do Norte. O autor chamou a isso de "razão legislativa" em dois de seus discursos parlamentares sobre o assunto, um chamado "On American Taxation", de 1774; e o outro de "On Moving His Resolutions for Conciliation With America", de 1775 (BURKE, 1982b). Mesmo assim, a política imperial britânica seguiu não sabendo resolver os problemas com suas colônias.

As ideias de Edmund Burke

As ideias de Edmund Burke estão espalhadas em discursos no Parlamento Inglês, cartas e em alguns opúsculos. Em termos políticos uma de suas obras mais conhecidas é: "Reflexões sobre a revolução na França e sobre o comportamento de certas comunidades em Londres relativo a esse acontecimento" de 1790. Traduzido no Brasil em duas versões: "Reflexões Sobre a Revolução na França", traduzido por Francisco Eduardo Alves e publicado pela editora Topbooks e "Reflexões sobre a Revolução em França" [1790], editora da UnB.

Para entender as "Reflexões sobre a Revolução em França" é imprescindível compreender um pouco da vida política e algumas das razões que o levaram a escrever o livro. Burke, particularmente, mantinha certa "aversão" ao exercício do chamado "poder arbitrário". Assim, o objetivo da obra é, antes de tudo, criticar os defensores ingleses da Revolução Francesa, entre os quais estava o pastor dissidente da Igreja Anglicana, Richard Price (1723-1791), defensor da liberdade de pensamento e do ideal de governo do "povo pelo povo".

Parlamento Britânico

As Reflexões são apresentadas inicialmente como resposta a um sermão de 4 de novembro de 1789, feito pelo pregador por ocasião da comemoração do centenário da Revolução Inglesa, no qual Price exaltava a luta dos revolucionários franceses. Essa obra também estabelece o rompimento político e ideológico com os Whigs. Burke, avesso à arbitrariedade no exercício do poder, considerou o que acontecia na França como a encarnação daquele. Preocupado também com o que poderia acontecer na Inglaterra após a chegada das notícias sobre a Revolução na França, o filósofo tenta, no livro, mostrar os malefícios que algo semelhante traria a seu país, pois ele sabia que na Inglaterra havia muitos simpatizantes da Revolução Francesa. É por isso que essa obra de Burke é um marco histórico, pois ele é o primeiro filósofo que se propõe analisar o processo revolucionário da França e por isso é tido como o "pai" do conservadorismo.

Burke era também um cristão conservador e é por isso que ele projeta suas crenças igualmente na política. Suas obras são, antes de tudo, a reação de um cristão conservador à política revolucionária que se espalhava pelo mundo. Ele acreditava que a monarquia deveria existir (e que de fato existia) devido também ao poder divino. Para ele, a religião pode ser considerada a base da sociedade civil e a fonte de todo bem e de toda felicidade dos homens (BURKE 1982a, p. 112-113). Ele advoga que o homem é, por natureza, um animal religioso; o ateísmo não só é contra a razão, mas é contrário aos nossos instintos mais elementares (Idem). "A religião é não só a fonte de nossa glória e do nosso orgulho, isto é, é a fonte da glória e do orgulho dos ingleses, mas é também fonte de grande civilização entre nós e de muitas outras nações" (BURCKE, 1982a; 2004).

Assim, qualquer mudança sem discussão, sem levar em conta a cultura de determinado povo, e, especialmente, a vontade de grupos (e na visão de Burke a vontade de um grupo está acima da vontade dos indivíduos particulares que o compõem) é imoral porque busca o poder pelo poder como satisfação não da política ou da vontade da maioria, mas está cooptado pela vontade de líderes "vaidosos".

Burke via na manutenção de instituições já consagradas como a família, o Estado, a Igreja, os costumes – a garantia de continuidade da sociedade e de sua harmonia. O autor não era radicalmente contra "mudanças", mas defendia que elas acontecessem em escalas que deveriam ser amplamente discutidas por grupos e confrontadas no Parlamento. É por isso que ele critica veementemente o Estado revolucionário. A Revolução, segundo ele, era uma prática contra as esferas legitimadas pela autoridade e pela vontade dos grupos em prol da vontade particular, e por isso ilegítima, de poucas pessoas que se autoafirmavam como portadoras da verdade.

Burke não admite mudanças na sociedade?

