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terça-feira, 25 de agosto de 2015

A ILUSÃO DA MAIS-VALIA




Gerson N. L. Schulz
Professor de Filosofia no Brasil




Apiacás com João Ramalho - SP
Foto do arquivo pessoal de Gerson Schulz

Era julho de 2015, meio dia. Eu estava tomando um café com sanduíche num bar popular na esquina da rua Apiacás com a João Ramalho, nas Perdizes, em São Paulo. Estava calor. Apesar de ser inverno, o dia estava ensolarado e com nuvens esparsas.

Eu admirava – com a perspectiva de um cliente – a destreza e a rapidez com que o garçom preparava lanches, servia coxinhas, pães de queijo, aquecia esfirras no micro-ondas e, quase ao mesmo tempo em que cortava laranjas para espremer e preparar o suco que eu havia pedido, conversava com seus clientes conhecidos que iam chegando para o almoço. Outro colega dele cortava limões para preparar bebidas. Outro cozinhava atrapalhado pelos vapores quentes que saiam das panelas.

De repente as mesas vazias se encheram rapidamente. Duas mulheres jovens, com uniformes azuis que pareciam ser comerciárias, solicitaram sanduíches para levar. Induzi que estavam em horário de almoço e não teriam sequer tempo para comer ali.

Os trabalhadores no bar Nova Lisboa - SP
Foto do arquivo pessoal de Gerson Schulz


Havia umas trinta mesinhas de quatro lugares naquele estabelecimento que rapidamente ficaram cheias. As pessoas que as ocuparam não eram muito diferentes. Eram, na maior parte, pessoas vestindo uniformes. Entregadores de gás, vendedores, operários de fábrica e oficinas mecânicas, garis. E eu estava lá e, por um momento, me perguntei: o que fazia ali? Uma vez que aquele não era meu universo!

Não por preconceito, mas porque não sou paulistano, não sou operário de serviço pesado e não deveria estar comento sanduíches gordurosos de boteco que fazem mal para a saúde de qualquer um, mas foi circunstancial...

O mais estranho era estar ali pensando que não devia estar ali e analisando, ao mesmo tempo, as cenas. Pensava sobre quem eram aquelas pessoas e como suportavam sua rotina de trabalho. Então me lembrei de Karl Marx (1818-1883) que afirmava que o capitalismo era nefasto porque espoliava os trabalhadores, ao explorar o único bem que eles têm, sua força de trabalho.

A teoria de Marx diz que os donos dos meios de produção (os capitalistas), detêm o capital e como eles detêm os modos de produção (as máquinas, os implementos, as terras e etc.), eles pagam o salário ao trabalhador que, em troca, vende sua força de trabalho (barata) ao capitalista. Barata porque, para Marx, ninguém ganha o quanto merece!

Assim, na esteira de Marx, eu me perguntei, por exemplo: em quanto tempo um pedreiro, um entregador de mercadorias, um motorista, um lixeiro, um empregado qualquer daqueles ali, naquele dia, precisava trabalhar para produzir seu salário?

Marx, em "O Capital", calculou que o tempo da metade de um dia é o tempo necessário que qualquer operário leva para produzir a riqueza para o capitalista pagar o seu salário. Dessa forma, o restante do dinheiro do tempo trabalhado (da outra metade do dia), fica com os donos dos meios de produção. A esse excedente Marx chamou de "mais-valia".

Por isso, de acordo com Marx, quando a classe trabalhadora tomasse consciência dessa espoliação – do fato de que o patrão fica com o resto da produção de um dia de trabalho e com a produção de todos os outros dias de trabalho do mês inteiro, faria uma revolução e tomaria para si os meios de produção. Momento em que deixariam de existir as classes sociais e adviria o regime socialista. As fábricas e os comércios iriam para as "mãos" de seus "donos legítimos", os trabalhadores; e a exploração desapareceria da face da Terra porque se acabariam as classes sociais, desapareceriam ricos e pobres.

Mas hoje essa teoria soa romântica e me soou também quando eu olhei para aquelas pessoas no bar da esquina da Apiacás com a João Ramalho. As mãos endurecidas, a conversa sobre um de seus maiores lazeres (futebol), mas também sobre o quanto já tinham trabalhado naquela manhã antes do almoço. Suas vidas rotineiras que tinham por objetivo ganhar seu salário para pagar aluguel, alimentos, transporte, roupas, mandar os filhos para a escola, certamente ruim, da periferia onde moram.