Para Burke, partindo da ideia que cada sociedade é diferente porque tem culturas e leis diferentes, qualquer proposta de revolução realizada por um determinado povo não pode servir de modelo para todos os outros. Além disso, Burke considera que não se pode partir da premissa que a política seja feita apenas com a razão e por entes que têm a razão a plenos poderes, o homem é também formado por sentimentos. O autor leva em consideração o fato que na política nem sempre as decisões são racionais, mas elas estão ligadas às necedades diretas dos indivíduos em determinado período histórico, porém Burke não admite, com isso, que então a história seja a grande determinante da vida dos indivíduos, o que ele admite é que a história está ligada à natureza e que, portanto o que acontece com a vida humana e as suas instituições, é "natural" e não deve ser questionado, muito menos por revolucionários que tentam estabelecer uma "contraordem" social e, por isso – por ser um "transtorno" das convenções estabelecidas ao longo do tempo – é que são antinaturais.

Se os princípios da Revolução estão inscritos em algum lugar, certamente, este lugar será o estatuto chamado Declaração de Direitos. Nesta declaração cheia de sabedoria, moderação e prudência, elaborada por grandes juristas e grandes estadistas, e não por mornos e inexperientes entusiastas, não há nenhuma palavra, nenhuma alusão que se relacione a um direito geral de escolher nossos próprios governantes, de depô-los por indignidade e de estabelecer um governo para nós mesmos (BURKE, 1982a, p. 57).

Com tal postura, pode-se inferir porque Burke é considerado um político aristocrático e conservador. Em política ele defendia a monarquia e a autoridade do Rei, porém o Rei reina, mas não governa porque é limitado pelos poderes do Parlamento.

Ao analisar a "Assembleia" estabelecida na França pós-revolucionária ele critica abertamente o que chama de "abolição das ordens", pois sem a ordem social não há nada que a possa frear o exercício do poder (BURKE, 1982a; 2004).

[...] a França tivera a possibilidade de aproveitar o exemplo britânico, de ter: uma Constituição livre, uma monarquia poderosa, um exército disciplinado, um clero reformado e venerado, uma nobreza menos orgulhosa, mas mais digna, capaz de lhes ensinar a virtude e não de abafá-la, uma burguesia liberal imitando esta nobreza e oferecendo-lhes recrutas, um povo, enfim, protegido, satisfeito, laborioso e obediente, habituado a procurar e a apreciar a felicidade (BURKE, 1982a, p. 72).

A Grã-Bretanha, para ele, se tratava do modelo a ser seguido e a França, em sua visão, tomara o "caminho errado" porque: "os franceses possuíam todas estas vantagens em seus antigos Estados [...], mas preferiram agir como se nunca tivessem sido moldados em uma sociedade civil, como se pudessem tudo refazer a partir do nada" (ibid., p. 71).

Por fim, para Burke o que garantiria a liberdade de um povo é a existência de um Rei e de um Parlamento. Ele abominava, assim, o argumento sobre a existência de "direitos inatos". Para ele a liberdade deveria ser conquistada e a classe que mais tinha, naturalmente, conquistado a liberdade (e a merecia) era a aristocracia, para ele era essa classe que garantiria a ordem social. É por aí também que ele aproveita para criticar o ceticismo racionalista do cientificismo francês adotado pelos revolucionários do continente que, segundo ele, traria mais dúvidas (ao questionar as autoridades e seu poder) do que certezas – e as certezas segundo ele – são imprescindíveis para um bom governo e para a manutenção da ordem.

Para Burke a herança é uma manifestação da natureza e se a manutenção da aristocracia se dá por herança, sua extinção pode ser vista como uma usurpação. Assim, a exclusão do povo da vida política e a submissão ao rei e à aristocracia são sentimentos naturais e muito antigos ligados aos ancestrais que devem ser preservados. Para o autor, o que não é natural é a indignação dos revolucionários e a igualdade que poderia subverter a ordem das coisas acabando com um hábito criado naturalmente pela história. Portanto, as transformações, mesmo que lentas, são naturais e a declaração dos direitos do homem, a supressão da nobreza, a nacionalização dos bens eclesiásticos e todas as demais alterações trazidas pela Revolução Francesa demonstram a pressa e a desconfiança dos políticos franceses quanto à marcha da natureza. Ou seja, Burke alega que questionar a ordem estabelecida pelos ancestrais, pela cultura, pelos costumes é antinatural e levará o Estado à ruína o que, consequentemente, levará, também, a civilização e o homem à destruição. Eis os motivos que fizeram Edmund Burke se tornar um filósofo conservador.

REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

FERNANDES, Francisco et al. Dicionário Brasileiro Globo. São Paulo: Globo, 1992.

FURET, François. Penser la Révolution française. Paris: Gallimard, 1978.

BURKE, Edmund. Reflections on The Revolution In France And On The Proceedings In Certain Societies In London Relative to that Event In a Letter Intended To Have Been Sent To a Gentleman In Paris. 1790. Disponível em:< http://portalconservador.com/edmund-burke>, 2004. Acesso em: 25 de agosto de 2014, 12:45:43.

______. Reflexões sobre a Revolução em França [1790]. Brasília: Ed. UnB, 1982a.

______. Thoughts In The Cause Of The Present Discontents (1770). In: CHARLOT, Jean. Os Partidos Políticos. Brasília: UnB, 1982b.

SCHILLING, VOLTAIRE. A revolução é salva. Disponível em: <http://educaterra.terra.com.br/voltaire/mundo/rev_francesa_dois4.htm>. Acessado em: 04 de agosto de 2014, às 15:09:45.




quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

FREUD E A EDUCAÇÃO



Prof. Gerson Nei Lemos Schulz






Como é de domínio público, Sigmund Freud (1856-1939) foi o criador da Psicanálise. Apesar de não ter se dedicado especificamente ao campo da escolarização (GADOTTI, 2005), ele deu significativa contribuição para este ao descrever o fenômeno da "transferência".

Freud conceitua a transferência ao afirmar que: "transferências são reedições, reduções das reações e fantasias que, durante o avanço da análise, costumam despertar-se e tornar-se conscientes, mas com a característica de substituir uma pessoa anterior pela pessoa do médico" (FREUD, 1969a, p. 109-19). O autor descobre que no consultório, em alguns casos, havia a transferência de relações dos pacientes com outras pessoas que não o analista. Ocorria uma situação que era como se o terapeuta, naquele momento da sessão psicanalítica, se tornasse o "objeto", a pessoa com quem o analisando tivesse, originalmente, estabelecido a relação de conflito ou de amorosidade anterior ao tratamento.

Freud descobre que as atitudes emocionais – fundamentais para o futuro comportamento do indivíduo em sociedade –, são definidas desde a primeira infância a partir do relacionamento da criança com suas figuras parentais (FREUD, 1996e). É nesse momento que se estabelece "a qualidade e a natureza das relações da criança com as pessoas do seu próprio sexo e do sexo oposto. Todas as pessoas que vem a conhecer mais tarde tornam-se figuras substitutas desses primeiros objetos de seus sentimentos" (FREUD, 1969b, p. 248). Logo, sob o ponto de vista da psicanálise freudiana, a transferência exibe o tipo de laço social que se construiu no ambiente familiar da criança.

Freud também fez descobertas quanto ao desenvolvimento mental – dentro do processo de fetalização humano – e o dividiu em cinco fases: 1) a fase oral (de 0 a 1 ou 2 anos) em que a boca predomina, especialmente quando a criança está sugando o leite materno que para ela é um prazer, onde a mãe é o objeto do prazer, onde é prazeroso "comer" a mãe, o corpo da mãe, onde a língua é um estímulo para conhecer o mundo. 2) A fase anal (dos 2 aos 4 anos) em que a criança, na descoberta do seu próprio corpo (suas possibilidades e limites) experimenta a sensação de "trancar", manipular as excreções como as fezes e a urina. 3) A fase fálica (de 3 a 5 anos) em que a criança aprende a se tocar, descobrindo os centros erógenos, os órgãos genitais, os centros de prazer, descobrindo uma de suas possibilidades na futura vida adulta. 4) O período de latência (de 6 aos 10 anos) em que a sexualidade fica "latente", ela não desaparece, mas não é um momento de tanto interesse pela mesma. 5) E, finalmente, a fase genital (de 12 aos 18 anos), em que o indivíduo descobre sua expressão sexual, suas capacidades reprodutoras, sua possibilidade de ter prazer sexual com a autoerotização (masturbação) ou com a descoberta do sexo propriamente dito (FREUD, 1996e; 1996c).