Trabalhadores do Brasil! Gente que passa (como em São Paulo) horas dentro de ônibus e metrôs lotados, em pé, suados! Será que sonham? Perguntei-me naquele meio dia. Sonham, sim, pois em uma mesa havia um trabalhador que sonhava em comprar um par de alianças a prestações e se casar.

É, mas a utopia de Marx e Engels não aconteceu em lugar algum. Nem nos países do Leste europeu houve o fim das classes sociais nem na ilha dos Castro e nem na Ásia. O que ocorreu e ocorre é uma experiência malfadada de fascismo sob a alegada "ditadura do proletariado" em Cuba, na China, Camboja, Vietnã e em outros lugares do mundo. A "ditadura do proletariado" de Marx (esse domínio da sociedade por parte dos trabalhadores e o fim das classes sociais) é um sonho que, na prática, se transformou em pesadelo para milhões no mundo real pela falta de liberdade, de democracia, pela insistência na ideia de economia planificada dos socialismos! E, na antiga União Soviética, até por escassez de alimentos e produtos de primeira necessidade.

Mas a minha principal reflexão ali sentado junto àquele balcão de bar foi sobre o grau de justiça que há (ou não há) nos argumentos de Marx quando ele se preocupa com os trabalhadores. Então lembrei que se tem um grande problema em seus argumentos quando ele fala da mais-valia e lembrei também de um autor chamado Eugen Von Böhm-Bawerk (1851-1914) e de outro chamado Ludwig von Mises (1881-1973) que, separadamente, refutaram Marx e mostraram porque a mais-valia é um argumento falacioso.

Para ambos, Marx não considerou que o capitalista tem que investir na produção, nas máquinas, nas matérias primas e pagar os salários dos empregados, tudo isso antes de receber o possível "lucro". Na prática, não há qualquer garantia de que o empregador receberá aquilo que investiu e mais um pouco (o capital necessário para continuar mantendo a produção). Assim, mesmo que o trabalhador fosse explorado e oprimido, ele já recebeu seu salário antes mesmo do capitalista iniciar a venda de suas mercadorias. Mas há exploração?

Eu penso que Marx acusa os capitalistas de apenas explorarem os trabalhadores, mas não diz que os capitalistas também precisam trabalhar, senão braçalmente, intelectualmente – realizando negócios para vender seus produtos a outros capitalistas, viajar para encontrar matérias-primas mais baratas, investir, se arriscar no mercado e pagar os impostos que os governos exigem para permitir que alguém inicie um negócio.

A teoria de Marx me levou a um exemplo incomum, mas não impossível. Vamos imaginar um pequeno produtor rural que tem um sítio onde produz hortaliças juntamente com sua família (esposa e filhos). Esse pequeno produtor precisa conseguir a terra (que pode ser sua por herança ou pode ser arrendada). Para produzir, ele precisa comprar as sementes, o adubo, os herbicidas, irrigar a lavoura. Suponhamos que em determinado período a safra foi maior do que ele pôde colher com a ajuda de seus próprios braços, da esposa e filhos e ele precise contratar um empregado para ajudá-lo. Ele negocia com o empregado um valor de $ 50,00 dinheiros por dia de serviço e lhe paga ao final da semana o combinado, ou seja, $ 250,00 dinheiros. Esse trabalhador, embora tenha trabalhado de segunda-feira a sexta-feira, ao fim da semana terá recebido seu pagamento, o pequeno produtor, não. Ele terá que esperar até o dia da feira-livre (no sábado) na cidade (onde geralmente ele vende seus produtos). Transportá-los (e com isso gastar tempo, combustível, dinheiro para alimentação de sua família durante o período de estadia fora de casa e etc.), e ainda torcer para conseguir vender todas as hortaliças na feira-livre. Ele assume algo que o trabalhador não pode assumir devido sua condição (e não assume porque não precisa), o risco.

O feirante poderá ou não conseguir vender todos os seus produtos. E mais, e se os outros concorrentes feirantes também tiveram superprodução naquele período? Isso significa que o preço das hortaliças, devido a grande oferta, será menor que na safra anterior, o lucro corre, assim, o risco de ser menor.

Ao seguir o raciocínio do feirante que contrata um empregado, seria possível dizer que um gerente de banco privado é um "oprimido" porque recebe salário e o pequeno produtor rural é um capitalista, algo que é um disparate porque um gerente de banco detém um poder de compra muito maior que o pequeno produtor rural.

Tênis de marcas famosas
fabricados em países que usam mão de obra
sabidamente escrava ou semi-escrava
como Cambodia e Vietnã
Fonte: arquivo pessoal de
Gerson Schulz

Mises aponta que, de acordo com Marx, todos os bens são fruto apenas do tempo gasto para produzi-lo e do trabalho do operário. Em outras palavras, Marx diz que uma mercadoria custa, por exemplo, $ 10,00 dinheiros apenas porque nela o trabalhador empregou um tempo socialmente gasto para produzi-la, mas há, para Mises nessa premissa, um erro. Nenhum produto vale apenas pelo tempo socialmente gasto pelo trabalhador para fabricá-lo. Pois se fosse assim, como poderíamos comparar o trabalho de um escultor com o trabalho de alguém que limpa a sarjeta? As pessoas pagam muito mais pela arte do escultor (como também pagam por uma garrafa de vinho caro ou por um quadro) do que a um faxineiro ou jardineiro que limpe suas casas ou gramado e, ao contrário do que diz Marx, isso nada tem que ver com o tempo socialmente gasto para produzir uma mercadoria ou prestar um serviço. Isso tem que ver com a relação psicológica que as pessoas mantêm com as mercadorias.

Marx também afirma em "O Capital" que a exploração existe porque a mercadoria rende ao capitalista muito mais além dos valores que ele gastou para produzi-la, mas Mises faz notar que ele esquece que a forma como as mercadorias são consumidas se transforma ao longo do tempo (e um dos fatores que lembro para mudar isso é a inflação), de forma que o preço de uma mercadoria hoje não será o mesmo amanhã. Marx, aqui, toma a parte pelo todo e quer forçar a conclusão a se tornar universal, mas ela continua valendo apenas para o âmbito particular.

O preço da mercadoria no mercado do futuro poderá ser maior, gerando mais dinheiro ao capitalista, mas também poderá ser, por infortúnio, menor, caso não seja vendido rapidamente. Isso, faço lembrar, sem abordar as mercadorias que são perecíveis e que precisam ser consumidas logo, mas que nem sempre são.

Marx comete outro erro quando, ideologicamente, quer instaurar o socialismo ao dizer que a exploração é a essência do capitalismo e por esse motivo ele deveria ser abolido. Isso não é verdade de acordo com um raciocínio simples e empírico. Suponhamos que um empresário que deseja abrir uma fábrica de sapatos faça o seguinte cálculo: "para abrir a fábrica eu (o empresário) preciso saber se ela dará lucro (do qual parte eu investirei na produção, parte pagarei os salários dos empregados e parte ficará para mim a fim de me sustentar juntamente com minha família). Como eu faço isso?" Ao fazer um exercício simples, por exemplo, suponha-se que para produzir um par de sapatos eu gaste $ 50 dinheiros. Para fazer esse cálculo é preciso saber ao menos os preços das matérias primas, o salário (em média) que terei que pagar a cada empregado participante do processo de produção, os meios de produção, seu desgaste natural e as matérias de produção auxiliares, preço das instalações, aluguéis e outros.

O outro fator é o capital variável que é a parte do capital usada pelo empresário para pagar os salários. O que Marx fez foi calcular o custo de produção e subtraí-lo do preço final do produto. Ele percebeu que ambos não eram iguais, pois havia um valor que aparecera como que por "mágica" sobre o produto. A esse produto, ele chamou "mais-valia". Porém, se na prática o empresário que quer montar uma fábrica de sapatos fizer o cálculo e, supomos que o cálculo apresente o resultado positivo de lucro como $ 20,00 dinheiros e eu somar a isso os $ 50,00 dinheiros, eu terei $ 80,00 dinheiros. O que Marx questiona é o surgimento dos $ 20,00 dinheiros e ele afirma que esse "plus" é força de trabalho não paga pelo capitalista e que é produzida pelo trabalhador. Isso na prática não é verdade porque nem sempre se terá $ 20,00 dinheiros para pagar o trabalho do assalariado, isso vai depender de uma série de condições independentes da vontade do capitalista como intempéries, custos de transporte, armazenamento; no caso dos sapatos, a moda, as tendências e etc. Outra variável que eu acrescento é o fato que todo empreendedor sabe, que por meses ou anos uma empresa costuma não dar lucro e, muitas vezes, o empreendedor tem que recorrer a empréstimos para cobrir até mesmo custos de produção ou salários. De certa forma, a mais-valia pode ocorrer, mas ela não é uma regra como Marx postulou, ela é uma exceção dentro do sistema capitalista.