Em termos sexuais, a psicanálise também parte de dois pontos de vista: o "complexo de Édipo" e a "Castração". O "Complexo de Édipo" se dá depois do desmame, em que o menino sente atração libidinal pelos membros do sexo oposto da própria família, geralmente a mãe – rivalizando com o pai – e a menina sente, da mesma forma – tal atração, mas pelo pai, sendo a mãe sua 'rival'. O medo da Castração surge devido ao medo de ser reprimido por sentir esse desejo pela mãe ou pelo pai (incesto). Freud teoriza que o medo da "Castração" é importante para amenizar e equilibrar o desejo libidinal da fase edipiana, mas é aí nesse momento, também, que podem ser originar a maioria das neuroses da idade adulta porque, em algumas pessoas, ocorre a "fixação" (FREUD, 1996b) em alguma dessas fases (o que pode se tornar patológico), por exemplo, indivíduos com fixação na fase anal podem ter a tendência à esquizofrenia. Mas para tal é preciso ter em mente que, de acordo com a teoria psicanalítica, não somos seres apenas racionais, vivemos também sob a égide dos instintos e sentimentos e somos seres que agem de acordo com seus próprios interesses. Nesse sentido é possível inferir das obras da psicanálise que somos egoístas e, mesmo sendo altruístas ao ajudar ao próximo, ainda assim fazemos isso porque, de certa forma fazer tal ação nos dá prazer e prazer é o princípio básico que nos move (FREUD, 1996a). Então, a partir daí ousamos dizer que somos "todos um pouco neuróticos", uma vez que sempre teremos algum desejo que não conseguiremos satisfazer e teremos de reprimi-lo. E essa repressão aflorará em algum outro momento de nossas ações e interferirá nas nossas escolhas conscientes e muitas vezes causarão desconforto. Assim Freud (1996d) assinala que todas as relações são permeadas por energias psíquicas que vem de uma região obscura e inacessível de nosso encéfalo, da região inconsciente ou subconsciente já que na visão da psicanálise o psiquismo humano está dividido em três estruturas básicas: o Id (do latim isto) subconsciente, fonte das pulsões, o Ego (do latim, eu), parte central da personalidade, responsável pelo pensamento consciente, lógico e racional, e o Superego (acima do eu), constituído pela moralidade e pela autocensura (FREUD, 1996d).



Para evitar as neuroses, especialmente, e a partir dos pressupostos acima e nossas leituras da obra de Freud ousamos pensar uma prática educativa sem o uso da violência, respeitando os alunos, pensar a relação entre a psicanálise e a educação.

A psicanálise nos mostra que a relação pedagógica não se resume ao planejamento, ao método de ensino, nem ao conhecimento da capacidade intelectual dos alunos. Os preceitos psicanalíticos tentam desvendar "o mundo oculto e subjetivo" que existe em cada um dos agentes educativos, pois admite que cada um deles sofre as pressões causadas por seus desejos reprimidos.


Sobre a "teoria da transferência" o próprio Freud (1969b) afirma que, da mesma forma que ocorre com o paciente no consultório, um aluno ou aluna é capaz de "transferir", na vivência com o professor – para este – simpatias e antipatias que, provavelmente, não existam na relação ou ainda antes mesmo de se estabelecer qualquer relação com o professor além da visual durante uma aula. Um exemplo típico é quando um aluno vê, conversa ou apenas assiste a uma aula de determinado professor na escola ou na faculdade e internamente não simpatiza com o mesmo, sem nunca tê-lo visto antes na vida.

Para Freud o aluno está propício a despertar pelo professor uma série de sentimentos (e vice-versa): amor e ódio ou censura e respeito. Há forte tendência do educando em ver no professor o "pai" e na professora a "mãe" ou os irmãos e as irmãs e tentar estabelecer com estes(as) as mesmas relações (conflituosa ou não conflituosa).


Longe da possibilidade de escolha do professor, este é alvo do que Freud chama de "herança sentimental". Isso se caracteriza pelo fato de os alunos "interpretarem" as características dos professores e construírem uma "interpretação" que pode ser ilusória.

Freud também discutiu a respeito da repressão sexual no âmbito escolar. O pai da psicanálise via no mundo adulto muitos desajustes provenientes de conflitos e frustrações que provinham da infância, especialmente os fenômenos ligados à sexualidade infantil. Para ele, a psicanálise não apresentava "dificuldade" em explicar sentimentos contraditórios que os seres humanos sentem, inclusive a psicanálise freudiana chama este fenômeno de "ambivalência". Em função dela temos a capacidade de amar e odiar, respeitar e criticar ao mesmo tempo.


Assim Freud constrói uma "imagem" do processo educativo que, podemos afirmar, é a intenção coletiva de modelar os jovens de acordo com os mais velhos. Ela é o "agente transmissor do princípio da realidade" frente ao princípio do prazer.