Outro argumento que pode rebater a crítica marxiana à exploração capitalista quanto à mais-valia (considerando que Marx afirmou que o aumento da riqueza se dava em relação à exploração dos trabalhadores) é o fato empírico de que, nos dias atuais, percebe-se que as empresas que mais têm lucro no mercado não são aquelas que dispõem de grande montante de empregados (cuja força de trabalho, supostamente, geraria mais-valia para o capitalista), mas sim as que dispõem de poucos empregados.

Ora, se são as empresas que dispõem de poucos empregados que mais dão lucro, não tem sentido o argumento de Marx porque se demonstra aí que o capital gerado não advém de uma suposta exploração do trabalho do operário, o lucro tem, isto sim, outra fonte.

Nessa perspectiva, está certo, em parte, Böhm-Bawerk quando diz que "os socialistas desejam que os trabalhadores recebam mais do que trabalharam" e "mais do que receberiam se fossem empresários".

Eu divagava – sozinho ali no balcão – sobre esse assunto quando percebi que o garçom servia, apressado, uma bebida amarela em pequenos copos de vidro. Percebi que em todas as mesas estava presente aquela bebida, que cada vez mais ela era pedida. Fiquei curioso. Vendo-o apressado servindo, pedi desculpas por atrapalhá-lo e perguntei o que era aquilo. Ele me disse que era "batidinha", uma mistura de água, cachaça, suco de maracujá e açúcar. Eu disse: "ah...". Foi ali que percebi também que, esteja Marx errado ou não, os trabalhadores (especialmente aqueles que 'pegam no pesado') precisam se "drogar" bebendo álcool para aguentar o serviço a que estão submetidos todos os dias. Mas também pensei que os ricos também se drogam, só que com drogas mais caras como uísque doze anos e outras coisas... O fato é que nem o socialismo e nem o capitalismo nos fizeram felizes. Mas a pergunta que fica é: "o que nos faria felizes?"

Diante daquelas mãos calejadas dos trabalhadores. Dos rostos cansados. Da situação miserável de pobreza, espera por dias melhores e mais felizes e rotina monótona que assola nossas vidas medíocres, penso que naquele dia os operários no bar da Apiacás com a João Ramalho materializavam diante deste professor que vos escreve a situação prática que condiz com a frase predileta de um velho amigo meu que dizia: "só bebendo".


Referências

CARCANHOLO, Reinaldo. Sobre a Ilusória Origem da Mais-valia. In: Revista Crítica Marxista. São Paulo: v.16, p.76-95, 2003.

MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro 1, v. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.


5 comentários :

  1. Luiz Mário de Melo e Silva26 de agosto de 2015 às 08:54

    Karl Marx ainda permanece irrefutável quando se observa que a fonte de riqueza é o "trabalho transformador" (atividade humana seja física, seja intelectual, obviamente). Todavia, essa interpretação deve ser percebida nos vários níveis da economia capitalista: economia comercial (feira), economia industrial (industria) e por último economia financeira ou especulativa (banco), em simbiose e sob o controle do ultimo estágio.

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  2. Cuidado Luiz, ninguém é irrefutável em filosofia.

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  3. Texto muito bom. O liberalismo, com todas as críticas a ele, ainda é a melhor opção. Tolerância, leis ifuias para tdos. Marx está ultrapassado e os croquetes ainda apostam suas fichas nessa pseudofilosofia que cheira a mofo do tal Marx. A meritocracia é boa. O que não é bom é dar esmola com o dinheiro dos outros como esse programa eleitoreiro do bolsa familia. Dilma e Lula são usurpadores do povo.

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  4. Belo texto. E ainda traz a minha rua em São Paulo como pano de fundo, muito bom, parabéns!!!

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  5. Prof. O socialismo morreu e esqueceram de contar aos mortadela, hehehe...

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