Em termos pedagógicos, pensamos que o professor que se orientar pela teoria psicanalítica em sala de aula não se preocupará apenas em ministrar um tipo de aula que transmita conteúdos, mas também em observar as reações dele e dos alunos sobre o conteúdo abordado, sobre as práticas pedagógicas, sobre a avaliação por ele praticada, pela interação entre os alunos e ele e entre os próprios alunos entre si. Ao agir assim, ele poderá interpretar para entender o que há por trás dessas reações, ou seja, descobrir que desejos estão sendo reprimidos e liberados pelos alunos e por ele enquanto professor, e um método para isso é valorizar a liberdade de expressão na sala de aula.


Um docente que se guie pela psicanálise sabe que o conhecimento é permeado pelo desejo. Sabe que a assimilação de um dado tipo de conhecimento não possui somente o aspecto intelectual, possui também o aspecto emocional que é, em grande parte inconsciente. Isso explicaria porque alguns alunos gostam mais de determinada disciplina ou conteúdos do que outros. Porque um aluno ou outro gosta mais de um professor que de outro. A origem dessas situações é desconhecida até hoje, inclusive pela neurociência, que ainda trabalha com o conceito de "inconsciente" freudiano para teorizar sobre tal fato.

Por outro lado, o leitor pode estar se perguntando: "então se eu, como professor, quiser tomar por base a psicanálise em sala de aula terei que agir como um psicanalista da turma? A resposta é "não". Por isso é preciso ter cuidado para que entendamos bem o que Freud e sua psicanálise sugerem em relação ao professor e a educação. A ideia não é que o docente seja o psicanalista de seus alunos, e sim que ele seja uma pessoa atenta para o fato de que ensinar não depende somente de conhecimentos teórico-metodológicos ou de uma boa erudição professoral. O que a teoria freudiana faz é mostrar ao educador que existem limitações nos processos pedagógicos para que ele possa impor menos o autoritarismo das teorias pedagógicas, menos seu próprio autoritarismo, suas concepções de mundo como se fossem as únicas e também seus preconceitos; construindo, assim, uma relação com os alunos de compreensão, de aceitação de concepções contrárias as suas e até de comportamentos desde que se restrinjam (estes comportamentos) ao limite do tolerável (que não cause a desintegração do grupo), por exemplo: o que fazer com um aluno violento? Certamente não "tolerá-lo" desta forma, mas procurar saber se a origem desse comportamento se deve à resistência dele em relação ao processo pedagógico, às avaliações, ao grupo, à pessoa do professor ou se ela tem outra causa como a relação familiar, por exemplo.

Para concluir, o professor que partir desses princípios pedagógicos terá que levar em consideração diversas variáveis (e muitas delas latentes ou com origem desconhecida) que interferem no processo de aprendizado dos alunos ou em seus comportamentos em sala de aula, no trato com outros colegas e com o próprio professor. Esse professor terá que ter também liberdade para criar outros métodos, outras perspectivas de ensino que levem em consideração que o sucesso ou o fracasso de alguém na vida escolar tem sua causa mais nas relações interpessoais do que em metodologias de ensino ou materiais didáticos. É claro que essa atitude docente teria pouco efeito prático se em uma turma escolar, apenas um professor agisse assim. Pensamos que uma experiência dessa magnitude teria que ser praticada por toda uma escola ou por toda uma rede de ensino, mas daí talvez surja outro ponto a ser trabalhado, a perspectiva dos conflitos interpessoais, especialmente em crianças e adolescentes que, em sua maior parte não diferenciam as origens desses conflitos (às vezes nem percebem que estão em conflito consigo ou com outras pessoas) porque tais conflitos podem também ter origem fora da escola, na família. Provavelmente um trabalho cujos resultados não fossem contraproducentes ou pedantes teria que, de alguma forma, envolver também as famílias no ambiente pedagógico, não como auxiliares – o processo de escolarização ainda cabe ao professor – mas como agentes de apoio a crises que – às vezes – estão além do poder de resolução da escola e dos agentes públicos em geral.


Referências:


FREUD, Sigmund. Além do Princípio do Prazer [1920]. In: Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996a.

______. Conferência XVIII: fixação em traumas – o inconsciente [1916]. In: Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. XVI. Rio de Janeiro: Imago, 1996b.

______. A dissecção da personalidade psíquica [1933]. In: Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. XVII. Rio de Janeiro: Imago, 1996c.

______. O eu e o isso. In: Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1996d.

______ A Organização Genital Infantil. In: Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1996e.

______. Pós-escrito do caso Dora. In: Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1969a.

______. Algumas reflexões sobre a psicologia do escolar. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XIII. Rio de Janeiro: Imago, 1969b.

GADOTTI, Moacir. História das ideias pedagógicas. São Paulo: Ática, 2005.